África

Imprensa independente denuncia censura e abuso de poder do governo na Zâmbia

Presidente zambiano recém-reeleito fez ameaças ao diretor-chefe de um dos principais jornais do país, The Post

Brasil de Fato | Joanesburgo (África do Sul) |
Manifestação contra fechamento do jornal zambiano The Post
Manifestação contra fechamento do jornal zambiano The Post - Reprodução / Facebook

O fundador e editor-chefe do jornal The Post, um dos principais veículos de comunicação independentes da Zâmbia, Fred M'membe alerta para o atual momento do país africano. Segundo ele, o país passa por uma profunda crise com as constantes ameaças e ataques à imprensa.

Fundado em 1991, o Post foi o principal veículo responsável pelas investigações sobre corrupção e abuso de poder do governo do recém-reeleito presidente Edgar Lungu, da Frente Patriótica (Patriotic Front - PF). Segundo M'membe, por isso, ele e sua equipe são alvos frequentes de perseguições. São cerca de 50 ações judiciais movidas contra ele atualmente.

"Há uma tentativa de destruir completamente o Post, de modo que seja impossível reconstruí-lo. Este processo começou anos atrás. Os regimes anteriores se continham um pouco, mas o atual regime não se contém em nada", expõe.

Perseguição

A última edição do relatório lançado pela organização de defesa da liberdade de imprensa Repórteres Sem Fronteiras indicou que Zâmbia se encontra no posto 114, dos 180 países que integram o índice de liberdade de imprensa.

Shadrack Chiluba*, um jornalista investigativo do Post, afirma que há um cerco aos órgãos de imprensa na Zâmbia. Profissionais trabalham em um ambiente de medo, em que sofrem assédio, são presos e têm suas vidas ameaçadas.

"Se você escreve uma notícia criticando o modo como a Frente Patriótica de Lungu está lidando com a situação, saiba que você receberá ameaças. Se eles te identificam, você sofrerá assédio, e eles estão dispostos a qualquer coisa para silenciar pontos de vista opostos ao deles", denuncia.

Algumas das ameaças são públicas. Em setembro de 2015, durante um discurso em Solwezi, na região noroeste da Zâmbia, o presidente zambiano falou sobre o Post, e seu editor-chefe, em tom ofensivo.

"Quero dizer a Fred M'membe que eu joguei a tampa fora. As linha de combate foram traçadas, mas a verdade é que Fred não pode lutar contra mim porque eu sou Chefe de Estado. Se ele quer lutar contra mim, que lute contra mim. Mas sejamos justos; ele tem o poder do jornal, eu não tenho. Mas a verdade é que M'membe não pode comigo porque eu sou Chefe de Estado... Alefwayafye ukwakufwila (Ele está procurando a morte), eu não vou fechar seu jornal shamwari (meu amigo), mas eu vou te pegar", declarou Lungu, de acordo com o site de notícias Lusaka Voice.

Presidente Edgar Lungu, da Frente Patriótica (Patriotic Front - PF). Foto: Reprodução / Facebook The Mast.

Assédio

M'membe também denuncia que o governo zambiano está usando instituições do Estado para assediar órgãos independentes de comunicação.

No ano passado, a Autoridade Fiscal Zambiana declarou a falência de seu jornal por aproximadamente R$ 1,5 milhão em impostos devidos. O Post contestou o valor e pediu ao Tribunal Fiscal de Recursos a reversão da falência. O Tribunal, que é uma corte especializada em questões fiscais, ordenou que a Autoridade Fiscal Zambiana reabrisse o jornal e devolvesse todo o equipamento confiscado, incluindo as máquinas de impressão e veículos. Esta decisão, até então, não foi cumprida.

Outros órgão de comunicação também não foram poupados. A TV Muvi e as rádios Komboni e Itezhi Itezhi foram fechadas pelo governo em agosto de 2016. A Autoridade dos Meios Independentes de Comunicação (Independent Broadcasting Authority - IBA) suspendeu as licenças de transmissão destes veículos por conduta anti-profissional, alegando que eles representam risco para a paz e a estabilidade nacional.

Alguns meses depois, os veículos foram reabertos. Este movimento foi interpretado como uma forma de intimidação para forçar estes veículos a adotarem a linha do partido no poder, segundo alguns jornalistas locais.

Outra jornalista, Tasilla*, relata que sofreu pressão para "baixar o tom" de suas reportagens. "Eu estou no lado certo da história. Há muita opressão sobre quem é independente e eu sei que isso não está certo e é algo que não devemos tolerar enquanto nação. Se não fizermos algo agora, isso vai continuar. Se isto quer dizer que devo reportar a verdade, vou reportar a verdade. É isso que me conforta", declara.

Capa da primeira edição do The Mast, em novembro de 2016. Foto: Reprodução.

Resistência

Após seu fechamento, o Post ressurgiu com um novo nome, The Mast, e uma pequena equipe de jornalistas que escrevem e imprimem o jornal em um local secreto. O Mast leva adiante a tradição do Post em se manifestar como um veículo de comunicação de esquerda e fortemente vinculado ao Congresso Pan-africano, que articula movimentos populares e sindicais do continente.

Em apoio à liberdade de expressão e história do jornal, a União Nacional dos Metalúrgicos da África do Sul (National Union of Metalworkers of South Africa - NUMSA) também divulgou uma nota em solidariedade ao veículo.

No documento, a organização relembra que durante o apartheid - regime de segregação racial adotado de 1948 a 1994 - na África do Sul, o povo de Zâmbia cumpriu um papel crítico ao oferecer abrigo para sul-africanos que fugiam da opressão. O governo zambiano daquele período abrigou lideranças do Congresso Nacional Africano (African National Congress - ANC) e do Partido Comunista Sul-africano (South African Communist Party - SACP), assim como de outros movimentos de libertação, fornecendo acomodação, treinamento militar e outros apoios.

"O povo de Zâmbia abriu suas casas e seus corações a sul-africanos que corriam perigo. É por este histórico que a NUMSA não pode ignorar a situação em que se encontram as trabalhadoras e trabalhadores das comunicações naquele país. Como sindicato, não ficaremos em silêncio quando são violados princípios democráticos básicos e trabalhadores sofrem", enfatiza a União.

*Nomes foram modificados para proteger as identidades.

**Com informações de Phakamile Hlubi, jornalista e porta-voz sindical da União Nacional dos Metalúrgicos da África do Sul (National Union of Metalworkers of South Africa - NUMSA).

Edição: Simone Freire