Direitos humanos

Divergências sobre trabalho escravo atrasam regulamentação, diz procurador

Pelo texto, áreas rurais ou urbanas que tenham cultivo de drogas ou exploração de mão de obra devem ser desapropriadas

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PEC do Trabalho Escravo foi defendida por diversas entidades civis e instituições, mas fortemente criticada pela bancada ruralista
PEC do Trabalho Escravo foi defendida por diversas entidades civis e instituições, mas fortemente criticada pela bancada ruralista - Agência Brasil

A Emenda Constitucional do Trabalho Escravo, promulgada em 2014, ainda não foi regulamentada. O texto determina que as propriedades onde forem encontradas práticas de exploração de trabalho escravo devem ser desapropriadas. A proposta de emenda à Constituição (PEC) levou 15 anos para ser apreciada pelos parlamentares.

Pelo texto, que alterou o Artigo 243 da Constituição Federal, as áreas rurais ou urbanas que contenham cultivo de drogas, além da exploração de mão de obra, devem ser destinadas à reforma agrária ou a programas de habitação popular, sem qualquer indenização para o proprietário.

A chamada PEC do Trabalho Escravo, que chegou a ser considerada por alguns apoiadores como a “segunda abolição da escravatura” no país, foi defendida por diversas entidades civis e instituições ligadas à Justiça do Trabalho, mas fortemente criticada por integrantes da bancada ruralista do Congresso.

A PEC começou a tramitar em 1999 no Senado, onde foi aprovada de imediato. Na Câmara, foi aprovada em primeiro turno em 2004, mas o segundo turno da votação, necessário por se tratar de mudança à Constituição, só ocorreu em 2012. E dois anos depois, em 2014, teve sua apreciação concluída novamente pelo Senado.

A emenda, no entanto, deve ser regulamentada por lei complementar para ter validade prática. Para o vice-coordenador nacional da Coordenadoria de Erradicação do Trabalho Escravo (Conaete) da Procuradoria-Geral do Trabalho, Maurício Ferreira, o atraso na regulamentação se deve a divergências em torno do conceito de trabalho escravo.

“A ausência da regulamentação deixa muito a desejar porque ela não traz a efetividade desejada pela PEC. Ou seja, embora a Constituição tenha modificado os critérios para que haja a expropriação [das terras], na prática ela ainda não vem ocorrendo. A grande questão de fundo nisso aí é a modificação do conceito de trabalho escravo, que eles querem fazer um retrocesso na nossa legislação”, disse Ferreira.

Atualmente, a legislação brasileira considera trabalho escravo qualquer atividade laboral que submeta o empregado a “trabalhos forçados ou à jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto”, conforme redação do Código Penal.

Para quem comete o crime de redução do empregado à condição análoga à escravidão, o código prevê prisão de dois a oito anos e multa, além da pena correspondente à violência cometida contra o empregado. A pena é aumentada pela metade se o crime for cometido contra criança e adolescente ou por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem.

Segundo o procurador, tramitam no Congresso duas propostas (uma na Câmara e outra no Senado) que, para ele, seguem na contramão da Emenda Constitucional do Trabalho Escravo e buscam restringir a definição de escravidão. “[As propostas] defendem que haja a classificação do trabalho escravo apenas quando houver o cerceamento da liberdade. Ou seja, é um conceito da época da escrava Isaura, aquela figura do escravo acorrentado, sem liberdade, o que não ocorre nos dias de hoje. Hoje, a escravidão acontece por condições indignas de trabalho ou por uma jornada tão extenuante que o trabalhador muitas vezes não consegue recompor sua força pra sobreviver”, disse.

Uma das propostas que mudam as regras do trabalho rural e afetam a forma como é considerada a escravidão foi apresentada na Câmara no fim do ano passado pelo deputado Nilson Leitão (PSDB-MT), presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária.

A proposta estabelece que o empregado rural é aquele que “presta serviços de natureza não eventual a empregador rural ou agroindustrial, sob a dependência e subordinação deste e mediante salário ou remuneração de qualquer espécie”. O texto ainda retira a responsabilidade do empregador sobre acidentes ocorridos com o trabalhador em veículos da empresa e permite a realização de jornadas diárias de até 12 horas em determinadas situações.

No bojo das discussões da reforma trabalhista, a proposta de Nilson Leitão causou polêmica e gerou forte reação de diversas entidades de defesa dos direitos humanos. Em nota, o parlamentar se defendeu dizendo que houve uma “interpretação equivocada” do projeto e pediu à presidência da Câmara para suspender a comissão especial que foi criada para discutir a proposta.

O deputado propôs a realização de uma comissão geral no plenário da Câmara com a presença de diferentes segmentos da sociedade para discutir o projeto. Ele reafirmou que sua intenção é tornar a lei autoaplicável, dando segurança jurídica para todas as partes envolvidas, mas principalmente modernizando, garantindo e formalizando os direitos dos trabalhadores rurais.

Enquanto isso, integrantes do Ministério Público do Trabalho tentam avançar nas negociações em torno da regulamentação da Emenda Constitucional do Trabalho Escravo de forma a manter o conceito atual. “O conceito brasileiro de trabalho escravo, no Código Penal, é um conceito excelente, inclusive, vários países têm replicado esse conceito nacional. E a bancada ruralista quer diminuir as hipóteses de incidência do trabalho escravo por meio do conceito. Então, o grande entrave é esse aí”, afirmou Ferreira.

As negociações em torno da forma como deve ocorrer a regulamentação estão sendo conduzidas pelo senador Romero Jucá (PMDB-RR), líder do governo no Senado. Na última quinta-feira (11), ocorreu uma reunião entre a equipe do senador e integrantes do MPT para tratar da regulamentação. O encontro, contudo, não resultou em nenhum avanço, segundo o procurador.

Apesar da falta de regulamentação, o Ministério Público do Trabalho acredita que o Poder Judiciário pode aplicar a expropriação uma vez confirmada a condição análoga à escravidão na propriedade. “O nosso entendimento é que, a partir do momento que haja alguma sentença transitando em julgado reconhecendo o trabalho escravo, seja possível sim que haja a expropriação da terra, independentemente dessa regulamentação”, declarou o procurador.

Ferreira disse que já há algumas decisões isoladas no país em favor do que prevê a emenda, mas afirmou que ainda não há um levantamento de quantas sentenças foram proferidas no sentido de expropriar terras onde ocorram escravidão nos últimos três anos. O procurador explicou que os processos dessa natureza levam muitos anos para serem julgados e que, para valer de fato, a decisão de expropriar deve seguir até a última instância da Justiça.

Crime imprescritível

Já no Senado, há uma nova PEC que visa tornar a prática de submeter um trabalhador a condições análogas à escravidão um crime imprescritível. A proposta baseia-se no entendimento adotado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. Em uma das sentenças proferidas pela corte, há a recomendação para que o Estado adote “as medidas necessárias para garantir que a prescrição não seja aplicada ao delito de direito internacional de escravidão e suas formas análogas”.

“A gente defende a imprescritibilidade do crime de trabalho escravo, porque a própria teoria de direitos humanos diz que existem dois direitos que são absolutos: um é o direito de não ser torturado e o outro é o direito de não ser escravizado. Como o direito de não ser escravizado não comporta nenhum tipo de relativização, a gente sustenta que também deveria ser imprescritível o crime. A gente acha que essa mudança legislativa vem em ótimo tom, em ótimo momento, na toada de combate ao trabalho escravo”, destacou o procurador.

A PEC, que prevê ainda a reclusão do responsável pelo crime, foi a apresentada no mês passado e aguarda análise da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ).

Edição: Juliana Andrade