MUDANÇA

Papa Francisco e os desafios de um clero “mágico” e “burocrata”

Para o teólogo Fernando Altemeyer Junior, até a oposição revela que a reforma de Francisco vai avançando

IHU On-Line |
"Com Francisco e o novo estilo que ele tem imprimido na evangelização, temos visto ressurgir algumas das flores primaveris do Vaticano II"
"Com Francisco e o novo estilo que ele tem imprimido na evangelização, temos visto ressurgir algumas das flores primaveris do Vaticano II" - Wikimedia Commons

Às vésperas de completar quatro anos como papa Francisco (foi eleito em 13 de março de 2013), apesar da grande popularidade entre fiéis, Mario Bergoglio está longe do que se poderia considerar como uma situação de conforto. Além dos desafios da humanidade contemporânea que o papa tem chamado para si, há, dentro da Igreja, resistência ao “estilo Francisco”. Recentemente, cartazes foram espalhados em Roma acusando o herdeiro do trono de Pedro de quebrar a unidade da Igreja. Além disso, um grupo de cardeais vem a público mostrar suas diferenças com o papa, além das contestações de ordem religiosa. Para o teólogo e professor da PUC-SP Fernando Altemeyer Junior, apesar de tudo, há o que comemorar, porque até a oposição revela que a reforma de Francisco vai avançando.

Na conversa de mais de uma hora com a IHU On-Line por telefone, Altemeyer se detém a analisar a recepção a Francisco. Segundo ele, a resistência se dá pelos anos de silêncio e de esquecimento aos temas do Concílio Vaticano II. “Francisco é um filho do Concílio e quer que a gente assuma tudo, mas também o diálogo, o aggiornamento, a questão mesma da reforma da Igreja”, pontua. Para o professor, esses 40 anos pós-concílio formaram um clero distante da mística evangélica do Cristo. Quando Francisco propõe essa volta, é mal compreendido. “Criamos um clero muito mais voltado para a burocracia. E, também, um certo tipo de padre muito mais feiticeiro do que evangelizador”, dispara.

Altemeyer ainda destaca que “o padre moderno gosta de ser um sujeito de poder mágico, quer pôr a mão na cabeça, quer holofote na missa” e isso lhe afasta do mundo real dos fiéis. Para ele, é a mesma lógica que faz com que não compreendam a densidade dos documentos de Francisco, como Amoris Laetitia. “Família é o tema central, mas embutido no documento está a sexualidade. A Igreja, até hoje, nem conversa com [Sigmund] Freud. Imagine o atraso”, aponta. Na entrevista, o teólogo ainda reflete sobre a recepção a Laudato Si’, que se dá de forma mais intensa fora dos circuitos da Igreja, e os desafios da Igreja no Brasil. “É preciso assumir a cara de seu povo e encarar a forma como o jovem pós-moderno não se assume religiosamente”, diz, sobre a realidade brasileira.

Fernando Altemeyer Junior é teólogo leigo, possui graduação em Filosofia e em Teologia, mestrado em Teologia e Ciências da Religião pela Universidade Católica de Louvain-La-Neuve, na Bélgica, e doutorado em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC. Atualmente é professor e integra o Departamento de Ciência da Religião, da Faculdade de Ciências Sociais da PUC-SP. Entre suas publicações, destacamos Aparecida, caminhos da fé (São Paulo: Loyola, 1998), Deus sem poder (In: Centro de Estudos da antiguidade greco-romana - PUC-SP. (Org.). Hypnos 6. São Paulo: Palas Athena, 2000, v. 6, p. 57-63) e A recepção do projeto do papa Francisco (In: Wagner Lopes Sanchez; Eulálio Figueira. (Org.). Uma Igreja de portas abertas - nos caminhos do papa Francisco. 1ed. São Paulo - SP: Paulinas, 2016, v. 1, p. 23-38).

Confira a entrevista:

IHU On-Line - Qual sua avaliação sobre o pontificado de Francisco?

Fernando Altemeyer Junior - Eu estou entusiasmado, tenho até dificuldade em ter uma distância crítica. Esses quatro anos têm sido muito fecundos. O fenômeno Francisco está realmente avançando e sendo bem acolhido, fazendo uma reforma na Igreja e em seus fundamentos. Fico muito feliz com o estilo do papa, sua forma de ser pastor e bispo de Roma, com suas propostas, viagens e todos os sinais. O pacote é muito bom.

No que o atual pontificado fez avançar e quais seus maiores desafios?

Em quatro anos, ele fez muito em vista ao que tínhamos paralisado em quase 50 anos de bloqueio ao Concílio Vaticano II. É inegável sua sintonia com o mundo atual, todo o contato com as situações de pobreza, assumiu uma postura profético-sapiencial inegável em relação à imigração, aos refugiados, às culturas. Internamente, é positiva a nomeação dos 44 novos cardeais, que são de todos os azimutes do planeta e com perspectivas pastorais muito mais concretas.

Ainda há a questão da sintonia que ele assumiu, especialmente na Laudato Si’, com a questão ecológica. Tudo isso são avanços consideráveis que estavam em semente, mas que não tinham eclodido. Agora, com ele, como um catalisador, isso se fez. A questão migratória é a questão atual do planeta e ele a assumiu. A questão dos refugiados explodiu como a questão mais grave para a Europa, os Estados Unidos e países do primeiro mundo que fizeram muros; o papa quebrou esses muros e falou das pontes. Esses são os pontos positivos.

De que forma essa nomeação de novos cardeais representa um avanço de Francisco?

Ele tem, como bispo de Roma, um papel colegial muito importante. É interessante que haja um bom número de indicações que Francisco possa fazer, porque ele não tem muito tempo de pontificado, por questões como saúde, idade e pela perspectiva de uma possível renúncia que assumiu do papa Bento. Ele não pode inventar um número de cardeais porque é preciso que se obedeça ao número de 120. Assim, ele pode seguir e indicar, como fez, pessoas do mundo africano, não pegar mais as sedes cardinalícias como um critério petrino de assunção de cardeais e assumir outras possibilidades. É como no caso brasileiro, por exemplo, em que até agora não colocou Salvador com um posto de cardeal, mas colocou outros personagens e outras pessoas com o estilo Francisco. Não mimético, mas no sentido de sintonia.

Isso tem sido muito valioso e vai, num futuro conclave, repercutir nos dois terços de votos ou pelo menos na metade dos votos para que tenhamos outra vez um papa sintonizado com os novos desafios do mundo, e não uma postura mais tradicionalista ou conservadora.

E quais são os limites desse pontificado?

Fernando Altemeyer Junior – Os limites são sempre múltiplos, isso sem considerar que ele tem agora o Donald Trump para enfrentar. Quem precisa de mais, com uma postura tão autoritária, tão vergonhosa para a humanidade? Até parece o retorno de pesadelos, e ainda tem Putin com toda a sua vontade de voltar à antiga Rússia de imperialismos, e a China esperando que os dois se comam para que possa emergir como império do século XXI. 

Ainda temos situações culturais que estão a exigir uma grande lucidez. A questão da globalização e mundialização, a questão da internet, a questão do consumo e da cidadania, são todas tensões normais da vida e do planeta, mas que, às vezes, vira uma espécie de sine qua non. Ou se faz isso ou morre. Francisco tenta, com lucidez, enfrentar esses grandes dramas mundiais e também locais e concretos, porque cada povo tem seu drama. Imagine nós aqui no Brasil com o golpe, imagine a questão da Turquia, imagine a Coreia do Norte com aquela loucura. E ainda tem os casos da Venezuela, Colômbia, Equador, Paraguai, tudo se repete. É um momento que exige uma posição sapiencial difícil.

Felizmente, o papa é um sábio. Ele vem dessa corrente de teologia mais da leitura dos [livros] Sapienciais, dos Provérbios, do Sabedoria, do Livro de Jó. Mas isso não é uma espécie de resposta para tudo. É um caminho duro. E, internamente, na Igreja, é claro que, depois de 40 anos de cristandade, é preciso retomar as intuições de Vaticano II e, no caso da América Latina, de Medellín – agora em 2018 se comemoram os 50 anos de sua realização –, que a grande parte do episcopado escondeu e até apagou da história da América Latina do ponto de vista eclesial.

Retomar tudo isso é como fazer uma espécie de arqueologia bonita dos caminhos que a Igreja poderia ter avançado e paralisou. Francisco é um filho do Concílio e quer que a gente assuma tudo, a Dei Verbum, Lumen Gentium, Gaudium et Spes, os três grandes documentos do Concílio, mas também o diálogo, o aggiornamento, a questão mesma da reforma da Igreja. Para isso, felizmente, está aberto. Mas nem todos da Igreja acompanham o ritmo, a música e nem a vontade de fazer reforma. Tem gente que não quer reforma nenhuma.

Como compreender a oposição a Francisco? E como observa a postura dele diante das críticas, como as do grupo de cardeais e da Ordem de Malta?

Que reformas sejam mal vistas, não apresenta novidades. É parte da psique humana. Uma grande amiga, senhora da periferia, dona Alaíde Fortunato Pereira, que viveu 102 anos, dizia: "querer o novo eu sempre quero. Mas tirar o velho da minha cabeça é uma imensa ‘dificulidade’". Nós não queremos o novo. Dizemos que queremos, mas com a idade, resistência, comodismos sempre preferimos atitudes de construir uma espécie de lugarzinho ao sol. E isso foi feito por 40, 50 anos no pós-Concílio, particularmente na Teologia Moral, a partir de certo fixismo de posições.

Clero da Igreja Católica (Foto: Mazur | Catholic Church England and Wales)

Obviamente, criamos um clero, nos últimos anos, muito mais voltado para a burocracia. E, também, um certo tipo de padre muito mais feiticeiro do que evangelizador. O padre moderno gosta de ser um sujeito de poder mágico, quer pôr a mão na cabeça, quer holofote na missa, aponta para o cálice e diz ‘eis o mistério da fé’, como se saísse um raio shazam e estivesse lá consagrando a partir de um poder pessoal. Esse modo de ser sacerdote, que volta aos esquemas tridentinos [1], traz uma certa perspectiva do antigo sacerdócio de Melquisedeque [2] que o Concílio Vaticano II tentava superar e fazer do padre um ministro da palavra, um companheiro do povo e, sobretudo, uma espécie de terapeuta da vida, e não simplesmente um terapeuta de milagres, como essas bobagens de missa de cura e libertação. Nem é a missa um sacramento de cura, pois cura e libertação se tem pela confissão e pelo sacramento da unção.

Há uma confusão e, então, quando Francisco assume essa identidade do padre amigo, orientador espiritual, que acompanha o povo nos seus dramas antropológicos, humanos, sexuais, o clero questiona: ‘mas do que ele está falando?’. Esse clero não se vê aí, porque é um clero mágico, artista, cantor de música, um star man. Mas o papa não quer isso. Quer um homem delicado, capaz de acompanhar casais em crise, de conversar como grande companheiro da vida da pessoa. É um homem místico que, como um psicanalista, penetra no ponto mais profundo da dor humana.

Observar por dentro da alma

Francisco é muito marcado por Dostoiévski, que é seu grande literato de pensamento, mas também pela pessoa de Jesus, que era um homem que via por dentro da alma. É esse padre que a modernidade precisaria para sair de seus traumas, de suas loucuras e doidices sexuais. Por 40 anos, esse padre não foi formado.

Sacerdócio sem escuta

Há alguns que têm essa perspectiva por conta de alguma qualidade profissional, um padre psicólogo (como exemplo penso no padre Edênio Reis Valle, um grande professor aqui de São Paulo); ou algum outro muito sensível, como Júlio Lancelotti, que vai acompanhando a pessoa concreta que está diante dele; ou como o meu grande mestre, dom Luciano Mendes de Almeida [arcebispo de Mariana, falecido em 2006]. A pergunta central de dom Luciano era: ‘em que posso lhe servir?’. Hoje, nenhum padre fará essa pergunta porque vai arrumar incomodações e ele não vai saber responder quando a pessoa disser ‘olha o que está acontecendo no estado do Espírito Santo, olha minha família, olha a situação da sexualidade’.

A única pergunta que se faz, hoje em dia, é: ‘o que vocês podem fazer para mim? Como vocês vão me receber bem na paróquia? Que horas vão me entregar a chave para eu controlar o poder?’. E Francisco propõe justamente o inverso disso em Amoris Laetitia, em Evangelii Gaudium. É exatamente uma revolução, no sentido da palavra mesmo, colocar o de baixo acima, inverter e até subverter num certo sentido. Mas sempre colocando o evangelho acima, o amor, a sensibilidade, a compaixão. Afinal, a palavra dele é misericórdia como punctum dolens, como o ponto exato em que precisa colocar a agulhinha da acupuntura. E para isso precisa ser um bom acupunturista, saber bem as técnicas de colocar no lugar certo para não criar dormência e para fazer estímulos ou para cuidar das dores.

Limitações interpretativas

Nós precisamos ler esses textos nessas perspectivas. Por isso o quarteto maravilha dos cardeais reacionários - com três já eméritos, só o cardeal Burke está na ativa, que é a fina flor do reacionarismo americano - se posicionou contra. E, na carta que apresentaram, eles não conseguem pensar em uma chave moderna e pós-moderna porque são prisioneiros de um discurso teológico que não dialoga com a pessoa que está na frente deles. Eles lançam dogmas, normas e põem as suas perguntas para o papa como se estivessem também querendo colocá-lo na "cadeirinha de Galileu". Só que o papa diz: ‘não sou eu que estou na cadeirinha. É a cultura moderna, são as pessoas que estão esperando uma nova palavra’.

Um novo cristianismo possível

A incompreensão, especialmente com o texto Amoris Laetitia, é uma incompreensão com a realidade deste momento, dessa guinada antropológica do mundo. Francisco, e alguns bispos no mundo, estão percebendo que é preciso uma nova terapêutica, uma nova mensagem, uma nova linguagem, um novo cristianismo possível. Há, nesse sentido, um belo texto de um padre chamado Roger Lenaers, Outro Cristianismo é Possível – a fé em linguagem moderna (São Paulo: Paulus, 2010). É a fé em linguagem moderna. É isso que estamos vivendo. Assim, há uma tensão, em si, salutar.

Não tem nada de errado em os cardeais exprimirem ideias contrárias às do papa, embora não devessem. Ainda há outros grupos, ou os grupos a que esses cardeais estão ligados, pois não há só esses cavalheiros, há outros que estão quietinhos, mas que estão na mesma sintonia. Esses não aplaudem, não criticam Francisco, mas estão torcendo para que passe logo para voltar aquela tranquilidade. É uma tranquilidade falsa, mas de uma cristandade em que eles se acham senhores do bem e do mal, da verdade constituída em textos.

O importante é ter clareza de que a verdade não é texto, a verdade é amor, é movimento. É isso que estamos vivendo. Diria que é um bom momento para a Igreja; infelizmente Francisco tem que aguentar o tranco. Por sorte, o papa Bento disse recentemente, ele, o papa emérito, que está rezando cada dia mais para que a reforma de Francisco dê certo. O próprio Bento, que é o representante máximo no uso desses grupos reacionários, não está com eles porque percebeu que é preciso realmente que a Igreja assuma em 2017, 2020, 2030 um novo rosto. Senão, perde sua eficácia histórica, seu valor e até sua identidade cristã.

O senhor falou brevemente, mas queria voltar a um ponto: como avalia a recepção a Amoris Laetitia? E como compreender as resistências?

Com relação ao Brasil, percebo que as dioceses, os bispos, as paróquias vêm fazendo muito lentamente uma recepção. Afinal, dia 19 de março vai fazer um ano de sua publicação. É um documento vasto, mas ele já vinha de uma reflexão longa, porque é fruto de dois grandes encontros episcopais do Sínodo da Família. Trata de temas que são eles próprios hipercomplexos, tanto no sentido de difíceis como no sentido da perspectiva de Edgar Morin, pois exigem tessitura, articulação.

Família é o tema central, mas embutida no documento está a sexualidade. A Igreja, até hoje, nem conversa com [Sigmund] Freud. Imagine o atraso. Outro assunto que está lá é o olhar evangélico, que é difícil, pois Jesus é alguém situado, assim como os próprios evangelhos, na cultura hebraica. O que pensar da cultura ocidental moderna? O que pensar dos avanços de dois mil anos de transmutações simbólicas, culturais, linguísticas? E, ainda, teologia moral, que é a questão derradeira que está levando a esse quiproquó.

É um documento que exige uma recepção de mentes mais abertas, mais qualificadas e de debates mais profundos. Há bispos no Brasil que dizem que Amoris Laetitia é o de sempre, que não mudou nada. Mas quem lê com atenção percebe que não é nada disso. Também não é um rompimento de toda a tradição e reflexão, porque o papa também não poderia apresentar algo tão inovador que quebrasse toda a sacramentalidade do matrimônio, toda a tradição vivida do amor como critério moral. De outro lado, ele coloca questões que são atuais, como a homossexualidade, a questão do divórcio nas sociedades ocidentais, a questão da pedofilia e alguns temas dramáticos de uma sociedade doentia e patológica - tais como enfrentar o doente, o machucado, as pessoas envolvidas, as famílias que vivem esses dramas -, as outras formas de famílias presentes hoje no mundo - e não estamos falando só de homossexualidade, pois o Brasil tem um número gigantesco de pessoas monoparentais por diversas circunstâncias.

Questões na mesa

O documento está sendo recebido de modo muito lento. Poderia haver maior empenho nas paróquias para ler, acompanhar, especialmente na pastoral familiar, e enfrentar essas questões de forma direta e serena. O grande ponto é que, como o papa coloca na mesa as questões desnudadas, as pessoas levaram um susto. Antes, se ficava apenas numa espécie de discurso genérico, heteronômico, lá do céu, ou seja, o padre não fala, a gente finge que não ouve e também não comenta, por exemplo, assuntos como pílula e camisinha.

Quando na vida íntima e cotidiana as pessoas vão discutir esses temas de forma mais profunda ou necessária, constatam que a moral católica está longe de conversar. Há debates que hoje não ocorrem na Igreja porque se entrou na zona de penumbra, uma espécie de purgatório moral. Ninguém fala, não existe, mas existe. Então, hoje as questões de Freud, eros, libido, morte, sexualidade para a vida, sexualidade para a morte, ainda não foram discutidas entre todos os atores das famílias, das dioceses, dos pastoralistas etc.

Diálogos sobre sexo

Imagine se um dia vamos discutir Wilhelm Reich [3] e a questão do orgasmo, ou Simone de Beauvoir, agora duramente atacada pela questão de gênero, que falou a frase lapidar nos anos 1940: ‘ninguém nasce mulher, se faz mulher’. Ninguém nasce homem, se faz homem. Descobriu a conexão fundamental entre genoma, biologia e cultura, porque nosso sexo não é uma dimensão restrita de uma das dimensões naturais. Ele é extremamente complexo com a mente, inteligência, coração e com o contexto em que vivemos. Por isso acredito que o documento em si é algo realmente riquíssimo.

Seria muito bom lermos o documento primeiro, antes de xingar. O ‘não li e não gostei’ é atitude do ignorante. Precisamos dar um salto: ‘li, compreendi, posso até divergir – até porque o documento tem uma série de questões que vão exigir uma perspectiva personalista –, mas entendi seriamente o que está dito’. Estamos nesse momento. Passado um ano, é preciso tomar o documento a sério e ler cabalmente da primeira à última linha, riscar, rabiscar, questionar e confrontar com as experiências humanas que cada um de nós vive, pois a sexualidade é um mistério para cada um de nós. Nenhum de nós sabe bem qual é sua sexualidade, mas também em nossas famílias, nossos parentes, também nas nossas comunidades.

Tudo isso é difícil, mas muito importante. E o cristianismo, Jesus em especial, tem uma belíssima mensagem a dizer sobre a sexualidade, que Agostinho pegou em um ponto e, depois, perdeu em outro. ‘Ama e faz o que quiseres’. Essa é a chave. Depois Agostinho perdeu essa perspectiva, porque ele e São Tomás começaram a bater em cima das mulheres. Mas ele tinha descoberto a chave, que é da sensibilidade, de verificar que a erótica é o motor do mundo, mas também é o motor de Deus. Não há nada de errado no eros, não há nada de errado na sexualidade humana, claro que no contexto em que ela tenha esse valor e esse paradigma que é o da felicidade, da solidariedade, do bem maior. Senão, a sexualidade em Amoris Laetitia também vira uma camisa de força como foi Humanae Vitae, como foram os textos antes do Concílio.

Livres e fiéis em Cristo

Tive como professor um grande redentorista, e líamos muito as grandes obras de Teologia Moral de Bernhard Häring. O título do livro dele que nos inspirou é Livres e Fiéis em Cristo (São Paulo: Paulinas, 1979). Esse é o programa moral, essa é a Teologia Moral. Francisco, no fundo, em Amoris Laetitia, não vem trazer uma novidade, mas retomar essa reflexão feita por estes grandes moralistas.

No Brasil, o maior deles é o frei Carlos Josaphat, que é um gênio nessa área, mas pouca gente lê e está preparada para ir fundo nessas questões, o que também é um dilema na Teologia Moral porque temos poucos moralistas. Há até uma sociedade e participo dela, mas é muito circunscrita ao debate interno. Precisaria colocar isso no debate público, nas redes católicas. Nesse sentido, as redes católicas não prestam um serviço ao debate moral, pois ficam conversando tautologicamente o já sabido enquanto poderiam, de maneira lúcida e serena, discutir estes grandes temas com estes grandes pensadores e com as famílias, com mulheres, com homens, com as crianças, com os jovens para que fossem os protagonistas desse debate, e não somente com os padres celibatários ou com os bispos que não são casados.

Ainda sobre o tema, gostaria de indicar um livro do João Décio Passos, que é uma leitura de Amoris Laetitia, Alegria do Amor – das sementes aos frutos (São Paulo: Paulinas, 2017).

Que oposição a Francisco é essa, que parece atravessar os muros da Igreja – vide o caso dos cartazes contra o papa espalhados na Itália?

Quem publica alguma coisa sem assinar é covarde, portanto não deve ser assumido, embora tenha ido para as ruas. Mas foi para a rua sem ser público. A rua é um espaço do público, mas na hora em que você publica algo que não assume, significa que não tem nem convicção moral nem autoridade para apresentá-la. Então, são grupos internos da Igreja e talvez alguns até manipulados por gente de fora da Igreja – há quem questione quem teria financiado isso [os cartazes contra o papa], senão grupos fascistas e de ultradireita americanos.

Aliás, quem é ultrafascista já deixou de ser católico faz tempo, porque o cristianismo não coaduna com o fascismo. Sempre dissemos, na história, que não coadunava com o comunismo, mas ele é completamente contraditório com a idolatria fascista. Por isso o mal de Mussolini e de Hitler nasceu destas campanhas que Goebbels usava sempre para criar o mal-estar a partir dos tais cartazes, das tais nominações de um bode expiatório. Esse grupo está usando a mesma forma diabólica de colocar o papa como aquele que não une, quando eles é que estão fazendo a diabolização, no sentido daquilo que corta o símbolo e que corta a unidade. Para mim, isso vai passar como fumaça, porque mostra que há inimigos, mostra que eles não são honestos, mostra que Francisco está no caminho correto porque ele mostra a cara.

Em geral, Laudato Si’ teve uma recepção positiva à época de sua publicação. Entretanto, premissas defendidas ali se opõem a discursos como de Donald Trump, em ascensão neste momento no mundo. Como compreender as tensões e as implicações entre estas duas visões de mundo?

Esse é um momento histórico que vivemos dentro do neoliberalismo, é fruto disso. O neoliberalismo como sociedade capitalista precisa esgotar todos os bens por conta da expansão do mercado. Esse mercado precisa vender tudo e transformar tudo em mercadoria, portanto não há nada no planeta que não seja objetivável, mercantilizável, e com isso água, ar, bens que seriam utilizados de formas universais e vitais, são vistos por capitalistas, por empresas, por pessoas até do povo, como objeto. Até as pessoas vão no pacote, sexualidade é um fetiche, uma mercadoria, as crianças são vendidas, o tráfico humano, as mulheres, o sexo e, até mesmo, daqui a pouco, as famílias vão começar a ser vendidas como produto. Por isso a luta de Francisco, que é bem profunda.

Laudato Si’ é muito mais lida do que a própria Amoris Laetitia, embora sejam temas diversos, porque em Laudato ele fala que tudo está interligado. É essa a questão chave, ou seja, uma nova antropologia. É uma nova teologia da criação. Ele volta aos clássicos, a São Francisco de Assis, também a São Boaventura e antigos padres da Igreja para ver o mundo com o olhar de Deus, o Deus trindade e não simplesmente do Pai, do Filho e do Espírito Santo como unidades quebradas. Não é mais um cristocentrismo, é nova perspectiva da vida, do mundo, da natureza, parte desse cosmos que somos, mais o princípio antrópico – todos pensamos e, portanto, temos responsabilidades sobre os outros seres vivos – e somos os mais frágeis dos seres vivos.

Mídia

A mídia também percebeu, mas ela sabe que se disser que Francisco está certo, não vende mais mercadoria, não é mais a sacerdotisa do capital, vai perder o emprego dela. E ela hoje é essencial para fazer a cabeça de todos. Veja o exemplo da Rede Globo de televisão, que faz a cabeça de todo mundo. O Brasil é mandado por aquela família do Rio de Janeiro e ninguém vai para rua derrubar o Temer se a Globo não mandar. Estamos na mão de um grande capitalismo transnacional, comandado por grandes grupos econômicos do capital andorinha que se exprime ou pela coerção das armas, na guerra, e Trump e Putin são a expressão disso, ou pela mídia que mantém a multidão domesticada ou, como diria Zygmunt Bauman, cegos morais.

Perspectiva que ressoa

Essa luzinha do papa Francisco, quase que como uma lamparina no meio do mundo, ressoa. Francisco, assim como o Greenpeace, como alguns profetas como Bauman, como [Gilles] Lipovetsky, percebe que estamos num momento central de decisão, sabendo que ninguém nos salva se não salvarmos o planeta e vice-versa. Esse é o paradoxo em que estamos metidos. E parece que o mundo sabe da importância de Francisco, ou de pessoas como ele. Não é só a figura dele, poderia ser o patriarca de Istambul, Bartolomeu I, por exemplo.

O veneno que entorpece

Então, há pessoas no mundo que estão sintonizadas, mas é uma minoria. Numa expressão de Dom Helder Câmara, diria que são minorias abraâmicas. Todo mundo escuta, sabe que trazem uma verdade profética, mas ninguém tem coragem de seguir porque significa mudança de hábitos. Eu mesmo preciso ir mais a pé até a universidade para perder minha barriga, mas somos muito comodistas. O capitalismo é um veneno, ficamos drogados com isso, enlouquecidos, e por isso somos sempre levados ao consumo. E o hedonismo ainda nos diz que esse prazer fugaz vai nos dar felicidade. Nós batemos palmas e, depois, morremos tristes, com úlcera, com câncer, em decorrência do consumo dos produtos que estão contaminados. Estamos nesse momento em que a única coisa que precisamos é, na palavra de João Batista Libânio, de lucidez. Mas nesse momento há loucura. Então, o lúcido virou louco e o louco parece ter virado lúcido.

A Igreja no Brasil teve participação ativa na conjuntura nacional, vide as experiências das Comunidades Eclesiais de Base. Como avalia a participação da Igreja no cenário nacional hoje?

Antes, me permito fazer um gancho com a ecologia e os bispos do Brasil para ir entrando nessa questão. Por que a Laudato Si’ penetrou mais na Universidade de São Paulo - USP, Universidade de Campinas - Unicamp, nos ateus, nos grupos dos movimentos sociais, nos sem terra do que nas paróquias? Porque, dos bispos brasileiros, há hoje no máximo uns 20 – ainda sendo bem generoso no número – que têm conexões umbilicais com as causas ecológicas. São patriarcas como Pedro Casaldáliga, que ainda estão vivos, mas bem velhinhos, outros mais novos como o bispo de São Gabriel da Cachoeira, o gaúcho dom Edson Damian, Pedro Luiz Stringhini, de Mogi das Cruzes, que faz marchas e lutas para salvar a reserva ecológica da Mata Atlântica e é um verdadeiro profeta. Ou seja, pode-se contar nos dedos os bispos nos estados que adotam as causas da ecologia integral, a causa dos movimentos ecológicos como a própria postura e que colocam isso como uma prioridade pessoal.

Assim, claro, o povo olha para o bispo e pensa: ‘ah, ele não dá bola para isso, por que eu vou dar? Não fala nunca sobre Laudato Si’, por que vou ler?’. Então, os de fora da Igreja leem, aplaudem, compreendem. No curso de Arquitetura da USP, por exemplo, se estuda isso no primeiro ano como nova maneira de pensar o espaço público dentro da perspectiva de Francisco da integralidade. Já nas paróquias ninguém nem lê a encíclica porque os bispos não estão conectados.

Agora, se perguntar quem dos bispos apoia os carismáticos, vai encontrar uns 200. Assim, claro, a Renovação Carismática ganha espaço. Se perguntar quem é do catecumenato, verá que são mais uns 200 e assim o catecumenato ganha expressão. E catequese? Nossa, daí chegamos a uns 400 e toda a catequese é sempre aplaudida. Agora, quem é o bispo que está ligado à questão ecológica? Vinte, dos quase 500. Aí compreendemos por que estamos diante de um drama que faz com que, entre a fala e a realidade, se dê um descompasso tremendo.

E a Igreja no Brasil?

Fernando Altemeyer Junior – A Igreja no Brasil ainda pode continuar sendo uma esperança. Primeiro do ponto de vista estatístico, mesmo que tenha caído muito o número de católicos nos últimos três anos segundo pesquisa do Datafolha. Ainda assim, se metade dos cerca de 200 milhões de pessoas for católica e tiver pelo menos alguma pertença dos múltiplos estilos de Igreja, ainda teríamos cerca de 100 milhões. O que significa que mais ou menos 10% dos católicos do mundo estão no Brasil. Isso é uma esperança, uma responsabilidade que é muito valiosa.

Para além disso, com a presença de Francisco e as novas sagrações episcopais e o novo estilo que ele tem imprimido na evangelização, temos visto ressurgirem algumas das flores primaveris do Vaticano II. Veja a Campanha da Fraternidade da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB - desde 1964, é uma dádiva o Brasil ter uma campanha quaresmal. A iniciativa foi copiada pela Alemanha, pela Suíça; vivi na Bélgica e vi como tinham no Brasil o modelo de campanha de quaresma. E veja, por exemplo, o tema deste ano, tratando a questão dos biomas, que faz com que a gente relembre toda a questão dos biomas brasileiros e da importância de preservá-los. Só isso como um grande tema de olhar cristão no Brasil é essencial. Nesse ponto, acho que a Igreja no Brasil continua sendo uma grande esperança.

Silêncios precisam ser combatidos

De outro lado, há silêncios. Precisariam os bispos, as Igrejas, os leigos assumirem esses silêncios para superá-los. A psicanálise explica que o silêncio diz mais do que a fala. Por exemplo, a questão dos afro-brasileiros, um povo sempre muito marcado e colocado em segundo plano na Igreja e nunca valorizado. E veja: a riqueza cultural do Brasil é negra. Como pode, ainda, uma Igreja estar marcada, especialmente nos seus postos de comando, só por brancos? Só tem mil padres negros dos 22 mil. Só há uns 12 ou 15 bispos negros dos atuais 393 bispos diocesanos. Se considerarmos o episcopado, ainda piora a situação, pois dos 476 bispos podemos considerar que há uns 20 bispos negros. Entre as freiras a situação já é melhor. Das 30 mil que temos no Brasil hoje, mais ou menos 15 mil são negras. Isso é uma questão que precisa ser trabalhada com maior seriedade, pois são as nossas raízes culturais. A cultura, as raízes são negras, mas a Igreja é branca. E quanto a isso há um silêncio, um descompasso brutal.

Outra questão é o aumento vertiginoso dos sem religião. Todo mundo fica falando e especialmente os bispos estão preocupados com a questão pentecostal, ou seja, o avanço das igrejas evangélicas pentecostais. De fato houve um grande aumento: dos 26% recentes, hoje estaríamos perto dos 30% da população brasileira dentro dessa chamada quarta onda pentecostal. Veja que são 30% dos 206 milhões, um belo número inédito na história brasileira. Mas, às vezes, os bispos, as igrejas, as comunidades não estão atentos ao afastamento religioso, à secularização, à não religião e também, dentro desse bloco, ao ateísmo.

Os sem religião hoje já são 14% e há poucos anos eram 6%. Ou seja, mais do que dobrou, enquanto os pentecostais vão crescendo de ponto em ponto. Há até alguns analistas que acham que já teriam até chegado e batido no teto, portanto a queda católica teria batido no piso. Ficaríamos com 50% de católicos, os crentes chegariam a 30 ou 35%, mas para mim é importante perceber como os jovens estão abandonando as Igrejas. Não Deus, mas certamente a religião. Isso é muito evidente e não está sendo assumido de forma pastoral. Ao jovem universitário, se fica oferecendo catequese do já católico. Ou seja, dar mais comida para quem já está gordinho. Ele não quer essa comida e quer discutir até se não preferia água a alimento sólido ou outro tipo de construção mística e espiritual e menos religiosa.

Esses estão entre os maiores dramas e são, também, os maiores desafios para o futuro do Brasil. É preciso assumir a cara de seu povo e encarar a forma como o jovem pós-moderno não se assume religiosamente, numa outra maneira de pensar Deus, sociedade, religião que não é fechada à transcendência, mas não aceita a linguagem que a Igreja Católica construiu desde o período colonial e que está esperando uma nova mensagem. Mas o pior é que esse problema nem está posto. É isso que me incomoda.

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Fernando Altemeyer Junior – Este ano, o desafio do ecumenismo está posto, porque nós estamos convidados a celebrar os 500 anos da Reforma com as igrejas luteranas. Que a gente celebre a intuição de Martinho Lutero e que a graça seja a motivação das nossas ações. Sola gratia é a frase maior da Reforma Luterana e é para nós também a palavra de esperança no futuro. Não temos uma contradição com essa palavra, temos uma sintonia e precisaremos superar as divergências, os ódios, as guerras, as intolerâncias com os irmãos evangélicos e construir essa ponte neste ano. Isso é algo que eu estimaria como o maior presente do século: igrejas mais unidas. O amor de Cristo nos uniu. Precisamos dizer isso, os católicos para os luteranos e os luteranos para os católicos nas igrejas.

Notas

[1] A Missa Tridentina ou Missa de São Pio V é a liturgia da Missa do Rito Romano contida nas edições típicas do Missal Romano, que foram publicadas de 1570-1962. Foi a liturgia da missa mais amplamente celebrada em todo o mundo, até que o Concílio Vaticano II pediu sua revisão, o que ocasionou a promulgação de uma nova liturgia pelo Papa Paulo VI em 1969, conhecida como Missa de Paulo VI. (Nota da IHU On-Line)

[2] Melquisedeque ou Melquisedec é um personagem bíblico do livro de Gênesis que interagiu com Abraão quando este retornou vitorioso da batalha de Sidim. É descrito como o rei de Salém e que não deixou descendência. (Nota da IHU On-Line)

[3] Wilhelm Reich foi um médico, psicanalista e cientista natural. Ex-colaborador de Sigmund Freud, rompeu com este para dar prosseguimento à elaboração de suas próprias ideias no campo da psicanálise. (Nota da IHU On-Line)

Edição: IHU On-Line