Crise

Artigo | A fratura da liderança política brasileira

"Era só uma questão de tempo até que a evidência de que o presidente estava envolvido em práticas ilegais fosse clara"

São Paulo |
A única saída consiste em identificar uma nova liderança com legitimidade
A única saída consiste em identificar uma nova liderança com legitimidade - Reprodução/JusBrasil

Um ano depois da farsa do impeachment de Dilma Roussef, o Brasil mergulhou de novo numa crise. O já frágil apoio do Presidente Michel Temer evaporou-se em poucas horas após a revelação de gravações da sua conversa com Joesley Batista, um empresário do setor agroalimentar. Numa conversa secretamente gravada em março, o Sr. Batista comunicou ao Sr. Temer as diferentes vias que utilizou para obstruir a justiça. Alguns dos principais aliados do Sr. Temer no Congresso, incluindo Aécio Neves, o senador que perdeu por pouco a eleição presidencial de 2014 para Dilma Roussef, foram também apanhados em gravações solicitando pagamentos ao Sr. Batista.

A crise atual não emergiu com surpresa. As práticas notoriamente corruptas do partido do Sr. Temer, o Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) eram do conhecimento generalizado da elite económica brasileira e dos media que apoiaram a sua ascensão ao poder e que nela viram uma oportunidade de ouro para impor um programa de austeridade impopular. Poucos meses após ter tomado o poder, seis dos seus ministros tiveram que resignar devido ao seu envolvimento em vários escândalos de corrupção. Era apenas uma questão de tempo até que a evidência de que o presidente estava também envolvido em práticas ilegais fosse clara.

Na origem desta corrupção endémica está a consolidação do poder de alguns players que manifestam uma completa desconsideração pelo processo democrático e pelo papel da lei. Hoje, largos segmentos da sociedade estão sujeitos a discriminação racial e e a desigualdades económicas profundas. A Justiça é a maioria das vezes inacessível aos pobres, e os funcionários do Governo são raramente sujeitos à prestação de contas.

Apesar da eleição de presidentes progressistas, sentiram falta de uma maioria ativa no Congresso. Este é um dos mais nefastos legados do sistema político que vigorou nas duas últimas décadas. Os presidentes foram obrigados a constituir coligações – frequentemente alianças bizarras – para garantir a governabilidade. Grupos de poder arcaicos e corruptos que estão sobre-representados no Congresso tiveram um papel crucial no governo. O PMDB de Temer, por exemplo, esteve sempre representado no governo desde 1985.

O Congresso Nacional Brasileiro é um flagrante exemplo de um sistema de representação política distorcida. Homens de negócios brancos controlam cerca de 70% dos lugares. As mulheres controlam apenas 10% e os Afro-Brasileiros outros 20%, num país em que são a maioria. As campanhas são caras e os partidos políticos proliferaram (são hoje 39), vendendo frequentemente o seu apoio e tempo de antena em troca de benefícios dos partidos de governo. As empresas mais ricas que concorrem pelos projetos de grandes infraestruturas financiam regularmente os candidatos para assegurar o seu próprio interesse. Normalmente, o apoio financeiro é concedido por debaixo da mesa e está fora dos livros. JBS, o gigante conglomerado da produção de carne detido pelo Sr. Batista, confessou ter financiado as campanhas de pelo menos um de terço dos membros do atual Congresso.

Sem adequado controlo e supervisão, só os que pagam é que têm voz. Por exemplo, o speaker da Câmara Baixa, Rodrigo Maia, é acusado de vender o seu apoio em troca de favores na área das concessões de aeroportos que beneficiaram uma empresa de construção em troca do apoio à sua campanha. Cerca de 35% das alterações propostas na reforma das leis do trabalho foram concebidas não no Congresso, mas nos escritórios das federações brasileiras da indústria, finança, comércio e transportes. O poderoso lobby agrícola no Brasil conseguiu fazer passar um relatório chocante que recomendava o desmantelamento da agência de negócios indígenas, FUNAI, a revisão das regras sobre as reivindicações de terras e a perseguição dos ativistas da defesa dos direitos dos índios. Os grupos de indígenas foram mesmo proibidos de participar nas sessões em que o relatório foi discutido.

Para onde irá o Brasil depois desta nova onda de escândalos? A queda do Sr. Temer é aguardada como quase certa dada a magnitude das provas contra ele. Mas a coligação governamental está a mantê-lo no poder até que encontre um substituto credível para prosseguir as medidas de austeridade e limitar as investigações sobre a corrupção. E ainda assim os resultados são imprevisíveis. As tensões estão a crescer rapidamente à medida que grupos cada vez mais numerosos na sociedade civil questionam a legitimidade da administração do Sr. Temer. A violência e a repressão já emergiram nos protestos urbanos bem como nas áreas rurais de Mato Grosso e Pará, onde camponeses foram assassinados em disputas de terras.

Dado este contexto, a única saída consiste em identificar uma nova liderança com legitimidade para restaurar o respeito pela governação e realizar eleições diretas. Mas a Constituição brasileira estabelece que o Congresso deve realizar uma eleição indireta para substituir o presidente se o lugar ficar vago nos dois últimos anos do período presidencial, como é o caso. No mínimo, fortalecer o Congresso com um terço dos seus membros já sob investigação criminal constitui uma desmoralizante – e perigosa – continuação do status quo corrupto.

Os desafios legais e políticos para realizar uma eleição indireta colocam-se ao Congresso muito antes da crise mais recente. No entanto, eles foram firmemente bloqueados pela maioria dos seus membros, que não pretendem largar o poder e pela elite económica que está assustada com o regresso possível da esquerda ao poder através de uma eleição direta.

A lição mais amarga que aprendemos é que a corrupção continuará a ser uma ameaça sistémica até que haja uma profunda revisão da lei eleitoral e até que a prestação de contas se torne uma rotina para todos. O financiamento público das campanhas e a cobertura de custos podem conter a generalizada pressão dos lóbis económicos. A qualidade da representação no Congresso pode melhorar por via do estabelecimento de um limiar eleitoral para representação dos membros do congresso e do Estado refletindo a demografia corrente. Infelizmente, todas estas soluções exigem que o Congresso atue e os seus membros conseguir por repetidas vezes impedi-las no passado de modo a impedir o enfraquecimento do seu poder.

Quaisquer que sejam as soluções que sejam encontradas no curto ou no longo prazo, a política no Brasil continuará a padecer de instabilidade até que os eleitores sejam autorizados a compor a fraturada liderança política da Nação, seja no ramo executivo ou no legislativo, recuperando algum controlo da sua democracia”.

* Paulo Sérgio Pinheiro é um cientista político e presidente da Comissão de Inquérito Internacional Independente das Nações Unidas sobre a República Árabe da Síria, sediada em Genebra.

Edição: Publicado originalmente no New York Times