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Crônica: Telê Santana e a Independência do Futebol Brasileiro

Assim como Tiradentes e Tancredo Neves, o mestre também morreu em 21 de abril

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

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 Telê Santana faleceu há 11 anos deixando a sua marca na história do futebol brasileiro
Telê Santana faleceu há 11 anos deixando a sua marca na história do futebol brasileiro - Foto: Michael Serra / Arquivo Histórico do São Paulo FC

Os principais feitos de Telê ocorreram entre os anos de 1982 e 1993, em dois momentos distintos. O primeiro é fruto do contexto dos anos de 1970, quando o Brasil vivenciava o contraste entre a alegria do tricampeonato mundial – com a posterior despedida de Pelé da seleção – e a tristeza dos chamados Anos de Chumbo. Na mesma época, o mundo assistia o futebol-total (exemplificado pelos vice-campeonatos mundiais do chamado Carrossel Holandês, em 1974 e 1978) ao mesmo tempo em que convivia com o clima tenso proporcionado pela Guerra Fria. Assim como hoje, alastravam-se os conflitos e as desigualdades nos cinco continentes. E o futebol não ficaria de fora desse ambiente.

A elegância das equipes da Copa de 1970 no México foi substituída, nos anos e nos torneios seguintes na Alemanha (1974) e na Argentina (1978), pela mecânica sem graça dos times, inclusive os sul-americanos. Pouco se via e muito se copiava. Pareciam jogos destinados a terminar em zero a zero. Mas, como diz o velho ditado  em que "tudo passa", eis que um alento ressurge, é claro, nas terras tupiniquins.

Tudo começou com o vice-campeonato no Mundialito realizado no Uruguai, em 1981. Apesar da derrota na final para a equipe da casa, a seleção brasileira havia goleado a poderosa Alemanha de Rummenigge, o jogador mais badalado da época, por 4 a 1, na fase de grupos. Logo depois desse torneio, ocorreram três convincentes vitórias durante uma excursão à Europa. A seleção nacional emplacou vitórias contra a Inglaterra (0 a 1), a França  (1 a 3) e a mesma Alemanha  (1 a 2), este último jogo marcado pelas defesas de Waldir Peres diante das cobranças de pênaltis de Paul Breitner.  Eram sinais de que algo estava por vir.

E não foi por acaso que, em seguida, o mundo cheio de conflitos assistiu de “boca aberta” cinco jogos que mudaram a história da humanidade, cinco obras primas conduzidas por um homem, que fez da derrota uma virtude e não um problema a ser explicado. Os 2 a 1 sobre a União Soviética de Dasayev, as goleadas de 4 a 1 e 4 a 0, sobre a Escócia e a Nova Zelândia, respectivamente, e o saboroso 3 a 1 contra a Argentina - com expulsão de Maradona e tudo - eram apenas as entradas para o prato principal, mesmo que nos tenha sido um pouco indigesto.  

Brasil e Itália jogariam no Estádio Sarrià, em Barcelona, na Espanha, em 5 de julho de 1982, e a derrota de 2 a 3 para Paolo Rossi e Companhia foi, para muitos, o melhor espetáculo da história do futebol. 

Logo depois, Telê saiu do comando do escreve canarinho e retornou três anos mais tarde, para comandar, já sem o mesmo brilho, a equipe nas eliminatórias e em sua segunda Copa do Mundo, também realizada no México, em 1986. Com pouco treinamento e divisões internas, a já esperada desclassificação ocorreu de maneira trágica, através de pênaltis desperdiçados - fosse pelo craque Zico durante o tempo normal de partida, fosse com os craques Sócrates e Júlio César nas disputas pela vaga. A amarga derrota para a França viria a desmoronar o castelo de confiança depositada pela nação no treinador.

Mestre Telê nunca mais comandou a seleção, tendo sido marcado por alguns cronistas (para não chamar de oportunistas) e torcedores de pé-frio. Conviveu com esse estigma até receber um convite para dirigir o time do São Paulo Futebol Clube, no começo dos anos de 1990, período que tanto o técnico como o referido time encontravam-se em baixa evidência, sem conquistas de títulos expressivos.

Esse segundo momento era o início de um das fases mais celebradas do futebol brasileiro, semelhante ao feitos dos bicampeonatos mundiais do Santos Futebol Clube, após as vitórias nas Copas Intercontinentais  de 1962 e 1963, e da seleção brasileira, nas Copas do Mundo de 1958 e 1962. O Tricolor do Morumbi se tornaria bicampeão Mundial Interclubes, em 1992 e 1993, jogando um futebol aos moldes da seleção da Copa da Espanha, mas ainda mais eficiente. A empolgação geraria frutos,  mesmo aos que ainda pregavam o futebol-força, como o visto na sofrível conquista do tetracampeonato mundial de 1994, realizada nos Estados Unidos da América.  

A crônica E então a gente faz amor por Telê-patia do jornalista Matinas Suzuki Júnior, publicada na Folha de S. Paulo, em 14 de dezembro de 1993, ilustra aqueles momentos de euforia, que em muito se aproxima do atual namoro dos brasileiros com o técnico Tite.

Pode-se afirmar que o futebol brasileiro das últimas quatro décadas está dividido em duas fases, quase que idênticas sonoramente: a fase Pelé e a fase Telê...Como os grandes gênios da raça, de Machado de Assis a Caetano Veloso, Telê Santana pegou o que havia de mais moderno no mundo e fez uma re-elaboração local que seria desenvolvida no nível do melhor da linguagem universal.

A lição de Telê Santana, hoje em dia, no Brasil de hoje, precisa ser maior do que a lição do futebol: ele milita contra o atraso, contra a má digestão, contra a falta de ética, contra todas as forças que querem paralisar um radical processo de modernização. O exemplo vencedor de sua luta no futebol deveria ser o exemplo de uma luta obrigatória em todas as esferas da sociedade brasileira... “At Play in the Fields of God”. Brincando - ou jogando - nos campos do Senhor. Telê Santana, o semeador. 

Telê Santana logo se aposentou para cuidar da saúde. Faleceu em 21 de abril, data em que celebramos a busca pela liberdade do povo brasileiro, representada também pelo renascimento do futebol-arte.

José Luiz Fernandes Cerveira Filho é doutor em Ciências Sociais pela Universidade Federal de São Carlos e professor de sociologia na Universidade Federal do Paraná.

Luciano Victor Barros Maluly é doutor em Ciências da Comunicação e professor de jornalismo esportivo, ambos na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo.

Edição: Anelize Moreira