Pernambuco

CRÔNICA

As minhas camélias, Bianca

Haveria quem dissesse “furto”, em verdade teu primeiro gesto de carinho, o de penetrar os bolsos de minha calça de linho

Brasil de Fato | Recife (PE) |
*Roberto Efrem Filho – ou Beto, como gosta – é do Recife e, vez ou outra, desajeita-se na palavra.
*Roberto Efrem Filho – ou Beto, como gosta – é do Recife e, vez ou outra, desajeita-se na palavra. - Arquivo pessoal

Tua morte, Bianca, cheira às camélias que tu desconhecias e eu te apresentei no folheto de propaganda da C&A. Havia umas blusinhas em promoção, tu ensaiaste entrar na loja, defendi-me, precisava chegar à quitinete e te amar. Havia pressa, muita pressa em tudo, Bianca, naqueles dias. Mas enquanto atravessávamos a Rua do Hospício, tu  me falaste das florezinhas no papel couchê, do quão belas eram, do quanto tu as querias no buquê do nosso casamento – tu vivias desenhando a cerimônia e todos os convidados fantasiosos, certo mesmo somente o José Arnaldo, o segurança da boate que me apresentou a ti, Bianca, naquela madrugada de quinta-feira de março, eu, zerado, pude apenas te oferecer um café, o hálito azedo de uma noite amarga e um agrado que tu me levaste do bolso esquerdo da calça julgando que eu não perceberia. Haveria quem dissesse “furto”, em verdade teu primeiro gesto de carinho, Bianca, o de penetrar indecorosa os bolsos de minha melhor calça de linho no instante em que eu, já dentro de casa, tu despida, dispunha o disco de Cartola às primeiras horas da manhã. “As camélias possuem cores fortes que variam do branco ao vermelho, algumas variedades são pintalgadas ou manchadas”. Eu te disse diante da estante, Bianca, com a enciclopédia britânica ilustrada às mãos. Tu sorriste ao meu pescoço, deitando o meu paletó, a camisa branca de mangas compridas, acostumando as minhas costas aos pelos abaixo do teu umbigo, Bianca, proferindo sempre cinco ou seis ofensas, palavras baixas que eu parecia recolher ao chão ao tempo em que eu me entornava e tu me abraçavas, para dentro. Agora, Bianca, as três balas que cruzaram teu peito abrem jardins na calçada. Eu, José Arnaldo, quatro colegas tuas e uma pequena multidão de policiais e transeuntes assistimos a teu corpo despetalar o fim da tarde. Tu havias me contado que teu pai andava pelas ruas do centro a te procurar. José Arnaldo o encontrara, dias atrás, num dos bares da Praça Maciel Pinheiro. “A porra daquele veado roubou o dinheiro da mãe!” – ele urrava a quem passasse e profanava teu nome de batismo, Bianca, que eu pronunciava na cama, sagradamente, quando tuas pernas cobriam as minhas. “Aparício”. Tu não tinhas roubado tua mãe, Bianca. Levaste tão só o dinheiro do vaso de porcelana verde. Querias pagar a tatuagem, fazer-me uma surpresa, apresentar-me, em tua pele, estas camélias roseadas que, contra o asfalto, pairam desconcertadas diante da cidade e do meu desespero, Bianca, do meu desespero em flor.

Edição: Monyse Ravena