Minas Gerais

HISTÓRIA

“Humor é falar a verdade com graça”, afirma criador de A Caravela

Cartunista Nilson Azevedo completa 50 anos de carreira profissional em 2017

Belo Horizonte |
Nilson: "Mesmo uma pessoa de direita se desarma diante do humor e isso permite o raciocínio”
Nilson: "Mesmo uma pessoa de direita se desarma diante do humor e isso permite o raciocínio” - Larissa Costa / Brasil de Fato MG

Uma das figuras mais expressivas da comunicação mineira comemora suas bodas de ouro em 2017. Criador das HQs A Caravela e Negrim”, o cartunista Nilson Azevedo começou a publicar em plena ditadura militar e até hoje se orgulha de nunca ter arredado o pé da luta. Ele acredita que fazer humor não é só ser engraçadinho, mas dizer a verdade de maneira jocosa, a fim de, nas palavras do poeta Torquato Neto, “desafinar o coro dos contentes”.

Há 20 anos Nilson trabalha com o Sindicato dos Trabalhadores da Indústria Energética de Minas Gerais (Sindieletro-MG), onde dá seguimento a seu desenho combativo, formado desde os tempos em que se juntou a Ziraldo, Henfil, Millôr, Jaguar e toda a memorável turma do Pasquim. Ele também mantém o blog “Falando Nilson”.

Em entrevista ao Brasil de Fato MG, o cartunista conta um pouco de sua trajetória, fala da crise da imprensa brasileira e traz uma mensagem de esperança para a política. O importante, segundo ele, é não desistir de produzir o novo.

Brasil de Fato: Como aconteceu o seu primeiro encontro com os quadrinhos?

Nilson Azevedo: Minhas irmãs mais velhas eram colecionadoras de quadrinhos. É engraçado que nessa época eu não me interessasse tanto, mas eu já desenhava as coisas da vida real lá em Raul Soares, minha cidade. Com sete anos, ainda sem saber ler, fui me interessar pelos quadrinhos e ler todos, só que eu não tinha dinheiro para comprar. Quando eu lia, copiava os desenhos: Mickey, Tarzan, Mandrake, Fantasma. Até que pintou a revista Pererê, que mudou a minha vida, a minha cabeça, mudou tudo, quando eu tinha 12 anos. Até hoje, é o único quadrinho do mundo em que um menino negro e deficiente físico é o herói e se casa com a Boneca de Piche, que também é negra. Ele melhorou a história do Saci, que era de medo e se tornou uma figura legal, solidária, no Pererê do Ziraldo. O desenho dele retratava o Brasil: fogão a lenha, a cerca, a estrada, a árvore, eram coisas que eu via na minha realidade.

Do material que você lia, havia muita coisa do Brasil?

Não. Em Minas, havia uma revista chamada Era uma vez, que tinha um grande desenhista chamado J. Nelson Valente. O menino, com 14 anos, correspondia com o criador da Luluzinha, do Mandrake. Ele fez dois personagens da Família Repinica, uns coelhinhos que se vestiam iguaizinhos. E tinha o Zé Caixinha, um boneco em forma de caixinha, que também marcou muito.

Em São Paulo, as revistas da Editora La Selva foram as primeiras a fazer o Drácula em quadrinhos e vários contos de terror. Essa mesma equipe também tinha uma linha de revistas infantis. Tinha a revista Zas Traz, tinha a primeira revista do Maurício de Souza, a Bidu. Tinha a revista Cacareco, que veio do nome de um rinoceronte do zoológico de São Paulo, que foi um dos mais votados na eleição da época. Era a época do Ademar de Barros. Também havia a editora da revista O Cruzeiro, que tinha a Luluzinha e o Pererê. E tinha personagens muito populares na revista, que você encontrava em qualquer barbearia, como o Amigo da Onça. E tinha uma revista alternativa chamada Fatos e Fotos e uma revista feminina chamada A Cigarra. O Alceu Pena, que era mineiro, fazia “as garotas do Alceu”, com uma moda que minhas irmãs gostavam. Tinha o Millôr Fernandes e outros. Agora, revista em quadrinhos, só essas da Editora La Selva.

Então, essa turma foi pioneira do quadrinho nacional?

Quando acabaram com a Pererê, eu fiquei tão chateado, que criei o Negrim. Peguei o Negrinho do Pastoreio e o “amineirei”, com o universo da minha mãe, que era da roça, trazendo as histórias que ela me contava. E coloquei um colega de escola chamado Zé Maria e o índio Curió. Publiquei isso no jornal Estado de Minas entre 1969 e 1973. Depois, não deu para continuar.

No Brasil, você não sobrevivia com quadrinhos, pois as revistas norte-americanas tomaram o mercado. Sempre que tentamos fazer uma “reforma agrária” no quadrinho brasileiro, eles derrubaram. Antes de cair, o Jango assinou uma lei que veio de muita luta dos grandes desenhistas brasileiros, que fizeram uma cooperativa no Sul com o apoio do Brizola. Pela lei, chegaríamos a substituir todo o quadrinho estrangeiro pelo nacional. Aí, o golpe tirou o Jango e a lei nunca foi homologada.

E como foi começar a carreira profissional dentro da ditadura, em 1967?

Eu trabalhava de boy na Mendes Júnior e estudava em escola estadual. Eu desenhava a caneta e lápis e colocava meus colegas nos desenhos. Nessa época, o Henfil publicava seis charges por dia no Diário de Minas, enquanto os protestos aconteciam. Todo mundo queria ver as charges do Henfil. Nas passeatas, as pessoas jogavam sacos de leite lá de cima nos guardas. O Henfil desenhava um estudante pequenininho com bodoque enfrentando os policiais que tinham jatos de água, bombas de efeito moral. Então, as charges dele fizeram o trabalho incrível de ajudar a população a ficar do lado dos estudantes. Foi quando eu falei: “é isso o que eu quero fazer”. Eu, que passei a vida lendo Seleções e quadrinhos americanos, queria me envolver na política. Bastaram 15 minutos da revista Pif Paf do Millôr, que foi fechada pela ditadura, pra que tudo o que eu tinha lido antes, defendendo o imperialismo, caísse por terra. Foi o meu Caminho para Damasco, porque eu não só entendi o que estava acontecendo, como fiquei contra a ditadura.

Em 1969, passei na faculdade, peguei o meu dinheiro do FGTS e resolvi viver de quadrinhos. Fui ao jornal Estado de Minas com a cara e a coragem. O André Carvalho, que era um editor de cabeça aberta, nem me conhecia, mas viu os meus desenhos e publicou. Aos 14 anos, eu já tinha encontrado com o Ziraldo, ele me publicou na Pererê e me deu várias dicas. No Pasquim, eu já estava publicando. Depois, comecei a fazer charges no Diário do Comércio, fui para o Rio na pior época da ditadura, o governo Médici, e cheguei a publicar duas vezes no Correio da Manhã, que a ditadura depois fechou.

Em 1974, na época do Geisel, passou a ter humor até na revista Casa e Jardim, graças ao sucesso do Pasquim, que deu status ao humorista. A grande imprensa não publicava, era muito severa. O Pasquim enfrentou uma censura terrível. Eu quase cheguei a passar fome no Rio. De volta a BH, em 1975, publiquei charges e quadrinhos no Jornal de Minas ajudei a fundar o jornal De Fato, o jornal Em Tempo, colaborei na edição mineira do Movimento, no Almanaque do Humordaz, que foi fechado pela censura após dois, três números, participei do Cadernos dos CET [Centro de Estudos do Trabalho] e fizemos vinte e tantos caderninhos, que são copiados e reproduzidos na América Latina afora. No terceiro ano, eu tinha ido pra São Paulo morar com o Henfil. O Dops tentou muito fechar o CET. Em São Paulo, colaborei na Folha, tendo o Angeli como editor.

Você publicou muito na grande mídia comercial e na mídia alternativa. De lá pra cá, o que mudou nesses dois âmbitos?

Quando a gente fazia imprensa alternativa, era muito arriscado. Eu cheguei a atender telefone de gente ameaçando matar o Henfil. Eu nunca pensei que fosse passar dos 30 anos, achava que, como disse o Caetano, ia “morrer de susto, de bala ou vício”. Se você emprestou um livro a alguém que era da guerrilha, eles iam à sua casa e prendiam você. Vários companheiros foram presos.

A partir da anistia, os sindicatos começaram a fazer imprensa e houve um crescimento. Ao mesmo tempo, paradoxalmente, com o fim da censura, a grande imprensa começou a pegar todos os temas que a imprensa alternativa fazia. A partir de 1982, aconteceu uma coisa terrível na grande imprensa. Ela precisou da gente para vender jornal na ditadura. Quando acabou a ditadura, eles demitiram vários da esquerda, trocaram listas entre si com o nome de gente que eles não iriam empregar e tiraram os chargistas. Ficaram aqueles que topavam falar que política não estava com nada e o importante era sexo, drogas e rock’ n’roll.

O jornal passou a ser um jornal de serviços, uma coisa cínica. A grande imprensa virou imprensa mega medíocre. Por que o Ziraldo foi fazer aqueles livros infantis? Os livros são maravilhosos, mas ele foi fazer porque o demitiram. O Henfil foi demitido da Isto É. Nós, ingenuamente, achamos que poderíamos publicar tudo o que era vetado pela ditadura, mas nos botaram pra fora.

A grande imprensa piorou muito?

Demais! Hoje, tem os caras que têm a “coragem” de ficar do lado do mais forte. Na minha época, você pegava um jornal como o Jornal do Brasil e tinha Carlos Castelo Branco, Alceu Amoroso Lima, Clarice Lispector, Jaguar, Carlos Drummond de Andrade, Ziraldo. Compara com hoje.

E o humor ficou mais bobo?

A filosofia de esquerda foi substituída pela filosofia Yuppie [derivação da sigla "YUP", que significa "Young Urban Professional", ou seja, Jovem Profissional Urbano, usada para se referir a jovens de classe alta] e o cara só quer levar vantagem. A televisão é ainda pior. O leitor não tem muita opção. Tem a internet, tem Brasil de Fato, Caros Amigos, Carta Capital. O resto é aleivosia, mentira, metáforas idiotas. Aí, a Folha põe uns três de esquerda contra uns 20 de direita pra dizer que está fazendo contraponto. E o humor Casseta e Planeta foi a pior praga que podia acontecer. Ele é pior que o Pânico, que é porra-louca. O Casseta e Planeta é dirigido para atacar gays, feministas, índios. Todo mundo que tinha uma posição de defesa dos oprimidos foi atacado por eles. Não foi à toa que eles tiveram todas as portas abertas. Os chargistas mais novos caíram nessa. Em Minas, o Quinho, o Lute e o Duke fazem milagres. Eu acho que eles enfrentam mais barreiras do que nós enfrentamos na ditadura, pois, hoje, é o editor quem faz a censura, não é mais o censor militar.

Agora, o perigo é transformarem o chargista em puro entretenimento. Em vários jornais, a ideia do editor é que tem horóscopo, palavra cruzada e tem chargista no cantinho. Humor é falar a verdade com graça. Você pode falar a verdade sem ser humorista e pode fazer o mau humor por falta de técnica ou por falta de caráter. A minha linha é a do Mark Twain, Millôr Fernandes, Barão de Itararé e dos grandes chargistas, que não eram chapas brancas.

Que dica você, que enfrentou a ditadura, daria para enfrentar o regime que surgiu recentemente, após novo golpe no Brasil?

Como dizia o Henfil, o humor não tira um copo do lugar, mas a gente muda a cabeça das pessoas. Mesmo uma pessoa de direita se desarma diante do humor e isso permite o raciocínio. Quando eu faço uma charge, me dirijo até o inimigo e quero que ele pense.

A esquerda, que tinha os grandes intelectuais, perdeu o bonde no fim da ditadura. Alguns se venderam e, em vez de desafinar o coro dos contentes, passaram a fazer coro com a direita. O Barão de Itararé falava: “aqueles que se vendem não vale a pena comprar”.

Os evangélicos deram um banho na esquerda. Eles têm rádio e TV. Nesse ponto, não sei o que houve no governo Lula e Dilma que eles bobearam. No Brasil, há um latifúndio da grande imprensa. Nós somos iguais a posseiros. Fomos lá, cavamos, limpamos, capinamos a área. Aí, vem o latifundiário e toma o terreno.

A direita no mundo inteiro saiu do armário. Antes, o cara era hipócrita, frequentava a zona e ficava pregando moralidade. Hoje, eles não se importam mais, a imprensa perdeu qualquer vergonha na cara. O Trump fala que tortura é legal, os caras constroem muros. Mas esse é o nosso grande momento. Eles vão fazer tanta barbaridade que a esquerda vai ter que se organizar e se recriar. Assim como tivemos a preponderância de governos de esquerda na América Latina e a direita aproveitou e se organizou e fortaleceu, agora é o contrário. É hora de mostrarmos a nossa cara. Vai dar muito trabalho, mas não é hora de broxar. O Millôr tinha uma frase genial: “Estamos cercados! Não vamos deixar o inimigo escapar”.

Ao longo destes 50 anos de trabalho profissional, qual foi a experiência mais marcante em toda a sua trajetória?

Eu fiz o Negrinho e as tiras da Caravela e isso foi muito importante na parte da cultura. Mas, falando de atitude na vida, o mais marcante foi que eu participei da imprensa alternativa, lutei, não afinei contra a ditadura e não me vendi depois. Pessoas como o Henfil, grandes jornalistas e outros, como os que morreram assassinados, também. Com erros e derrotas, combati o bom combate. E olha que eu vi muita coisa: a Revolução Cubana, a Intifada, o povo da roça no Vietnã derrotar a maior potência da Terra, os Estados Unidos, que jogaram mais bombas lá do que em toda a Segunda Guerra Mundial. Eu vi a chegada do computador, do videocassete, da escova de dente, do band aid, do disco de vinil, do quadrinho, do cinema, o surgimento do rock, os Beatles, a corrida espacial, o primeiro homem na Lua, a bomba atômica. Gente, olha as coisas que eu vi!

Rapaz, eu acho o ornitorrinco uma peça da natureza que Deus pregou nos cientistas. Botou um bicho que é marsupial, mamífero, aquático... é tudo! Os cientistas perguntam de onde ele surgiu, mas eu, como humorista, solucionei essa questão. O ornitorrinco nasceu de um bacanal na Arca de Noé. O ornitorrinco é o artista que traz algo novo, inesperado, que é a síntese de tudo.

A direita fala como se ela tivesse o controle da história. Mentira! A história não tem fim, não pode ser controlada. Eu estou à procura do novo ornitorrinco, da criatividade, da surpresa. O jornalista Leon Eliachar dizia que “humor é a arte de fazer cócegas no raciocínio dos outros”, não é só ser engraçadinho. O humor é o ornitorrinco e vai estar conosco para sempre.

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