Violência

Após repercussão negativa, Justiça manda parar demolições na Cracolândia, em SP

"Ação é para expulsar população mais pobre da região e trazer grandes empreendimentos imobiliários", diz Instituto Pólis

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
Comerciantes fecham estabelecimento após receberem ordem de despejo da Prefeitura de São Paulo
Comerciantes fecham estabelecimento após receberem ordem de despejo da Prefeitura de São Paulo - Júlia Dolce

A defensoria pública de São Paulo obteve, na tarde desta quarta-feira (24), uma decisão judicial liminar que proíbe o governo do prefeito João Dória (PSDB) de continuar com as remoções compulsórias de pessoas e demolições de edifícios na região da Luz, conhecida como Cracolândia, na zona central da capital. Ação foi veementemente rechaçada pelos movimentos populares e por associações ligadas aos direitos humanos, entre elas o Conselho de Psicologia

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Os procedimentos tiveram início na segunda-feira (22), logo após a violenta ação da Polícia Militar (PM), que no dia anterior havia dispersado os usuários de drogas que habitavam a área, conhecida como "fluxo".

Segundo Rafael Faber, um dos defensores públicos que assinou a ação cautelar movida pela Defensoria, o órgão identificou que as intervenções da Prefeitura na região foram feitas irregularmente, sem o cumprimento de um procedimento padrão.

"De imediato, o que verificamos na área é que diversas pessoas estavam sendo removidas do local e sendo colocadas na ruas sem nenhuma alternativa habitacional", relatou o defensor.

Segundo ele, no caso de remoções de pessoas, o Poder Público deve notificá-las. Além disso,  os moradores têm direito à defesa processual e de levar seus bens pessoais, caso validado o procedimento. "Nada disso foi previsto na atuação na 'Cracolândia'", afirmou.

A decisão da defensoria impede que qualquer remoção aconteça sem um cadastramento prévio dos moradores para atendimento de saúde e habitação. Também foi estabelecida uma multa diária de R$ 10 mil caso a Prefeitura não cumpra a decisão.

Coletiva de imprensa

Em um entrevista coletiva que ocorreu nesta quarta-feira e contou com a presença do prefeito João Dória e do governador Geraldo Alckmin (PSDB), o secretário de Negócios Jurídicos Anderson Pomini justificou as remoções como necessárias, citando o Artigo 5º, Inciso 25, da Constituição Federal, que determina que "em razão de iminente perigo público, o Estado poderá requerer a propriedade privada e tomar as providências que julgar adequada".

Na opinião de Danielle Klintowitz, Coordenadora de Urbanismo do Instituto Pólis, as premissas defendidas pela Prefeitura são equivocadas. "Não apresentaram nenhum auto mostrando que os prédios estavam em iminente perigo de cair, o que poderia justificar isso. Não conseguimos saber qual o iminente perigo público. Quando você vai demolir um edifício, tem que ter um ato administrativo e jurídico para fazer isso, tem que dar prazo e condições para as pessoas saírem adequadamente", afirmou.

Rafael Faber pondera ainda que a situação no território não é de calamidade imediata, como defendeu a Prefeitura. "O que a gente entende como calamidade é algo imprevisto que acontece do dia para a noite. A situação da Cracolândia, por mais triste que seja, já se estendia por anos", disse.

Especulação imobiliária

De acordo com os especialistas e moradores da região, as remoções estão diretamente ligadas à dispersão dos dependentes químicos da Cracolândia, e fazem parte do projeto de "revitalização" do centro aprovado no plano de metas da gestão Dória. Para Klintowitz, o projeto pode ser considerado uma forma de higienismo através da gentrificação.

"É um programa gentrificador que vai expulsar a população mais pobre da região para trazer grandes empreendimentos imobiliários. Inclusive, na justificativa do programa, eles colocam como resultado esperado a valorização imobiliária. Na nossa visão, isso é uma coisa sempre excludente.  Eu gostaria que a Prefeitura respondesse aonde as pessoas despejadas irão e quem será a população prevista para habitar essa região, porque o que nos parece é que acham que essa porção da cidade não é para todos", opinou.

De acordo com Klintowitz, a proposta traz semelhanças com o projeto Nova Luz, apresentado pelo ex-prefeito Gilberto Kassab em 2005, que também recebeu diversas críticas na época por simbolizar uma expulsão das classes mais baixas da região.

Segundo a trabalhadora autônoma Maria Moura Soares, moradora da região da Luz há mais de 40 anos, os moradores suspeitam que os terrenos onde moram tenham sido vendidos para empresas.

"Eles querem que a gente saia de casa. A minha filha tem um bar e não deram nem duas horas para ela tirar tudo. Para onde eu vou, pelo amor de Deus? O prefeito chega aqui e manda tirar tudo sem dar um prazo. Falaram que a [seguradora] Porto Seguro tinha comprado o quarteirão inteiro aqui, então quer dizer que eles têm direito a um lugar decente e nós não?", questionou.

A empresa Porto Seguro, citada por Soares, é apontada como a principal interessada no processo de especulação imobiliária da região, por possuir dezenas de propriedades e espaços culturais na área. Procurada pelo Brasil de Fato, a companhia não se pronunciou até a publicação da reportagem.

"É uma área que deve estar preenchida por habitação, não deve ser só uma área comercial. Deve-se prever habitação para as camadas de baixa renda. Se tem pessoas, inclusive com dependência química, tem que ter assistência social que trate essas pessoas adequadamente. Então, o que a gente está vendo é o contrário de tudo o que defendemos", afirmou Klintowitz.

Acidente

Maria Moura Soares é vizinha do terreno que já estava sendo demolido pela prefeitura quando um acidente feriu quatro pessoas, nessa terça-feira (23). As vítimas, moradoras do prédio ao lado do terreno, foram soterradas pela queda de um muro e levadas para a Santa Casa.

"Quando cheguei, o pessoal estava escavando com pá para retirar três pessoas que estavam soterradas, machucadas. Lá tem crianças, uma mulher grávida", disse.

Na opinião de Klintowitz, o acidente diz muito sobre como o projeto de urbanismo da cidade vem sendo conduzido pela Prefeitura. "Em nenhum lugar a Constituição diz que o poder público pode demolir o imóvel com pessoas dentro. São atos criminosos do Estado, e não há artigo nenhum que possa justificar o que foi feito", concluiu.

Na tarde desta quarta-feira, militantes de movimentos que lutam pelos direitos humanos na Cracolândia realizaram uma ocupação na Secretaria de Direitos Humanos com o objetivo de conquistar uma audiência pública para discutir os abusos que estão sendo cometidos na região.

Edição: Vanessa Martina Silva