Teatro

Espetáculo teatral em São Paulo documenta a fome e as mazelas que a rodeiam

Peça da companhia Kiwi lembra que fome não é causada pela escassez de alimentos, mas pela falta de políticas públicas

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
Fernanda Azevedo, Renan Rovida e Eduardo Contrera, utilizam a dramaturgia cênica para trazer à vida tema da fome
Fernanda Azevedo, Renan Rovida e Eduardo Contrera, utilizam a dramaturgia cênica para trazer à vida tema da fome - José Eduardo Bernardes

“A fome é uma decisão, assim como um banquete”. Esse é o elemento central e o prólogo da peça “Fome.doc”, da Companhia Kiwi, que estreia nesta sexta-feira (14), no Centro Cultural São Paulo, localizado na zona sul da cidade. O novo trabalho do grupo utiliza o teatro documentário, uma das vertentes dramáticas mais comumente encontradas nas obras da Kiwi, para tratar do tema da fome.

Valendo-se de textos de autores como Aimé Césaire, Kafka, Shakespeare, Frantz Fanon, Josué de Castro, além de manifestos de movimentos sociais como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), entre outros, a peça lembra que a fome não é causada apenas pela escassez de alimentos, mas principalmente pela falta de políticas públicas, uma decisão tomada nas mesas dos poderosos, assim como são decididos os banquetes. 

O espetáculo, no entanto, não trata apenas da fome literal, que segundo o último relatório da Organização das Nações Unidas (ONU), acomete 108 milhões de pessoas no mundo, mas também a fome por “justiça e liberdade”, explica Fernando Kinas, diretor da Companhia.

“Há outros aspectos da fome, que não são literais”, afirma o diretor. “Eles têm uma ressonância na própria ideia de como é possível fazer arte, cultura e teatro, em um mundo marcado pelas desigualdades”. 

Em cena, dois atores, Fernanda Azevedo e Renan Rovida, acompanhados pelo multiinstrumentista Eduardo Contrera, utilizam a dramaturgia cênica para trazer à vida textos clássicos que pontuam a fome, mas também as mazelas que a rondam, como a colonização e desumanização — baseando-se, nesse caso, no holocausto propagado pela Alemanha nazista de Adolf Hitler.

“Uma parte importante do teatro contemporâneo se ocupa ainda do que a gente chama de temas dramáticos, das relações entre indivíduos e, portanto, ligado à subjetividade, e a gente acha que esse é um papel do teatro. E também é um papel do teatro discutir processos sociais, discutir dinâmicas sociais e é isso que a gente faz há muito tempo, na verdade desde que a Companhia existe”, aponta o diretor.

A atriz Fernanda Azevedo conta que o trabalho de pesquisa para a produção de “Fome.doc” exigiu dos atores não apenas empatia com o tema, mas uma longa imersão, um dos desafios impostos pelo teatro documentário, que não possui personagens, mas mantém em sua fundação, a dramaturgia.

“O material documental exige um trabalho de pesquisa muito forte, os nossos trabalhos nunca são ensaiados em poucos meses, são muitos meses. Para estar em cena e fazer com a competência necessária, é preciso entender muito bem o que eu estou falando. O contato com os movimentos sociais, o contato com esse material, entender o que significa exatamente cada uma dessas partes do trabalho é muito importante”, diz a atriz.

Espetáculo Fome.doc, da Companhia Kiwi, entra em cartaz nesta sexta-feira (14)

Para Renan Rovida, a ideia de “Fome.doc” é fazer público e atores pensarem juntos. “A gente não veio apresentar respostas para o público, porque senão a gente nem estaria fazendo teatro. A gente vem lançar perguntas sobre esse tema da fome literal mesmo, ainda que tenha a questão da metáfora, da fome em outros sentidos, mas a fome literal, que é uma barbárie, que acontece todo dia e está cada vez pior”, explica.

A canção também é um elemento fundamental na apresentação, segundo o diretor Fernando Kinas, não como uma trilha sonora, mas como parte da apresentação. Segundo o músico Eduardo Contrera, “a música é mais um desses materiais dramáticos, de construção dessa ideia. No que ela pode ajudar, às vezes ironizando, às vezes se opondo ao discurso, comentando o discurso, tentando dialogar com esses materiais de uma forma autônoma”, diz.

Teatro na berlinda

Após o afastamento da presidenta Dilma Rousseff, em maio de 2016, o governo Temer decidiu retirar o status de Ministério da pasta federal de Cultura, supostamente por contingenciamento de gastos. Desde então, uma série de retrocessos rondam o setor. Em São Paulo, a gestão do prefeito João Doria (PSDB) congelou mais de 40% do orçamento dedicado à cultura e profissionais seguem protestando contra os cortes. 

Fernando Kinas lembra que estes retrocessos já são sentidos pelos artistas, especialmente pelo Teatro. “É inevitável, afeta porque os programas mais avançados, que foram arrancados do poder público, através da organização dos artistas, ou são cortados, ou são diminuídos em seus recursos”, diz.

Kinas aponta que programas como o Fomento ao Teatro, o Fomento à Dança e os programas de formação, como o PIÁ (Programa de Iniciação Artística), têm sofrido reveses. “Ou eles são extintos, ou estão sendo atacados de diversas formas, até de formas ilegais, com processos truncados de seleção de artistas e coletivos”.

O momento político também coloca os artistas contra a berlinda. “Essa é uma questão geral, não é uma fatalidade, especificamente nos últimos tempos, com o golpe parlamentar, midiático, com a parte do judiciário no plano federal e com um recrudescimento de setores muito conservadores. No estado, a gente tem governos conservadores nas últimas duas décadas. Na cidade de São Paulo, a mudança também foi no sentido do conservadorismo. Isso afeta diretamente quem tenta fazer arte e cultura de forma mais crítica”, diz o diretor.

Para a atriz Fernanda Azevedo, aqueles que exercem o ofício do teatro correm o “risco de não conseguir mais trabalhar, de não ter mais dinheiro público investido nos nossos trabalhos”. Ela lembra ainda que “não é apenas uma questão de perseguição, é pelos cortes nos direitos sociais, nos ministérios da Saúde, da Educação, enfim, em todos os gastos e investimentos na população e a cultura é um deles”, completa.

Companhia Kiwi

A Companhia Kiwi foi criada em 1996, na cidade de Curitiba, no Paraná, com o objetivo de produzir montagens teatrais autônomas, criativas e recheadas de críticas de atuação. Segundo a Companhia, o objetivo é ampliar a relação do grupo com setores socais normalmente distantes da prática teatral, por meio de debates públicos, oficinas, publicações e seminários. 

Entre as peças de destaque da Companhia, aparecem “Um artista da fome”, de Franz Kafka (1998), “Carne”, de Fernanda Azevedo e Fernando Kinas (2007/2013) e “Manual de autodefesa intelectual”, de Fernando Kinas (2015).

“A gente vai um pouco na contramão de um certo modelo de fazer teatro. O teatro ainda é muito marcado pelo embate de subjetividades. Essa é uma frase que se usa inclusive nos estudos teatrais. Por exemplo, não trabalhar com os textos chamados teatrais, um texto que não tem personagens agindo entre elas, pode causar uma certa estranheza”, explica o diretor. 

SERVIÇO
Espetáculo: Fome.doc
Ingressos: R$ 10 (inteira) R$ 5 (meia)
Centro Cultural São Paulo | rua Vergueiro, 1000 - Paraíso/Metrô Vergueiro

Edição: Vanessa Martina Silva