Justiça

Guardião da Constituição? Especialistas analisam papel do STF nos golpes de 64 e 16

"Supremo deveria ter tido postura mais cuidadosa, que permitisse garantir direitos" em ambos os casos, diz pesquisador

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
Moreira Alves, ex-ministro o Supremo indicado por Geisel, se aposentou apenas em 2003
Moreira Alves, ex-ministro o Supremo indicado por Geisel, se aposentou apenas em 2003 - STF

Órgão máximo da Justiça brasileira, o Supremo Tribunal Federal (STF) tem, formalmente, a função de guardar a Constituição do país. Mas, na prática, a corte também desempenha um papel político que por duas vezes esteve relacionado, se não diretamente, tangencialmente aos processos de desestabilização e ruptura democrática no país: no golpe de 1964 e no processo que culminou no impeachment da presidenta Dilma Rousseff.

Em entrevista ao Brasil de Fato, Rafael Mafei Queiroz, professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), lembra que “no exato momento do golpe de 1964, o presidente do STF, ministro Álvaro Ribeiro da Costa, que falava oficialmente pela corte, apoiou a deposição do ex-presidente João Goulart. Nos jornais, ele saudou a ‘normalização constitucional’ após a posse de Ranieri Mazzilli” .

Frederico Almeida, professor de Ciência Política da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), opina que no contexto atual, o “Supremo entrou na lógica da [operação] Lava Jato”. E compara o papel institucional do STF nos golpes: “Em 1964 e em 2016 o papel do STF foi de legitimar esses processos políticos. Em qualquer um dos casos, o Supremo deveria ter tido uma postura mais cuidadosa, que permitisse garantir direitos”.

Ele pondera que “sempre há tensão [entre Poderes]: o que vai acontecendo é uma acomodação. O que se torna preocupante, fora desse contexto de acomodação, é termos um processo de ruptura democrática - um impeachment que serviu como golpe parlamentar - em grande parte alimentado por uma estratégia judicial de desestabilização política”, crítica.

A atuação do órgão é, desta forma, pautado por uma série de questões complexas. Para Almeida, no entanto, “há uma série de conflitos, mas, na minha opinião, eles estão mais interessados em preservar a própria a instituição do que garantir a Constituição e o regime democrático”.

Histórico

Durante o processo de redemocratização do país, parte da sociedade brasileira passou também a projetar um novo papel para o judiciário. Havia, de acordo com Almeida, um desejo de que o acesso aos serviços judiciais fosse ampliado.

Havia também o desejo pela democratização tanto na organização interna - mecanismos de escolha, o poder que as carreiras profissionais teriam para escolher seus dirigentes, quanto na ideia de uma renovação política e cultural dentro do Judiciário", ressalta o professor da universidade paulista.

Acontece, no entanto, que o STF permaneceu intocado mesmo no curto período de democracia após o golpe. Isso porque, como lembra Almeida, os “ministros nomeados pela ditadura continuaram lá. Os mecanismos de escolha também”. Apenas em 2003 os dois últimos ministros indicados pela ditadura que permaneciam no Supremo – Sydney Sanches e Moreira Alves- se aposentam”, recorda.

Mafei, entretanto, relativiza o legado ditatorial no STF durante a democracia. “Não acho que devamos superestimar o legado específico da ditadura. O judiciário era um poder altamente institucionalizado antes dela, tinha suas regras de funcionamento, seus hábitos, costumes e procedimentos. O Supremo deu incontáveis mostras de como podia tomar decisões desagradáveis ao governo militar”, ressalta. Nesse sentido, lembra que “a Constituição de 1988 trouxe importantes modificações para o Judiciário pelo alargamento de suas competências e pela ampliação da judicialização como um todo”.

O cientista político da Unicamp concorda que o funcionamento do STF mudou, ampliando suas atribuições, mas resume o novo contexto reafirmando a ausência de democratização: “Na verdade, ele ganhou muito mais poder, mas sem controle social. Nós temos instituições muito autônomas e com muito poder e pouco controle”.

Almeida opina ainda que “a democratização não é de submissão desses órgãos ao poder político eleito, tampouco de submetê-los ao voto popular. Em certo sentido, o fortalecimento do Ministério Público, o surgimento de causas coletivas, foi uma democratização, no sentido de ampliar acesso e conquistar direitos. Os poderes políticos deram espaço. Eram demandas não atendidas pelos governos e parlamentares eleitos. Mas isso foi limitado e sem controle social e externo”.

É preciso destacar, neste contexto, a complexidade do debate em torno do STF, como pondera Mafei. Ele lembra que mesmo durante a ditadura o colegiado tomou medidas que desagradaram a ditadura em eventos que geraram atritos entre julgadores e governante: “Os então governadores Mauro Borges (Goiás) e Miguel Arraes (Pernambuco), por exemplo, foram beneficiados por habeas corpus que enfureceram os militares, que ensaiaram desobedecer à ordem concedida pelo STF. Nesse contexto, o mesmo Ribeiro da Costa, que saudara o golpe contra Jango, defendeu pública e duramente a liberdade decisória da corte. Chegou a bater boca com Costa e Silva, então ministro da Guerra, pelos jornais”.

Após este conflito, é possível dizer que, em matérias mais diretamente ligadas aos conflitos políticos da época, como liberdade de expressão e crimes contra a segurança nacional, a posição do tribunal foi oscilante: às vezes faziam duros discursos contra abusos do governo, mas poucas foram as decisões da corte que efetivamente causaram constrangimentos aos militares que os obrigassem a reformar suas práticas”, contextualiza.

Edição: Vanessa Martina Silva