Debate

Desmilitarizar a PM não é desarmá-la, explicam especialistas

Motim da polícia no Espírito Santo reacendeu o debate sobre a necessidade de mudanças na polícia ostensiva do país

Brasil de Fato| Brasília (DF) |
O fim do caráter militar das polícias é defendida por especialistas como forma de tornar as corporações mais próximas da sociedade
O fim do caráter militar das polícias é defendida por especialistas como forma de tornar as corporações mais próximas da sociedade - Latuff

O governo do Espírito Santo já abriu processo disciplinar militar para expulsar centenas de policiais que lideraram a paralisação da PM no estado, que começou há duas semanas. Por não terem direito constitucional de organização e serem proibidos de fazer qualquer tipo de reivindicação salarial e de condições de trabalho, a tendência é que boa parte desses policiais seja expulsa da corporação ou até cumpra pena de prisão.

Esse episódio reabriu uma velha discussão sobre desmilitarizar a Polícia Militar no Brasil. Com o caos na segurança pública provocado pela ausência de vigilância nas ruas, alguns setores se apressaram em acusar os defensores da desmilitarização de advogarem pelo desarmamento da polícia ou até pelo seu fim. “Nós não defendemos o fim, mas a desmilitarização da Polícia Militar. Isso não significa que os policiais serão desarmados, proibidos de patrulhar as ruas ou impedidos de prevenir crimes. Desmilitarizar a PM é transformá-la numa instituição civil. Atualmente ela é vinculada ao Exército. Essa mudança, inclusive, melhoraria muito as condições de trabalho de policiais e poderia evitar crises como a que ocorre no Espírito Santo”, argumenta o deputado estadual do Rio de Janeiro, Marcelo Freixo (PSOL), que é presidente da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa fluminense (ALERJ).

O fim do caráter militar das polícias é defendido por especialistas como forma de tornar as corporações mais próximas da sociedade e dar a elas uma formação voltada para a proteção da cidadania e a garantia de direitos. “São cada vez mais raros no mundo os países que adotam o modelo militarizado como o nosso. E o motivo é simples: a doutrina militar historicamente foi criada para defesa de território, governos e seus governantes; na lógica militar, o adversário é sempre um inimigo a ser abatido. Esse modelo se mostrou, ao longo do tempo, defasado no que tange ao policiamento comunitário”, analisa o delegado Pedro Filipe de Andrade, que é professor da Escola Superior de Polícia Civil do Paraná e assessor jurídico da Associação dos Delegados de Polícia do Paraná, em artigo publicado recentemente no jornal “Gazeta do Povo”.

Os próprios policiais militares, em sua imensa maioria, defendem a desmilitarização. É o que revelou uma pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, divulgada em julho de 2014, que entrevistou mais de 21 mil policiais em todo o Brasil. Do total dos entrevistados, 73,7% são a favor da desvinculação da PM com o Exército, 76,1% deles defenderam a desmilitarização e 93,6% disseram que é preciso modernizar os regimentos e códigos disciplinares.

A questão dos códigos e regras disciplinares é emblemática. A Polícia Militar de São Paulo, por exemplo, proíbe que seus integrantes façam qualquer tipo de crítica direcionada à instituição, sob pena de prisão. Foi o que aconteceu com o soldado João Maria Figueiredo da Silva, da PM no Rio Grande do Norte. Ele ficou preso por 15 dias por ter questionado, numa rede social, o modelo de polícia no país. A postagem que resultou em sua prisão dizia: “temos uma polícia que se assemelha a jagunços”. João Maria só foi solto após um habeas corpus concedido pela Justiça.    

Para o ex-secretário nacional de Segurança Pública, Luiz Eduardo Soares, a estrutura militar não combina com os desafios de uma polícia ostensiva. “O policial na rua não se restringe a cumprir ordens, fazendo ronda de vigilância ou patrulhamento determinado pelo estado-maior da corporação, em busca de prisões em flagrante. Ele atua como gestor local da segurança pública, o que significa pensar, analisar, dialogar e decidir, e não apenas cumprir ordens”. É preciso, na opinião de Soares, que o policiamento ostensivo identifique problemas e prioridades, trabalhe em conjunto com a comunidade, em um contexto que o policial tenha sua autonomia garantida para tomar decisões estratégicas.   

Meia polícia

Na avaliação de especialistas, um dos maiores gargalos da segurança pública no país é a divisão em duas polícias, com baixa integração. O ideal seria que os policiais cumprissem um ciclo completo, que vai desde o policiamento de rua até a investigação criminal. Porém, no país, cabe à PM fazer o patrulhamento e o policiamento ostensivo, enquanto os policiais civis cuidam da investigação criminal. Na prática, cada polícia funciona como meia polícia.  

A falência desse modelo está descrita nas estatísticas oficiais. O Brasil não consegue sair da posição que ocupa há décadas como segundo país no mundo com a maior taxa de homicídios, na faixa dos 25 assassinatos por 100 mil habitantes, ou 50 mil homicídios por ano, números que se assemelha com os de países em guerra. A população carcerária, de 540 mil presos, já é a quarta maior do planeta, porém, ao mesmo tempo, a impunidade segue elevada, já que apenas 8% dos homicídios dolosos são elucidados.

Um dos projetos que tramitam no Congresso Nacional para rever esse modelo é a PEC 51/2013, de autoria do senador Lindbergh Farias (PT-RJ). A proposta prevê uma carreira única civil para as polícias e concede autonomia aos estados para estruturarem seus próprios órgãos de segurança pública. A ideia é que, nesse formato, uma polícia única faria tanto o trabalho ostensivo quanto a investigação de crimes.


 

Edição: Juliana Gonçalves