Sucateamento

Artigo| Reorganização da Rede de Atenção à Saúde produz desmonte e iniquidade

A Gestão Municipal do Prefeito João Dória, aparentemente, optou por radicalizar este Projeto

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O mais perverso desta aposta deu-se na fragmentação do indivíduo
O mais perverso desta aposta deu-se na fragmentação do indivíduo - Arquivo pessoal

A proposta de reorganização da Rede de Atenção à Saúde, realizada pela Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo, prevendo o fechamento das Unidades de Assistência Médico Ambulatorial (AMA) e dilatação das Equipes de Estratégia de Saúde da Família, mesmo que ainda incipiente e com diversos ruídos comunicativos entre a Gestão e o Controle Social, merece análise detida e compreensão profunda a respeito tanto do papel da Atenção Primária à Saúde no seio do Sistema de Saúde brasileiro, quanto do contingenciamento financeiro que a Pasta sofrerá no próximo período.

 

A Rede de Atenção à Saúde e a Atenção Primária à Saúde: conceitos fundamentais para compreensão das propostas de cuidado e dos riscos de iniquidade


Todos os Sistemas Universais globais, e o Sistema Único de Saúde não fugiu à regra, optaram por conformar sua porta de entrada, isto é, seu nível de atenção ao qual a população pode recorrer quando apresente alguma demanda ou necessidade em saúde, por meio de uma Atenção Primária idealmente universal (isto é, a que todas e a que todos tenham acesso, independentemente de etnia, orientação sexual, identificação de gênero, condição socioeconômica ou naturalidade e procedência) tradicionalmente empregando clínicos gerais, pediatras e ginecologistas para a promoção de assistência, mas já em franca transição para a utilização de Equipes de Estratégia de Saúde da Família como promotoras de cuidado.

O emprego de Equipes de Estratégia de Saúde da Família, contando com médicas ou médicos de família e comunidade, enfermeiras ou enfermeiros de família e comunidade, auxiliares de enfermagem e agentes comunitários de saúde, já apresenta acúmulo suficiente de evidências científicas para que se considere o programa mais resolutivo diante das demandas da população (e deve-se destacar que resolutividade é um extenso capítulo no seio das discussões em saúde, não havendo espaço em um breve artigo de opinião para maiores críticas a respeito) e mais custo-efetivo, ou seja, com emprego mais adequado e racional de verbas para atender estas mesmas demandas. Mesmo tratando-se, portanto, de opção política e técnica acertada, a Estratégia de Saúde da Família, destacadamente no município de São Paulo, instalou-se e cresceu em cenário extremamente contraditório à sua capacidade: a desorganização e a fragilidade da Atenção Primária.

A fragilidade da Atenção Primária à Saúde deu-se, sobretudo, pela aposta num nível de atenção voltado a acolhimento de demandas de baixa complexidade, fortalecendo a compreensão de que seus Equipamentos e Serviços só podem dar conta do básico, do simples, cabendo aos ambientes hospitalares e às especialidades focais dar conta das condições mais complexas e graves. Nesta perspectiva, faz sentido nomeá-la como Atenção Básica, inclusive pela alta identificação das usuárias e dos usuários entre o que lhes é ofertado, com aquilo a que têm acesso na prática. O mais perverso desta aposta deu-se na fragmentação do indivíduo, uma unidade biopoliticossocial, em um somatório de demandas de baixa a alta complexidades, cujo cuidado não poderia ser coordenado por um profissional, empregando um volume excessivo de intervenções e referenciamentos entre diversos cuidadores.

O erro sanitário em configurar os Equipamentos para dialogar com demandas por complexidade, e não por necessidades em saúde, contudo, não impediu de imediato que as populações acorressem aos Postos de Saúde / Unidades de Saúde para buscarem acesso e acolhimento a seus problemas. A alternativa de Gestão, diante da realidade posta, antes que superar a fragilidade do cuidado proposto, apenas aprofundou sua iniquidade e, sequentemente, desorganizou o acesso ao cuidado introduzindo um elemento desagregador na Rede: as Unidades de Assistência Médico Ambulatorial (AMA).

As respostas adequadas para impedir o drama assistencial a que assistimos atualmente teriam sido a revisão dos modelos de acesso aos Postos de Saúde / Unidades Básicas de Saúde, impedindo o agendamento indiscriminado de consultas através da proteção de vagas diárias para acolhimento de necessidades, construindo, assim, o cuidado longitudinal das usuárias e dos usuários em cada encontro (a este modelo denominamos de Acesso Avançado, descrito e empregado com grande êxito especialmente nos países de língua inglesa); e o investimento numa Atenção Primária à Saúde enquanto Atenção Essencial à Saúde, isto é, aquela indispensável para produzir cuidado e acompanhamento de pessoas, independentemente da complexidade de suas condições.

Ao optar pela interpolação de um Equipamento como as AMA, incapaz de oferecer coordenação do cuidado da população assistida, sem qualquer longitudinalidade no seguimento e fortalecendo a segmentação do indivíduo, ao invés de promover integralidade da assistência prestada; a Gestão consolidou passo decisivo para desorganização da Rede e instabilidade da Atenção Primária, que avançou contando com três Equipamentos distintos e com grave hiato de diálogo entre ambos: Unidade Básica de Saúde em seu formato tradicional, contando com clínico geral, pediatra e ginecologista; Unidade de Saúde da Família, contando com as Equipes de Estratégia de Saúde da Família; e as Unidade de Assistência Médico Ambulatorial, contando com plantonistas clínicos gerais e pediatras.

A lógica de superação da iniquidade produzida pelas Unidades de Assistência Médico Ambulatorial: desafios e atropelos na proposta da Secretaria Municipal de Saúde.
A proposta de reorganização da Rede de Atenção à Saúde com superação deste Equipamento iniciou-se, efetivamente, na Gestão Municipal do Prefeito Fernando Haddad, através do Projeto de Integração das Unidades de Saúde às Unidades de Assistência Médico Ambulatorial. Incompreendida por diversos elementos sociais, a Integração objetivava, inicialmente, unificar os dois Equipamentos em um único Serviço, por exemplo, através de único Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES) e através de única gerência, para avançar na supressão do modelo emergencista e descontinuado de acesso e cuidado. Houve sucesso, em algumas regiões da cidade, deste Projeto, porém, com limites e insucessos relevantes em outras.

A Gestão Municipal do Prefeito João Dória, aparentemente, optou por radicalizar este Projeto, extinguindo os Equipamentos e buscando dilatar a abrangência das Equipes de Estratégia de Saúde da Família no município. Como toda proposta açodada, e a atual Gestão demonstrou-se exímia em produzir atropelos políticos, há fragilidades e imprevisões extremamente relevantes, os quais poderão submeter a população à desassistência e encolher o alcance de Atenção Primária à Saúde, ao invés de universalizá-la.

Deve-se destacar, inicialmente, a contradição orçamentária que circunda não apenas esta reorganização, mas toda a Pasta da Saúde municipal. No último 07 de junho, em audiência pública da Comissão de Saúde da Câmara de Vereadores do município de São Paulo, Daniel Simões, Chefe de Gabinete do Secretário Municipal de Saúde, Dr. Wilson Modesto Pollara, durante prestação de contas do primeiro quadrimestre da Gestão João Dória, afirmou que haverá contração de investimentos na Pasta, que já apresentou significativo decréscimo de receita: de 22% ao final do ano pregresso, para 17% ao final deste primeiro período. A justificativa oferecida é de que “algum nível de austeridade sempre faz-se necessário”, conforme palavras do próprio Chefe de Gabinete.

Diante de conjuntura econômica de retração de investimentos, aprofundamento do drama social, com instabilidade dos postos de emprego, queda na renda familiar, tímida recuperação dos ajustes inflacionários, perda da cobertura em saúde por meio de seguros e conveniadoras, a população tenderá a recorrer em maior volume aos Serviços de Saúde, conforme registro empírico de outros Sistemas e Estados Nacionais já revelaram. Asfixiar financeiramente o Sistema de Saúde nesta realidade significará não investir em novos Equipamentos, restringir a Universalização da Atenção Primária e, mesmo com a ocupação das AMA por novas Equipes de Estratégia de Saúde da Família, deixar desassistido parte do território adstrito às Unidades.

A Secretaria Municipal de Saúde não previu, até o momento, um processo de redimensionamento dos territórios adstritos a cada Equipe de Estratégia de Saúde da Família, levando em consideração tanto um teto de habitantes por Equipe, que permita o acesso efetivo (como supradito neste artigo) da população ao cuidado, quanto a vulnerabilidade inerente a cada território. Sem este processo, a inclusão de novas Equipes será meramente arbitrária, sem dialogar com as necessidades reais das comunidades e tornará impraticável a rotina de trabalho dos profissionais de Saúde. Recente revisão do Plano Nacional de Atenção Básica destaca em média 3.000 habitantes por Equipe de Estratégia de Saúde da Família (importa destacar esta Revisão ainda segue tramitando). Idealmente, na perspectiva de viabilizar um acesso avançado com acolhimento por escuta qualificada, 3.000 habitantes seria o teto para áreas de menor vulnerabilidade social, reservando 2.000 a 2.500 como teto para as de maior risco.

Não é possível reestruturar a Rede de Atenção à Saúde e o contato da população com a assistência sem ressignificar o papel dos profissionais de saúde na rotina das Unidades Básicas de Saúde / Unidades de Saúde da Família / Clínicas da Família, especialmente o papel das enfermeiras e dos enfermeiros. Enfermeiras e enfermeiros têm sofrido restrição de seu protagonismo e atuação assistencial no Sistema de Saúde cada vez mais à burocracia e ao gerencialismo, erro histórico das Gestões que permitiram a excessiva centralização do cuidado e das intervenções na ação médica. A Gestão João Dória, de mesma forma, não sinaliza qualquer indicativo de superar estes limites, muito menos as Organizações Sociais de Saúde, terceirizadoras da mão de obra, frequentemente assediando e invisibilizando enfermeiras e enfermeiros que destoam e contestam este papel meramente burocrata e gerenciallista.

As Unidades de Atendimento Médico Ambulatorial atuaram, até o momento, como certa retaguarda para episódios de urgências e emergências clínicas e cirúrgicas. Permitindo evacuação de pacientes para outros Equipamentos de Saúde, quando necessário. Simplesmente subtraí-las do contato dos demais Equipamentos de Atenção Primária suprimiria as Unidades Móveis de Transporte, superdemandaria o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU) e inviabilizaria o pronto atendimento destes episódios. Este cenário agrava-se em inúmeras regiões do município com a superlotação de diversos Pronto-Atendimentos e Pronto-Socorros Hospitalares, inclusive com restrição de porta de muitos destes Equipamentos, como é o caso do Hospital Universitário da Universidade de São Paulo.

Não é possível dar resposta simples e açodada a problema histórico e complexo
A Rede de Atenção à Saúde no município de São Paulo é um desafio a todas as Gestões. O processo de transição de administração de Organizações Sociais, deflagrado pela Gestão Fernando Haddad, foi um episódio importante para reconfigurar a inserção das terceirizadoras no território, permitindo ao Município reassumir seu papel de formulador da política, não obstante as contradições que produziu para os processos de trabalho locais e para os regimes de contratação das trabalhadoras e dos trabalhadores. O Projeto de Lei “Mais Saúde em Cada Região de São Paulo”, aparentemente natimorto diante da conjuntura posta, permitiria importante avanço no diálogo com o território, no avanço do processo de Integração das Unidades e na superação da desagregação do acesso e do cuidado.

João Dória, Wilson Pollara, Maria da Glória e Daniel Simões, até o momento, não apresentam nenhum projeto consolidado para esta reconfiguração da Rede, a não ser o da pressa em concluir qualquer transformação. A única previsão revelada, após duras pressões políticas, é a de asfixia financeira para o Sistema de Saúde municipal. Nesta perspectiva, de forma errada e com pressa, tentar fazer o que deve ser feito, irá produzir ainda mais iniquidade. É necessário avançar, inicialmente, com a territorialização dos territórios; redimensionar o número de habitantes por Equipes, considerando a vulnerabilidade das comunidades; disputar o emprego dos profissionais de saúde com as terceirizadoras e revitalizar os serviços de Pronto-Atendimento. De qualquer modo, infelizmente, a proposta parece indicar mais um desmonte arbitrário do Sistema de Saúde municipal do que, de fato, sua reorganização.

*** Médico, especialista em Medicina de Família e Comunidade. Preceptor de Ensino para Graduação e Assistente do Programa de Residência da Faculdade de Medicina da USP. Membro da Rede Nacional de Médicas e Médicos Populares. Membro do Centro Brasileiro de Estudos da Saúde

Edição: Juliana Gonçalves