Coluna

A esquerda, o pecado da carne e o pragmatismo masoquista

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Da esquerda para a direita, Joesley, Júnior Friboi e Wesley Batista, os donos da JBS
Da esquerda para a direita, Joesley, Júnior Friboi e Wesley Batista, os donos da JBS - Reprodução
Inventamos um novo tipo de pragmatismo, sem resultados para as lutas populares

Na campanha eleitoral de 2014, a Friboi fez um donativo de R$ 200 mil, declarados, em favor de Jair Bolsonaro, candidato a deputado federal no Rio de Janeiro. O mesmo frigorífico foi um dos maiores anunciantes da mídia burguesa durante todo o período em que os principais veículos de imprensa, rádio e TV do país levaram adiante a campanha golpista. 

Pois bem, como todos sabemos, os gigantes do oligopólio da carne, como a Friboi e a Brasil Foods, dona das marcas Sadia e Perdigão, foram denunciados por subornar fiscais da vigilância sanitária a fim de ocultar práticas ilegais que põem em risco a saúde dos consumidores. (Segundo o portal Sensacionalista, a carne da Friboi tinha até pelos do ator Tony Ramos.)

Diante do escândalo, qual é a reação de boa parte da esquerda?

Um militante se mostra, numa rede social, preocupado com “a dissolução das forças produtivas”. Outros autores de posts e artigos, de variadas tendências políticas, denunciam, sem provas (e em alguns casos, nem mesmo a convicção), uma suposta conspiração imperialista para quebrar o capitalismo brasileiro.

Outros, mais cautelosos, se inquietam com a perda de mercados da pecuária brasileira na Europa e em outras regiões, com o avanço da concorrência e com as decisões de autoridades estrangeiras limitando as exportações brasileiras de carnes.

Não falta também quem reproduza, nos nossos espaços virtuais alternativos, o eterno argumento da direita de que o agronegócio é quem sustenta a economia brasileira, gerando divisas para o país com os seus negócios no exterior.

Nenhuma dessas ponderações é absurda, e a maioria dos que se manifestam nessa linha se situam no campo da defesa da soberania nacional e do desenvolvimento do nosso país. 

Mas... peraí, não somos nós os que sempre afirmamos, desde os nossos tempos de movimento estudantil secundarista, que o latifúndio (atual agronegócio) é um inimigo do povo brasileiro? Não somos nós que nos revoltamos e indignamos sempre que trabalhadores do campo são perseguidos, agredidos, caluniados, presos e (como acontece frequentemente, ainda hoje) até assassinados, por lutarem pela reforma agrária?

Quem, senão nós, intelectuais de esquerda, temos denunciado, até perder a voz ou nos tornarmos chatos, o aberrante cenário da concentração das terras no país? E não é a pata do boi que está destruindo a Amazônia para fazer pastagens? Não são os grandes fazendeiros os culpados pelo genocídio dos guaranis no Centro-Oeste?

Mas, peraí de novo... Deve existir um plano genial por trás disso tudo, uma lógica. Ah, rá, aqui está: encontramos uma brecha na tramoia golpista! Esses pit bulls do aparato judicial-policial não imaginam a besteira que fizeram. Agora o agronegócio, ferido gravemente pelo denuncismo irresponsável, vem pro nosso lado e... crau! Fora Temer, acabou o golpe, diretas-já, quem sabe até uma Constituinte...

Calma, companheiro, acorde, chega de sonhar. O “rei da soja” Blairo Maggi continua lá, firmão, no Ministério da Agricultura. A Globo dedicou boa parte da sua programação de domingo, dia 19 de março, em horário nobre, para convencer os consumidores de que podem comprar a sua picanha sem medo. Enquanto isso, o Michel oferecia um jantar com carnes, nobres também, para os igualmente nobres membros do corpo diplomático em Brasília.

Será então (olhando por outro ângulo) que a situação no campo brasileiro mudou e nós não percebemos? Será que senhores das imensas sesmarias já não são os mesmos? A oligarquia rural já aceita conviver democraticamente e em paz com as organizações camponesas?

Doce ilusão. Leio no portal do MST que nesta segunda-feira, 20 de março, o mesmo dia em que ativistas, blogueiros e outros “formadores de opinião” do campo progressista enfatizavam o lado positivo (digamos assim) do agronegócio, no sul da Bahia trinta famílias sem-terra foram despejadas de uma fazenda (antes improdutiva) que ocupavam há dez anos.

No Paraná, militantes do MST continuam na cadeia, como detentos comuns, pelo “crime” de lutar pela terra, enquanto a truculenta repressão policial a comunidades indígenas no mesmo Estado continua causando mortes.

Cada um desses episódios tem na sua raiz a intransigência dos fazendeiros, ainda apegados ao costume colonial de tratar a questão agrária como caso de polícia. E a propriedade (muitas vezes, obtida ilegalmente) continua a ser encarada como um bem sagrado, em desafio à Constituição que enfatiza a sua função social.

Trabalho escravo, eu ouvi trabalho escravo? Centenas de trabalhadores dos frigoríficos mutilados, todos os anos, pela rotina massacrante no corte e preparo dos frangos?

O que é isso, compadre? Deixe de lado o que diz o Sakamoto. Vamos olhar o panorama mais amplo. O nosso inimigo principal não é o agronegócio, é o imperialismo. Uma aliança com o agronegócio? Sim, tudo bem, mas apenas uma aliança tática. Temporária.

Como? Repita, não ouvi bem. O quê? Você está me dizendo que as grandes empresas rurais do Brasil estão totalmente integradas nas cadeias globais de produção agrícola e pecuária? Que todo o esquema de sementes, fertilizantes, agrotóxicos, máquinas, tratores que impulsionam os recordes de produção do campo brasileiro, é tudo transnacional? Que a Friboi anunciou no ano passado que ia mudar a sua sede para Dublin, a capital da Irlanda, como um meio de evitar o pagamento de impostos no Brasil?

Mas que hora para lembrar disso! Você não está entendendo que as grandes companhias de capital brasileiro estão sendo perseguidas por forças (ocultas) externas? Sim, as grandes empresas em geral, não é só a Odebrecht, as empreiteiras. Querem acabar com tudo. Sim, até com os amigos deles, os sócios, os capitalistas brasileiros que sempre apoiam tudo o que vem de fora, que adoram Miami.

E a aquela minha ideia de organizar um evento em solidariedade aos frigoríficos? Não? Mas por que os empresários não querem? Como? Então eles nem deram retorno à tua chamada? Já tentou pelo whatsapp? E o nosso plano de B, um ato em frente à PF para protestar contra a perseguição às grandes empresas? Nem entrou na pauta da reunião, que pena.

Agora entendi. A Friboi, a Sadia e demais frigoríficos, na verdade, estavam do lado da Dilma, embora parecesse que estavam com os coxinhas. Não, não é bem assim? Apoiaram e participaram do golpe? Caramba! O Bradesco também? Sim, quer dizer, não, até certo ponto... Estavam, mas no futuro talvez deixem de estar, quem sabe. Ou não. Depende da conjuntura. 

Ufa, caiu a ligação. Em boa hora. Esse papo estava ficando muito confuso. Mas valeu, beleza, acho que, finalmente, aprendi o que é pragmatismo, a arte de engolir sapos. Tipo assim, apertar a mão do Maluf em troca de 2 minutos diários no horário eleitoral.

Pragmatismo, no discurso da esquerda, é minimizar, relativizar ou flexibilizar certos princípios – ideias fundamentais de um projeto voltado para a transformação social no longo prazo – em troca de vantagens imediatas. Vivendo e aprendendo...

Alô, você, de novo? Não é bom falar em pragmatismo? Entendi, esse conceito não se aplica neste caso. De qualquer modo, acho que captei o mais importante. Certos amigos nossos estão a favor do apoio – tático, momentâneo, limitado – aos grandes frigoríficos, pecuaristas e oligopólios das carnes de ave e suíno, diante dessa ofensiva contra as nossas sagradas forças produtivas nacionais.

Assim, vamos obter algum saldo político, conquistar aliados preciosos, furar o cerco neoliberal e autoritário, avançar na nossa luta contra o retrocesso.

Não? Tudo vai continuar igual, o Lula ainda poderá ser impedido de se candidatar em 2018? E não ganhamos o apoio de nenhuma dessas empresas? Nada? E a previdência?

Acho que aqui temos uma novidade para os manuais da ciência política. Os livros dizem que o pragmatismo envolve concessões políticas e/ou ideológicas para alcançar resultados práticos. Uma espécie de barganha. Acabamos de inventar um novo tipo de pragmatismo: sem resultados de nenhum tipo em favor das lutas e das demandas populares, e nem mesmo a expectativa de obtê-los. O pragmatismo masoquista. Essa nem o Zizek explica.

(*) Igor Fuser é doutor em ciência política pela USP e professor de relações internacionais na Universidade Federal do ABC (UFABC).

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