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"Existe trabalho escravo na região Sul, sim", diz auditora fiscal do trabalho

Luize Surkamp coordenou as fiscalizações rurais em Santa Catarina por 12 anos

Brasil de Fato, Curitiba (PR) |
Livro lançado em 2012 expõe a situação de trabalhadores em condições análogas à escravidão no corte da erva-mate
Livro lançado em 2012 expõe a situação de trabalhadores em condições análogas à escravidão no corte da erva-mate - Poliana Dallabrida

Luize Surkamp é auditora fiscal do trabalho e co-autora do livro “Erva-Mate: Erva que Escraviza”, que conta a história de trabalhadores resgatados em situação análoga à escravidão na colheita da erva-mate. Ela começou a carreira em Rondônia, e durante seis anos e meio coordenou a fiscalização móvel na região Sul do país. Depois de receber uma série de ameaças anônimas no Meio-Oeste catarinense, pediu remoção para o Paraná, onde atua como coordenadora da fiscalização urbana em Curitiba e na região metropolitana.

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Em entrevista ao Brasil de Fato Paraná, Luiz Surkamp relata os desafios de sua trajetória e analisa as mudanças no cenário de combate ao trabalho escravo no Brasil:

 

Brasil de Fato Paraná - Como foram as suas primeiras experiências nas ações de combate ao trabalho escravo?

Luize Surkamp - Eu entrei no Ministério em 1995, em Rondônia, quando começou o combate nos moldes que ele é hoje. Mas só comecei a participar das ações diretas de combate ao trabalho escravo a partir de 1999, quando cheguei a Santa Catarina, no município de Caçador. E foi lá que eu comecei a me deparar com situações de extrema precariedade.

Aquela é uma região extremamente agrícola. Tinha muito reflorestamento, e a produção de tomate, alho, batata e erva-mate era muito forte. Eu me deparava com certas situações e não sabia bem o que fazer, porque ainda não sabia como funcionava o procedimento de resgate de trabalhadores.

Havia denúncias anônimas de trabalho análogo à escravidão, ou você fazia uma espécie de busca ativa?

Não era uma ação programada, a partir de uma denúncia, como acontece hoje. Eu apenas saía para fazer uma fiscalização de rotina, e aí me deparava com trabalhadores morando em barraco de lona, em situações extremamente precárias, e solicitava apoio. E a Detrae [Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo] sempre mandou equipes para me auxiliar.

A partir de 2009 é que foi criado o primeiro Grupo Especial de Fiscalização Móvel para atender Santa Catarina e Paraná.

Eu era coordenadora da fiscalização rural em Santa Catarina, e as situações que eu me deparava lá aconteciam também no Paraná. Eram basicamente os mesmos problemas.

Aqui no Paraná, nós tínhamos dois procuradores muito atuantes, e eles sentiam falta de uma auditora como eu, que fosse atrás desses casos. Eles relataram essa necessidade em Brasília, e aí foi que surgiu a possibilidade de se criar um grupo específico para a região Sul. Assim, eu aceitei o desafio e assumi a coordenação do grupo móvel. E foi um trabalho muito bacana.

O perfil dos casos de trabalho escravo no Sul é diferente do Norte e Nordeste do país?

A ideia que está no universo popular é que o trabalho escravo não está aqui. Está no Norte, bem longe daqui. E o que eu percebi não foi isso.

Antes de começar o trabalho no Sul, eu pedi para participar de algumas ações na região Norte, para pegar mais experiência. E aí eu cheguei à conclusão de que a situação que nos deparamos no Sul era até pior do que a que encontrávamos no Pará, na Bahia e no Mato Grosso, por exemplo.

Pior em que sentido?

Aqui nós temos o problema da temperatura, que aumenta o risco dos trabalhadores que dormem em alojamentos precários.

Por exemplo, se você está no Pará, tomar banho no rio não parece algo ruim. Afinal, está quente, a temperatura é altíssima. É até agradável dormir na rede, com tudo aberto. Não há exatamente uma agressão, pelo menos no sentido da temperatura.

Mas aqui no Sul, eu me deparava com barracos de lona nas regiões de General Carneiro, Palmas, Bituruna, onde a temperatura é negativa no inverno, e os trabalhadores não tinham nem um chuveiro disponível. Dentro do barraco, eles precisam fazer fogo para se aquecer, e aquela fumaça se misturava no ambiente onde eles dormiam. Parecia muito mais grave do que aquilo que eu havia encontrado no Norte.

É importante dizer que não existe trabalho "mais escravo", ou "menos escravo". Ou é, ou não é. Eu só faço essa comparação para demonstrar que, mesmo que muita gente ache que não, existe trabalho escravo no Sul, sim. E a situação é gravíssima, bem perto da nossa casa.

O lançamento do livro ajuda a quebrar esse estigma?

Sim. E a escolha pela erva-mate foi porque essa cultura é específica da região Sul. Só existe no Paraná, em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul, e alguma coisa no Mato Grosso do Sul. O recorte que eu fiz foi de 2009 a 2010, e a gente expôs um estudo da situação socioeconômica dos 209 trabalhadores resgatados naquele período, em nove fazendas: qual a escolaridade, o número de filhos, o tempo de contrato de trabalho, etc.

O curioso é que oito daqueles trabalhadores eu resgatei mais de uma vez. Eles voltavam para a mesma atividade, depois de resgatados, porque não eram inseridos em nenhum programa de reabilitação e requalificação profissional, e o único trabalho que eles conhecem e estão habituados a fazer é o corte da erva. Porque os pais fizeram, os irmãos fazem, e os filhos vão fazer também. E o empregador não percebe a necessidade de fazer as mudanças necessárias.

Essa resistência à mudança continua até hoje, por parte dos empregadores? De lá para cá, o que mudou no cenário do combate ao trabalho escravo no Brasil?

Sim. Existe um elemento cultural, por parte dos empregadores e dos trabalhadores, que não permite que eles enxerguem a prática do trabalho escravo como algo irregular. E eu enfrentei também essa questão das ameaças anônimas, porque trabalhava em um município muito pequeno, onde todos se conheciam, e todos sabiam onde eu morava. Aí, começou a ficar perigoso.

O fato é que aquela época, até 2010, foi de muita pró-atividade da nossa parte, e aí os casos apareceram mais. A gente mesmo é que demandava, porque tinha um serviço de inteligência para rastrear as regiões. Tanto que o Paraná chegou a ser o terceiro em número de ações no Brasil, e por dois anos esteve no topo do combate ao trabalho escravo, muito em função dos resgates no setor da cana-de-açúcar, no Norte do estado.

Mas é a falta de recursos, a falta de pessoal que costuma restringir o combate, e não só a questão da pró-atividade. E esse é o momento atual. A equipe hoje está reduzida, temos apenas dois motoristas para o estado inteiro, e as denúncias também diminuíram bastante.

Como você avalia a decisão de suspender a publicação da Lista Suja do Trabalho Escravo?

A Lista Suja sempre foi um instrumento muito poderoso. Quando a gente faz o resgate, a gente encontra várias situações em que a legislação foi descumprida, e o empregador recebe uma série de multas. Aí, se pagar a multa, ele fica tranquilo.

Por isso, a Lista é tão importante: ela fere a imagem do empresário, e mostra para que todos vejam que aquele empregador submeteu pessoas, em algum momento, na sua cadeia produtiva, a situações análogas à de escravo. E isso tem um valor maior do que qualquer multa. É a imagem de uma empresa, de um produto, que está em jogo.

Além disso, os bancos se comprometem a restringir o acesso ao crédito para as empresas que estão na Lista. Então, a publicação desses nomes era importantíssima, e a suspensão foi um retrocesso.

A discussão sempre girou em torno da falta de um critério específico para inclusão na lista. O empresário diz que não teve a chance de se defender das acusações de trabalho escravo, mas não é bem assim. O nome de um empregador só vai para a Lista quando os autos de infração são considerados procedentes e não cabe mais recurso. Espero que o Ministério do Trabalho consiga esclarecer e adequar tudo isso e volte a publicar a Lista Suja o quanto antes.

Quais os impactos das reformas trabalhistas propostas pelo governo Michel Temer, e o que é possível prever para os próximos anos?

A gente vê essas reformas com muita preocupação, especialmente no que diz respeito ao "negociado sobre o legislado". Hoje, a garantia que nós temos são uma CLT e os acordos coletivos. Os sindicatos têm plena liberdade de fazer essas negociações coletivas, desde que não desrespeitem a Constituição e a CLT. A liberdade que existe hoje é a de ampliar os direitos do trabalhadores, e nunca de reduzir. Não pode reduzir salário, não pode aumentar jornada.

O que o governo está propondo agora é que essas convenções sejam superiores ao que está legislado, e isso nos preocupa bastante. Até porque o sindicato costuma ficar em uma situação difícil, desigual na negociação com os empresários, e a Constituição e a CLT precisam ser respeitadas sempre, para garantir o direito dos trabalhadores nessas situações.

Edição: Ednubia Ghisi