Abuso

Sistema de Justiça blinda violência policial, revela pesquisa da Conectas

Em 80% dos casos de tortura policial denunciados em audiências de custódia, membros do Ministério Público nada fizeram

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
Foram ouvidos 393 casos de tortura policial relatados entre julho e novembro de 2015
Foram ouvidos 393 casos de tortura policial relatados entre julho e novembro de 2015 - Conectas Direitos Humanos

A ONG Conectas Direitos Humanos lançou na manhã de terça-feira (21) sua nova pesquisa: “Tortura Blindada: como as instituições do sistema de Justiça perpetuam a violência nas audiências de custódia”, que revela como juízes e promotores de Justiça dificultam a investigação de denúncias de tortura e maus-tratos praticados pela polícia contra cidadãos detidos.

O resultado é fruto de um amplo trabalho de campo que acompanhou centenas de audiências entre julho e novembro de 2015 no Fórum Criminal da Barra Funda, localizado na capital paulista. O local escolhido para o lançamento da pesquisa, não sem motivos, foi o Memorial da Resistência de São Paulo, e os paralelos entre o passado ditatorial e os resquícios de violência do Estado no presente foram constantes durante todo o debate.

As audiências de custódia são o instrumento que deve garantir que o cidadão preso em flagrante seja apresentado a um juiz em até 24 horas após sua detenção. Nela, também estão presentes representantes do Ministério Público e da defesa. Apesar de serem antiga exigência da Convenção Americana de Direitos Humanos, só foram implementadas no Brasil em fevereiro de 2015. Em tese, são dois os seus objetivos: avaliar as circunstâncias da prisão em flagrante e, também, identificar a possível existência de práticas de tortura policial.

As conclusões da pesquisa Tortura Blindada, no entanto, mostram que o segundo objetivo tem sido, em partes, negligenciado. Nas audiências analisadas, a Conectas identificou 393 casos de tortura policial. Eles foram identificados através de relatos de presos ou na observação de outros sinais, como marcas de sangue na roupa e ferimentos físicos.

A pesquisa também revela que, em 80% dos casos em que houve relato de violência, o Ministério Público — que tem como uma de suas atribuições constitucionais fiscalizar as polícias — sequer agiu. No restante dos casos em que o promotor interveio, 60% foi no sentido de deslegitimar o relato da vítima, ao invés de apurar os fatos. Em se tratando dos juízes, as intervenções ocorreram em 75% dos casos analisados. No entanto, as audiências revelaram que os juízes não agem de maneira uniforme.

“As perguntas sobre tortura e maus-tratos aparecem dependendo do magistrado que preside a audiência de custódia — o que aponta para uma margem muito grande de discricionariedade, como se o combate e prevenção à tortura dependesse muito mais da convicção pessoal do juiz do que de um protocolo de atuação institucional da Magistratura”, aponta um trecho do relatório.

Cenário amplo

Em sua participação no lançamento, a procuradora federal dos Direitos do Cidadão Deborah Duprat analisa que, embora o Ministério Público tenha sido criado para defender os direitos humanos e exercer o controle externo das atividades policiais, essas funções se perderam. “É impressionante como a instituição se volta cada vez mais para uma atuação persecutória, naturalizando a violência, principalmente, a violência policial e fecha os olhos para direitos humanos”, disse.

Outro debatedor, André Bezerra, da Associação Juízes pela Democracia, argumentou que a análise das conclusões da pesquisa devem ser pensada em um contexto mais amplo e que o poder judiciário não pode ser discutido como se estivesse isolado da sociedade. Para ele, a naturalização das práticas de tortura por parte dos agentes de justiça tem causas mais profundas.

“O juiz, o promotor ou o defensor não saem do nada. Estão na sociedade brasileira. Uma sociedade autoritária, patriarcal e que naturaliza as violações. Vivemos em um verdadeiro fascismo social, onde violações são vistas como naturais”, disse. E ainda completou: “Não é de se estranhar que o agente do sistema de justiça não se comova com o relato de uma pessoa que diz ter sido maltratada pela polícia”.

Bezerra também elencou, em sua fala, os “mediadores” que corroboram o cultivo dos valores que influenciam esses juízes e promotores. Valores que, segundo ele, devem ser frisados no debate quando se fala do sistema de justiça.

Em primeiro lugar, menciona os valores “da família”, já que o perfil da maioria dos juristas brasileiros é de homens, brancos e de classe média — conjunto privilegiado da sociedade. Os meios de comunicação de massa também devem ser considerados, em especial, se for analisada a grande divulgação de casos policiais nos noticiários que instigam o medo e ódio na população. Por último, ele também cita a falta de interdisciplinaridade  no ensino jurídico brasileiro, que não compreende a necessidade de carregar o debate sobre direitos humanos atrelado a quaisquer disciplinas do curso.

Perfil

A análise dos 393 casos em que houve relatos ou sinais de tortura ou maus-tratos no contexto das audiências de custódia permitiu à Conectas inferir que as vítimas preferenciais de violência no momento da prisão são homens, negros, acusados de roubo, e que os maiores perpetradores são policiais militares.

Para Deborah Duprat, esse perfil dialoga com características estruturais da sociedade brasileira.  “Somos uma sociedade, em sua gênese, violenta, colonial e escravocrata. Acho que não há sociedade escravocrata livre de violência. Somos uma sociedade em que determinados segmentos são absolutamente destituídos de direitos em favor de um núcleo que domina”, argumentou.

Ela também defendeu que o perfil do sujeito de direito do Estado brasileiro trabalha - entre outros fatores, como o racial - com a dicotomia centro e periferia, “em que o centro tem que ser defendido da periferia, onde estão todos os ‘desviantes’ desse sujeito de direitos”.

A pesquisa foi entregue aos órgãos de justiça de São Paulo e, de acordo com a equipe da ONG, o objetivo agora é que suas conclusões sejam utilizadas como base para uma profunda reforma na arquitetura institucional da segurança pública. "Isso traz um compromisso e uma provocação sobre o que é o Ministério Público, se é o que nós queremos e que tipo de sociedade, de estrutura de Justiça e Segurança Pública nós teremos com esses tipos de atores lidando com a polícia", concluiu o coordenador de Justiça da Conectas, Rafael Custódio.

O documento completo está disponível para download aqui.

Edição: José Eduardo Bernardes