Crimes

Quebrar o silêncio das opressões na medicina é urgente, diz professora

"Vivemos numa sociedade patriarcal, machista e misógina. A faculdade de Medicina não é uma ilha", diz Silmara Conchão

Saúde Popular | São Paulo (SP) |
Mulher em ato contra feminicídio, em 2016
Mulher em ato contra feminicídio, em 2016 - Paulo Pinto/Agência PT

Nas últimas semanas, o debate sobre a misoginia no campo da medicina tem sido suscitado. São dois os casos que protagonizam a discussão: a absolvição do estudante da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), Daniel Tarciso da Silva Cardoso, acusado de estuprar uma estudante; e as denúncias de comentários e ilustrações machistas no material didático do cursinho de preparação para concursos de residência médica, MedGrupo.

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As denúncias ao MedGrupo foram amplamente divulgadas por uma estudante de medicina da Universidade Federal da Bahia que, ao usar o material, se deparou com exemplos de grave exposição misógina do corpo feminino. “Em certo caso, uma mulher era vítima de um relacionamento abusivo e, após traição, decidiu desfrutar da sua liberdade. A cena é retratada com o desenho de uma mulher seminua fantasiada de ‘diabinha‘”, relata a estudante em um trecho do e-mail enviado para a empresa.

Em outro caso, uma paciente portadora de vaginose bacteriana é retratada com o desenho de uma mulher com vários peixes em cima do seu corpo e um homem de nariz tampado devido ao mau cheiro. A última frase do caso relata que um dos testes necessários não foi realizado, porque o médico ficou “tão enjoado” que o diagnóstico era evidente.

Em resposta às reclamações, a empresa alegou que é “contra a agenda do politicamente correto”. E completou: “Sugerimos a todos que não gostam deste estilo que não usem o nosso material”.

Quando procurada pelo Saúde Popular, a equipe do MedGrupo argumentou que não possui quaisquer comentários a fazer e que “o material é usual de trabalho e não tem o objetivo de ‘denegrir‘ ninguém”.  

“Aí mora o perigo: a naturalização dessas questões”, analisa a socióloga e professora da Faculdade de Medicina do ABC, Silmara Conchão, frente às respostas da empresa. Em sua visão e na do médico Ricardo Teixeira, professor da FMUSP, casos como esses não devem ser tratados como isolados e fazem parte de uma realidade muito maior da formação médica.

“A gente vive numa sociedade patriarcal, machista e misógina. A faculdade de medicina não é uma ilha, aqui dentro é um espelho do que acontece lá fora”, completa Silmara. Os professores argumentam a necessidade de se debater um cenário mais amplo da formação médica: as hierarquias de poder, o ainda existente trote violento e o lugar do corpo da mulher na prática médica.

“Currículo oculto”

A socióloga explica que debater o machismo na medicina demanda estudar as relações de poder existentes na área. “Há uma hierarquia estabelecida, uma lei social que estabelece uma relação entre os mais fortes e os mais fracos”. Em se tratando das mulheres, seu lugar na hierarquia seria o mais baixo, explica a professora.

Neste sentido, Teixeira complementa que a medicina deve ser vista na perspectiva de um campo “tensionado e cheio de contradições”, e que sua dimensão política não deve ser deixada de lado. “Talvez a primeira coisa a dizer é que a medicina tem uma beleza intrínseca, ligada ao cuidado, à vida. Mas a gente não pode esquecer que ela está no centro de todo um esquema de poder no mundo contemporâneo, atravessado por todos os setores sociais. Não é uma bolha”, diz.

A socióloga aponta que o caso do MedGrupo compactua com práticas do “currículo oculto”, como os trotes na universidade e as opressões, o que desencadeia ações banalizadas que objetificam e desrespeitam a mulher. Exemplo disso é o fato de o Brasil se esmerar em práticas obstétricas violentas contra o corpo da mulher.

“Como o nosso sistema de saúde, tanto público como privado, vai receber pessoas com esse tipo de visão social? É inadmissível, nós não podemos compactuar com isso”, defende a socióloga.

“Denunciar é o primeiro passo”

Na busca de ações contrárias a essas práticas banalizadas, Conchão aponta que, de início, são dois os caminhos necessários: a quebra do silêncio e a estruturação de uma lei rígida para o sexismo. “Quando a gente consegue quebrar o silêncio, designar os focos desse currículo oculto, a gente consegue inverter essa relação de poder. As instituições têm que desenvolver uma verdadeira cruzada contra a naturalização dessas desigualdades”, defende.

Em moldes semelhantes à Lei 7.716, que define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor no Brasil, ela argumenta a urgência de uma lei que criminalize práticas misóginas e sexistas — como as observadas no material do MedGrupo. A socióloga aponta que a lei trabalharia no sentido de “desnaturalizar a objetificação da mulher na sociedade”.

Os professores também comentam a necessidade do debate sobre direitos humanos permear toda a formação médica — e não estar presente somente em disciplinas transversais e isoladas.

“O médico é preparado para ser alguém com profunda e sólida formação científica. A ideia do melhor médico está muito ligada ao êxito técnico que ele pode obter no exercício dessa profissão”, explica Teixeira. “Acho que isso faz com que o médico não entenda que, antes de um tecnólogo, ele é um cuidador”, completa.

Esperança

Acompanhado do debate, os dois professores apontam uma esperança no mesmo caminho: o aumento da discussão sobre direitos humanos na sociedade. O mesmo que o MedGrupo chama como “agenda do politicamente correto”, os professores caracterizam como uma “luz à formação médica”.

“As meninas já estão chegando aqui empoderadas. O que era tradição, naturalizado, oculto e escondido está sendo hoje revelado com mais ênfase”, diz a socióloga.

Para Teixeira, mudanças têm vindo da sociedade que “começa a colocar em xeque, inclusive, termos e condutas que estão completamente banalizados na medicina”.

Edição: Juliana Gonçalves