Pesquisa

A cada seis aberturas de novela com mulheres brancas, apenas uma tem mulheres negras

Levantamento foi feito com base em 59 novelas veiculadas pela Globo entre 2000 e 2010

Brasil de Fato, Curitiba (PR) |
Fernanda Bueno pesquisou a hipersexualização, a invisibilidade e a subalternidade da mulher negra nas telenovelas
Fernanda Bueno pesquisou a hipersexualização, a invisibilidade e a subalternidade da mulher negra nas telenovelas - Gabriel Dietrich - Arquivo Pessoal

A pesquisadora Fernanda Bueno estudou as aberturas de novelas veiculadas pela Rede Globo em um intervalo de dez anos e chegou a um resultado surpreendente: as mulheres negras estão ausentes de 50 das 59 vinhetas analisadas – o que representa um sexto do espaço dedicado às mulheres brancas. O resultado é incompatível com os números do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o que evidencia a discriminação na escolha das atrizes e personagens. Segundo o último censo, cerca de 54% da população brasileira é negra.

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O estudo foi apresentado em 2016 como trabalho de conclusão do curso de Comunicação Social da Universidade Federal do Paraná (UFPR), e está disponível neste link. Além da “invisibilidade”, Fernanda questionou a hipersexualização e subalternidade da mulher negra nas telenovelas.

Confira abaixo os melhores momentos da entrevista da pesquisadora para o Brasil de Fato Paraná:

 

O que motivou você a escolher as novelas como objeto para estudar a representatividade da mulher negra na TV?

A telenovela entra como uma alternativa de unir o tema que eu tinha vontade de estudar – negritude e gênero – com a comunicação. A princípio, meu objeto seria a relação de meninas jovens com o cabelo, e as referências midiáticas como influências diretas nessas práticas – alisamento ou valorização dos cachos. Porém, seria um objeto mais próximo da sociologia, e as metodologias disponíveis na minha área e no tempo que eu tinha pra executar um trabalho de conclusão de curso (um ano a um ano e meio) não dariam conta. Por isso, resolvi investir na inquietação sobre a existência ou não dessas referências midiáticas, até para poder entender futuramente esse diálogo com a recepção – das meninas/jovens. Pensando também que a televisão é um dos maiores meios de comunicação do país, tendo credibilidade e alcance, porque ainda existem muitos lugares onde a internet não chega, mas a TV sim.

Houve algum fato ou alguma novela, especificamente, que abriu os seus olhos para a baixa presença de mulheres negras?

Uma questão que me incomodava era a automática associação de meninas negras com personagens e atrizes – sempre as mesmas –, independentemente de sua aparência.  Até porque, minha vida e experiência também são minha base para reflexão. Quando entrei na faculdade, meu apelido era Globeleza. Até que, no final do primeiro ano, conheci um grupo de estudantes de Relações Públicas do estado de São Paulo, onde também havia outra garota negra com esse apelido. Esse foi um dos primeiros estalos para eu parar e pensar: espera um pouco, se eu não me pareço com ela, e nem com a Globeleza, então por que nós duas temos esse apelido? A partir daí, comecei a observar com mais atenção quem e quais eram as referências possíveis para fazer essa comparação, e isso também foi um incentivo para desejar descobrir, a partir das novelas, que mulheres negras habitavam o imaginário das pessoas.

Algum resultado da pesquisa te surpreendeu?

Das três categorias analisadas – hipersexualização, invisibilidade e subalternidade –, a hipersexualização era a que eu acreditava ser mais recorrente. Existia também a suspeita de que poucas mulheres negras apareceriam, mas o resultado também me surpreendeu. Pois em dez anos, nas 59 novelas exibidas nos horários entre 18 e 21 horas, apenas nove novelas traziam figuras femininas negras. Sendo que uma delas é uma novela de época, e por isso existe uma problematização mais delicada, a considerar a época que faz referência que é um período escravocrata e tudo mais. De todo jeito, essa representação de apenas 10%  num recorte das aberturas no período de 10 anos, foi algo inesperado. E que dentro dessa pequena representação, mulheres negras aparecem mais em posições subalternas do que hipersexualizadas.

Como você encara o problema da "formação da identidade da mulher negra a partir do referencial da mulher branca", citado no seu trabalho?

Começo a resposta com uma provocação. Se fizéssemos uma entrevista rápida pedindo pra algumas pessoas descreverem uma mulher de sucesso, independentemente de seus atributos intelectuais ou físicos, qual seria a cor da pele dessa mulher para a maioria dessas pessoas?

A formação da identidade da mulher negra a partir da mulher branca acontece a todo momento e em pequenos momentos, que nem nos damos conta. Aliás, se essa mesma pergunta estivesse no contexto "carnaval", qual seria a cor de pele desta mulher então?

Na verdade, é uma racionalização do processo (que ainda estamos vivendo) de desvincular as ações da mulher negra das ações feitas e reconhecidas da mulher branca. A partir do momento em que passamos a valorizar a mulher negra por suas próprias qualidades e características, aí sim estaremos conferindo à ela um grau de dignidade e respeito às suas conquistas.

A mulher negra incomoda, por ser mulher e por ser negra. Por querer permanecer num lugar de fala ou tendo uma visibilidade que lhe é constantemente e duplamente negada, por conta do machismo e do racismo. E em outra instância do classismo também.  

Você pode dar algum exemplo de que como isso aparece nas novelas que analisou?

A primeira situação-exemplo que me veio à mente, tratando da pesquisa, foi a abertura de Tempos Modernos (2010), que além de Da Cor do Pecado (que acaba sendo a que mais habita o imaginário social por mostrar um busto de mulher negra sob a luz do sol) é uma das aberturas mais incômodas para mim. A vinheta começa com uma mulher negra de cabelos crespos e longos, deitada numa cama de casal, vestindo uma camisola e puxando um homem branco para se deitar com ela. Nos quadros seguintes, aparece uma mulher branca chegando em casa do trabalho vestida com roupas formais (terninho) e dando oi para as crianças que estavam com o seu marido. Ou seja, mesmo que na ordem inversa, acaba se conferindo lugares e papéis distintos para essas duas mulheres. A branca ainda sendo vista como responsável, organizada e intelectual, e a negra como “safada”, desocupada, e ocupando um espaço privado onde depende das intenções do homem. Por mais que não seja mostrada na ordem branca-negra, são imagens suficientes para que se instale essa ideia e se reproduzam esses valores e expectativas.

A Rede Globo, cada vez mais, oferece em sua programação 'pílulas' de feminismo, debates geralmente superficiais sobre gênero e preconceito. Como você entende o impacto que isso tem sobre o público geral, considerando que essa mesma emissora tem um histórico de discriminação, como a sua pesquisa demonstrou?

Penso que isso pode e deve ser valorizado como um sinal de que existe uma preocupação da emissora em alterar os valores transmitidos para a "família tradicional brasileira". Vejo ainda como um demonstração de interesse em exibir um conteúdo mais abrangente e representativo mesmo, até porque já tá na hora, né?! Não deixa de ser uma conquista e um reconhecimento do próprio trabalho dos movimentos sociais – negro e feminista – para que haja essa ocupação do espaço midiático.

Você analisou aberturas de telenovelas até o ano de 2010. Na sua impressão, houve avanços ou recuos desde então?

Sem dúvida, houve avanços. Se pensarmos que a primeira mulher negra aparece somente em uma abertura datada de 2003 (dentro do corpus de pesquisa, que inicia em 2000), e que das cinco novelas exibidas no ano de 2006 temos três delas apresentando mulheres negras na abertura, é um avanço considerável. Mesmo que a representação ainda seja num papel subalterno, elas estão presentes, de alguma forma. E menos sexualizada do que eu pensava, o que já é um grande avanço e contribui para que nossas referências sejam ampliadas e de forma a se pensar na ascensão social dessas mulheres. Ainda que faça parte da conclusão da análise feita no trabalho, essa ascensão atrelada a relacionamentos interraciais é uma forma de pensar de antemão um jeito também de apresentar personagens que contrariem essa lógica e sejam personagens femininas negras que subvertam as relações de opressão.

Outro sinal de avanço neste período é que as primeiras novelas com protagonista negra – das 19h (Da Cor do Pecado) e das 21h (Páginas da Vida) – coincidentemente trazem a mesma atriz no papel principal: Thais Araújo.

Um fato interessante descoberto nesta análise, foi que a maioria das novelas que traziam mulheres negras na abertura se passavam no Rio de Janeiro, cidade que foi um dos principais polos da escravidão no Brasil. Essa representação submissa das pessoas negras muito provavelmente é um resquício dessa cultura que menospreza os indivíduos de pele escura. Infelizmente, é algo que faz parte da história do Brasil e influencia até hoje a nossa relação com o racismo velado, pois o mito da democracia racial – onde as três raças convivem em harmonia – também é fruto dessa estratégia de calar as reivindicações da população negra que continua sofrendo com a discriminação.

Edição: Ednubia Ghisi