Sistema de Justiça

"Estado sofisticou formas de violar direitos”, diz advogado criminalista

Especialistas apontam destacada atuação de magistrados e membros do MP em práticas de exceção

Brasil de Fato | Brasília (DF) |

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 Estado democrático e Estado de exceção foram tema de seminário promovido pela Fundação Perseu Abramos nesta segunda (29), em Brasília
Estado democrático e Estado de exceção foram tema de seminário promovido pela Fundação Perseu Abramos nesta segunda (29), em Brasília - Lula Marques/Agência PT

A crise sistêmica que abalou o Brasil nos últimos anos tem gerado, entre outras coisas, um incendiário debate sobre a atuação de membros do sistema de Justiça, que inclui magistrados, atores do Ministério Público (MP), defensores públicos e advogados. Do centro da discussão despontam, por exemplo, reflexões sobre as práticas que comprometem o Estado democrático de direito e abrem espaço para o Estado de exceção, hoje uma ameaça que ronda o Brasil.  

O assunto foi tema de um seminário realizado nesta segunda-feira (29), em Brasília, por iniciativa da Fundação Perseu Abramo. Entre os apontamentos feitos pelos diversos juristas que participaram do evento, destaca-se a preocupação com a banalização de práticas como conduções coercitivas, delações premiadas sem controle e interceptações telefônicas ilegais. Para os especialistas, tais condutas extrapolam os limites democráticos e potencializam a crise política.

O advogado criminalista Antonio Pedro Melchior, pesquisador da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), afirma que as referidas práticas denotam o emprego de recursos jurídicos com o fim de perseguição política, demonstrando que o Poder Judiciário estaria atuando no processo de “desconstituição do Estado brasileiro”.

Para ele, o cenário atual evidencia a existência de “práticas inquisitoriais” no país, em especial no âmbito do sistema penal. “Há quase uma institucionalização da anomia no processo penal brasileiro”, aponta, acrescentando que o sistema de Justiça criminal tem sido o principal agente de exceção.

“Existe uma retórica de que o crime se modernizou, mas o que acontece é que o Estado sofisticou as formas de violação de direitos, com a justificativa de combater o crime. (...) Hoje se pode imputar qualquer crime com fim político”, analisa. 

Omissão e autoritarismo

Para o subprocurador-geral da República Eugênio Aragão, último ministro da Justiça do governo Dilma, a omissão também é um dos principais traços do sistema de Justiça brasileiro na atualidade. Ele ressalta, por exemplo, a postura do Ministério Público Federal (MPF) e do Supremo diante das manobras político-legislativas que sedimentaram o caminho do golpe que afastou a presidenta Dilma Rousseff (PT), em abril do ano passado.

“Não estamos em plena democracia. Na hora em que se trata de preservar direitos, vemos que os poderes não têm demonstrado vontade política de fazê-lo, começando pelo STF, que foi o grande omisso em todo o processo que se instalou desde 2015, quando Eduardo Cunha [ex-presidente da Câmara Federal] vinha sabotando o governo Dilma”, aponta Aragão.  

Ele acrescenta que o referido contexto gerou ainda uma situação de insegurança jurídica no país. “Como não havia intervenção da PGR [Procuradoria-Geral da República] nem do STF, parecia que todo mundo entendia aquilo como parte do jogo, e a primeira coisa que aparece aí é a insegurança jurídica. (...) Fica até difícil dizer aos nossos alunos o que ainda é o Direito vigente no Brasil”, explanou Aragão, que também leciona na Universidade de Brasília (UnB).

Outra faceta problemática do sistema de Justiça desponta do caráter autoritário de figuras associadas a interesses político-partidários. É o que diz o jurista Marcelo Neves, da Faculdade de Direito da UnB, destacando que esse comportamento se dá ao arrepio da lei e compromete os princípios democráticos. Ele cita como exemplo a polêmica conduta do juiz federal Sério Moro, responsável pelos processos da operação Lava Jato na primeira instância da Justiça.

“A luta contra a corrupção não pode ser feita à margem da lei. Se temos uma pretensão totalitária de destruição efetiva da corrupção, evidentemente, essa atuação sempre dá no inverso. (...) O Poder Judiciário é um poder do Estado e, se ele atua fora da Constituição Federal, há aí uma falha grave, porque ele não pode jogar dentro do jogo partidário”, aponta o jurista. 

Criminalização

Já a professora Beatriz Vargas destacou que a cultura do desprezo pela justiça tem desembocado ainda em outro problema de grande envergadura: a criminalização de movimentos populares. Para a jurista, a questão está diretamente relacionada a uma violência punitiva orquestrada pelo próprio Estado.  

Ela acrescenta que esse tipo de opressão se potencializou nos últimos anos através, por exemplo, da dinâmica dos conflitos agrários no país. Segundo dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT), 2016 foi o ano mais violento da série histórica dos 31 anos em que a instituição acompanha o tema. Para Vargas, a engrenagem da criminalização é operada não só por expoentes do agronegócio, mas também por atores do sistema de Justiça.

“Destacam-se não só as violências que resultaram em morte, mas também aquelas que resultaram em prisões abusivas, inclusive prisões em flagrante mantidas como preventivas, enfim, é um cenário de escalada da violência institucional”, sublinhou a jurista.  

Ao olhar para o desenho atual do cenário político, Vargas acredita que não virá do Poder Judiciário, por exemplo, a solução para a problemática, que estaria mais relacionada ao “reempoderamento do campo político”.  

“Não será o Judiciário nem os 'heróis' da Lava Jato que vão livrar o Brasil de suas mazelas, até porque uma parte dessa trajetória é algo que nós precisamos viver. Nós precisamos passar por essa catarse e aprender com ela a lidar com as nossas instituições, com a discussão democrática, com a participação popular. Acredito que a gente possa ter, num prazo médio ou longo, uma possibilidade de retorno em outras bases, e será pela política”, finalizou a professora. 

Edição: Vanessa Martina Silva