Educação

Movimentos pró-educação criticam retirada de questão de gênero da base curricular

Proposta do MEC desrespeita debate realizado com profissionais da educação por meio de conferências, critica CNTE

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Debate sobre gênero e orientação sexual nas escolas é uma luta histórica dos movimentos sociais
Debate sobre gênero e orientação sexual nas escolas é uma luta histórica dos movimentos sociais - Reprodução/UBES

Movimentos sociais que militam pelo direito à educação prometem se opor à versão da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) para a educação infantil e o ensino fundamental apresentada pelo governo de Michel Temer na última semana. Entre as principais críticas, estão a retirada da abordagem pedagógica de questões de gênero e orientação sexual, brechas para aumentar a privatização da educação pública e o fato de o governo ter ignorado todo um acúmulo de debates realizados de forma democrática desde 2010.

O documento estabelece os objetivos de competências e de aprendizagem de cada ano escolar para os 49 milhões de alunos das 190 mil escolas de ensino infantil e básico do país, das redes públicas e privadas. O texto agora segue para o Conselho Nacional de Educação, que deverá apreciá-lo até dezembro. Neste processo, estão previstas a realização de cinco audiências públicas, uma em cada região do país, que serão transmitidas via internet. Após o parecer, o Conselho encaminha a proposta final do documento para homologação do ministro da Educação, José Mendonça Bezerra Filho.

Após Temer receber membros da Frente Parlamentar Evangélica no Palácio do Planalto, como divulgou o jornal Folha de S. Paulo, o Ministério da Educação (MEC) retirou do documento trechos que diziam que os estudantes teriam de respeitar a orientação sexual dos demais e suprimiu a palavra “gênero” em alguns trechos. A versão divulgada aos jornalistas com embargo dias antes da apresentação oficial ainda continha esses termos. Segundo a pasta, a última versão passou por “ajustes finais de editoração/redação”.

A retirada do termo "orientação sexual" e das discussões sobre questões de gênero era uma demanda de setores conservadores do Congresso Nacional.  Já a garantia do debate sobre essas temáticas nas escolas é uma luta histórica dos movimentos sociais de educação.

"A mudança foi feita depois que o juiz terminou o jogo. Foi feita uma divulgação para a imprensa com a garantia de que aquele seria o documento encaminhado ao Conselho Nacional de Educação. Foi uma falta de compromisso absoluto com o povo. O MEC retirou aqueles pontos que, entre aspas, são polêmicos para aquela elite conservadora. É um grande retrocesso", diz o comentarista de educação da TVT, Gilberto Alvarez. 

O Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec), embora faça uma análise global positiva do documento, “considera um retrocesso a retirada do trabalho pedagógico com questões de gênero e de orientação sexual”, segundo nota publicada pela entidade que reafirma defender “a educação pública, laica, voltada para valores democráticos e para o respeito à diversidade, à pluralidade e ao debate”. A organização irá agora se debruçar na análise de cada tema apresentado no documento.

"Retirar o debate da orientação sexual e da identidade de gênero mascara a situação real que existe na escola hoje. Uma das causas do abandono é a homofobia. Quando se retira isso da BNCC, afasta-se do mundo real, é muito grave", afirmou o secretário de Educação do Ceará e presidente do Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed), Idilvan Alencar, à Agência Brasil.

O coordenador-geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, Daniel Cara, defendeu que o documento deve seguir a Constituição Federal, que define que todos têm que ser iguais perante a lei e considerou a mudança “injustificável”. Segundo ele afirmou à Agência Brasil, "a escola tem missão de garantir que na sociedade todos respeitem todas as formas de identidade. Não colocar essa questão na BNCC significa que não vão refletir sobre um país que é machista, misógino, homofóbico. É um recuo grave."

"Programa privatista"

Na Comissão de Educação, Cultura e Esporte do Senado, o tema dividiu opiniões. Humberto Costa (PT-PE) considera o documento retrógrado e conservador e defende que proibir o uso das expressões “orientação sexual” e “identidade de gênero” nos currículos, como prevê o documento, vai abrir espaço para que aconteçam mais casos de violência. Já José Medeiros (PSD-MT) concorda com o texto do MEC e avalia que o debate não cabe às escolas.

Em nota, o MEC diz que o documento "preserva e garante como pressupostos o respeito, a abertura à pluralidade, a valorização da diversidade de indivíduos e grupos sociais, identidades, contra preconceito de origem, etnia, gênero, convicção religiosa ou de qualquer natureza e a promoção dos direitos humanos".

“Foram retirados conceitos fundamentais na educação, como identidade de gênero e questões sexuais, além de privilegiar o setor privado, que poderá ganhar espaço tanto na oferta de materiais didáticos como na formação dos professores. Empresas poderão vender pacotes de formação para estados e municípios e isso tira do setor público a possibilidade de produzir políticas. É um programa privatista, com a cara desse governo”, diz o presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), Heleno Araújo.

"A base curricular foi concebida para garantir direitos educacionais para crianças e jovens do Brasil, mas o que se vê é um documento que foi contaminado por entidades empresariais que, pelo jeito, tiveram acesso ao conteúdo e discutiram esse documento. A comunidade escolar ficou à mercê", observa Gilberto Alvarez, da TVT. "Se fragmentou a concepção de educação básica, pois tirou o ensino médio do documento. Na parte de História, por exemplo, voltou a ideia de uma história absolutamente cronológica. Uma visão sociológica e crítica do fato histórico não faz parte do documento."

A ideia é que a base curricular entre em vigor em 2019 e que 2018 seja dedicado para o treinamento dos 2 milhões de professores e para a reelaboração dos currículos, pelas secretarias municipais e estaduais da Educação. "O Brasil perde a etapa histórica de fazer com que base pudesse uniformizar o ensino no país, pois ela nasceu para isso. Mas foram as entidades empresariais que foram a mídia divulgar a base. Toda participação da comunidade foi ignorada", diz Alvarez.

Uma primeira versão do documento havia sido entregue ao Conselho Nacional de Educação pela então presidenta Dilma Rousseff em setembro de 2015 reunindo 12 milhões de sugestões de escolas, entidades educacionais, docentes, especialistas e movimentos sociais. O documento foi submetido a várias audiências públicas. “O governo anterior já tinha entregue uma proposta ao Conselho Nacional de Educação, mas Temer formulou uma nova versão. O Fórum Nacional de Educação não foi nem chamado para o debate”, critica Araújo.

“No processo, houve ausência dos professores da educação básica, que vão aplicar essa base curricular nas salas de aula”, continuou o presidente da CNTE. “Produziram um documento no gabinete para impor aos professores, mas nós não aceitaremos essa imposição, desconsideramos esse projeto e esperamos que o Conselho Nacional de Educação cumpra o papel de fazer debates e ouvir quem está na base das políticas educacionais do país.”

Em nota, o Cenpec afirmou que as políticas públicas educacionais “precisam de ampla adesão da comunidade educacional na construção de consensos possíveis. Por isso, a BNCC deve ser discutida abertamente pela sociedade e não apenas por um ou outro setor”.

“O MEC não pode simplesmente alterar um documento construído coletivamente”, defende a diretora da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (Ubes) Fabíola Loguercio. “Precisamos exigir um ensino público que de fato forme um pensamento crítico e não podemos deixar que ninguém rasgue o Plano Nacional de Educação.”

Mudança de versão

Entre as competências que devem ser desenvolvidas ao longo de toda a educação básica, os estudantes devem ser capazes de "exercitar a empatia, o diálogo, a resolução de conflitos e a cooperação, fazendo-se respeitar e promovendo o respeito ao outro, com acolhimento e valorização da diversidade de indivíduos e de grupos sociais, seus saberes, identidades, culturas e potencialidades, sem preconceitos de origem, etnia, gênero, idade, habilidade/necessidade, convicção religiosa ou de qualquer outra natureza, reconhecendo-se como parte de uma coletividade com a qual deve se comprometer".

Na versão entregue aos jornalistas antes da apresentação oficial, além da retirada da expressão "orientação sexual", também houve alteração em um trecho que destacava que os sistemas e redes de ensino devem incorporar aos currículos temas "contemporâneos que afetam a vida humana". Na versão entregue aos jornalistas apareciam os temas "sexualidade e gênero". A versão final restringiu-se ao termo "sexualidade".

Quando trata das habilidades a serem desenvolvidas em ciências, no 8º ano, a versão dos jornalistas incluía a necessidade de acolher a diversidade de indivíduos, sem preconceitos baseados na identidade de gênero e orientação sexual. A última versão traz apenas a expressão "diferenças de gênero".

 

*Com informações da Agência Senado, Agência Câmara, Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo

Edição: Rede Brasil Atual