Memória

Campanha critica aprovação de PL que propõe digitalização e destruição de documentos

Aprovado na última quarta-feira, projeto é considerado um atentado à segurança jurídica e à memória do país

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
Imagem de divulgação da campanha #QueimadeArquivoNão
Imagem de divulgação da campanha #QueimadeArquivoNão - Reprodução

Entidades e profissionais da área de arquivologia criaram a campanha #QueimadeArquivoNão contra o Projeto de Lei do Senado (PLS) nº 146/2007, que foi aprovado na última quarta-feira (14) no Senado e autoriza a destruição de documentos originais depois de digitalizados.

O PLS, de autoria do senador Magno Malta (PR-ES), coloca que, após a digitalização, as matrizes poderão ser eliminadas por "incineração, destruição mecânica ou por outro processo adequado que assegura a sua desintegração". O projeto segue em trâmite para votação na Câmara dos Deputados. 

Para as entidades que formam o movimento, o dispositivo representa um atentado à segurança jurídica e à memória do país. De acordo com o manifesto da campanha, se o PLS for aprovado, essa nova lei imputará "sérios danos à sociedade brasileira ao extinguir a função de 'prova' dos documentos públicos".

De acordo com a Coordenação de Apoio do Conselho Nacional de Arquivos (Conarq), um dos órgãos que apoia a campanha e emitiu nota contrária à aprovação do PLS, outro ponto prejudicial seria o risco de uma perda de registro. "Em nenhum outro país do mundo você percebe uma legislação similar a essa. Todos os países mantêm o registro em papel como prova", afirmaram.

Para Beatriz Kushnir, historiadora e professora do programa de pós-graduação em gestão de arquivos da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), a instabilidade jurídica se daria por conta da insegurança da forma de armazenamento. "Não há medidas de segurança capazes de prever a alteração do digital, e a gente não teria a contraprova do documento físico para mostrar se ele foi alterado ou não", pontuou.

Custos

A historiadora aponta ainda que os custos e a dificuldade para a manutenção segura dos documentos digitalizados poderiam significar uma perda dos documentos.

"Há uma visão de que, se eliminarmos os papéis, tudo ficará menos burocrático e mais ágil. Mas isso significaria um investimento em nuvens públicas e na compra de storages, que tem uma vida útil de três anos, e teriam que ser renovados. Se você não tem uma política pública de investimento pesado em processo de segurança digital, esses dados podem ser perdidos a qualquer momento", disse.

Uma justificativa defendida tanto por Kushnir quanto pela coordenação da Conarq para a ressuscitação do PLS é um suposto lobby de empresas interessadas em guardar esses documentos. 

"Tem fortes grupos, muitas vezes internacionais, interessados em patrocinar esse tipo de projeto de lei para, depois, se candidatar a uma guarda privada de acervo público", afirmou a historiadora.

Isso porque o PL determina que, durante a regulamentação da lei, o Poder Executivo indicaria os requisitos para credenciamento de empresas e cartórios autorizados a proceder a digitalização de documentos, assim como aqueles encarregados da conservação das mídias digitais.

Ditadura Militar

O manifesto #QueimadeArquivoNão defende ainda que a aprovação do PL prejudicaria grupos e comissões que buscam denunciar a violência de estado no Brasil, como a Comissão da Anistia, a Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos e o movimento Tortura Nunca Mais.

Segundo Rose Nogueira, diretora do Tortura Nunca Mais, o grupo depende de visitas aos Arquivos Nacionais para a comprovação de crimes cometidos pelo regime militar durante a ditadura no país.

"Precisamos desses documentos para estudar. Nós fizemos várias pesquisas no Arquivo Nacional, consultamos várias vezes para mostrar como foi a ditadura e outras épocas também. Eu acho um absurdo esse PL, um atentado. Você tira o direito de outras gerações conhecerem a história. Não poderiam digitalizar sem destruir os documentos? Qual o interesse nisso, manipular a história?", questionou.

A historiadora Beatriz Kushnir lembra que a Comissão Nacional da Verdade (CNV), órgão responsável por investigar as violações de direitos humanos cometidas durante a ditadura, foi instituída pela ex-presidenta Dilma Rousseff no mesmo dia da promulgação da Lei de Acesso à Informação (LAI), que regulamenta o direito constitucional ao acesso às informações públicas.

"Não é à toa que a presidenta realizou as duas ações no mesmo dia. Você só poderia estabelecer uma CNV se tivesse amplo acesso aos documentos, por isso a LAI é tão importante. Na época, uma série de documentos vieram à tona por causa da Comissão. Se você digitalizasse esses documentos em um ambiente não seguro, destruindo os originais, é uma possibilidade das pessoas destruírem o passado. Abre uma janela para o apagamento da história", concluiu.

Contatada pela reportagem, a assessoria de imprensa do senador Magno Malta destacou que desconhece a campanha ou qualquer movimento contra a legislação. "Até agora só recebemos elogios pela praticidade, economia e transparência do modelo proposto pelo PL". A assessoria destacou ainda que a maior parte dos documentos seria preservada, e que apenas "documentos comuns, encalhados e velhos" seriam destruídos.

Edição: Camila Rodrigues da Silva