Crime ambiental

Pescadores do Rio Doce sofrem com desestruturação das comunidades

Após contaminação, pescadores ficaram sem trabalho; eles apontam aumento dos casos de alcoolismo e depressão

Brasil de Fato | Linhares (ES) |
Seu Simião constrói um barco para transporte de passageiros, pois pesca está proibida
Seu Simião constrói um barco para transporte de passageiros, pois pesca está proibida - Vitor Taveira

Ao lado de seu quiosque à beira do mar, Simião Barbosa, presidente da Associação de Pescadores e Assemelhados de Povoação da foz do Rio Doce, termina a construção de um barco. "Quero usá-lo para fazer o transporte de pessoas entre as duas bocas do rio, porque pescar não podemos", diz.

O rompimento da barragem de rejeitos da Samarco, na cidade de Mariana, em Minas Gerais, que atingiu grande parte da bacia do Rio Doce, é considerado o maior desastre ambiental da história do país. Quase dois anos depois, as comunidades pesqueiras ainda vivem seus impactos e ruminam incertezas.

“O modo de vida e a reprodução econômica das comunidades tradicionais dependem de uma relação harmoniosa, baseada no respeito entre ser humano e natureza. Se a natureza for impactada, automaticamente a comunidade é impactada. E a readaptação nem sempre se dá de forma harmoniosa como era antes”, explica o sociólogo Hauley Vallim, morador da vila de Regência, na foz do rio, e uns dos coordenadores de uma pesquisa sobre os impactos sociais na região.

A desestruturação sociocultural é complexa, influenciando diversos aspectos da vida de pescadoras e pescadores. Perdeu-se o rumo, perdeu-se a forma de vida, o lugar de trabalho e lazer, os rituais cotidianos como o preparar da rede, cuidar do barco e até as histórias da pescaria para contar.

É difícil conversar com moradores das comunidades afetadas sem encontrar um certo ar de desesperança sobre o futuro. “A natureza é lenta, a natureza não tem pressa”, filosofa Seu Simião. “A nossa passagem é por pouco tempo em relação a ela. Vamos morrer de velho e não veremos o rio limpinho de novo”.

Sem trabalho, sem lazer e sem perspectivas de recuperação do rio, o tempo ocioso vira uma agonia para alguns que costumavam passar boa parte do dia pescando. A depressão e o alcoolismo são apontados como uma consequência desse processo, conforme diversos relatos de pescadores capixabas e mineiros à reportagem do Brasil de Fato. Alguns também alertam aumento do uso de drogas, violência e prostituição.


Foto: Vitor Taveira

Auxílio emergencial

Mesmo em locais que não há proibição da pesca, muitos preferem não se arriscar a pescar. E mesmo que o façam, dificilmente conseguirão vender o pescado, pois devido à sensação de desconfiança sobre contaminação dos animais, a compra de peixes caiu muito nos mercados.

Responsável pelos projetos de recuperação do rio após o acordo entre a Samarco e os governos de Minas Gerais e Espírito Santo, a Fundação Renova reconhece que há estudos contraditórios sobre a qualidade da água e dos peixes e espera ter, dentro de 60 dias, um novo laudo mais amplo e conclusivo.

“Faremos uma ação de comunicação para informar a sociedade sobre o diagnóstico. Queremos promover ações de inserção qualificada no mercado, inclusive agregando a perspectiva social no consumo desse pescado”, diz Paulo Rocha, líder dos programas de economia e inovação da Renova.

A perda da renda é o dano mais visível e o primeiro a ser respondido. Depois de acordos entre Samarco, poder público e judiciário, os afetados recebem um auxílio emergencial de um salário mínimo, mais o valor referente a uma cesta básica, além de um adicional de 20% do salário por dependente. A Fundação afirma que atualmente um total de 8,1 mil pessoas recebem o cartão de auxílio, sendo que 5,4 mil destes são pescadores. Outras atividades econômicas também foram afetadas direta ou indiretamente como a agropecuária, o turismo e o comércio.

Aumento dos conflitos

Em muitas comunidades, no entanto, há quem não receba e requeira o direito ao auxílio. Outros reclamam que o valor é inferior ao que ganhavam com a pesca. Em municípios como São Mateus, no litoral norte capixaba, pescadores reivindicam sua condição de atingidos, porém a região não estava incluída no acordo inicial e ninguém recebe ainda o cartão-auxílio.

A mudança na condição de renda impacta o arranjo econômico, retirando autonomia da população local, que passa a depender de agentes externos.

Os relatos nas comunidades falam em conflitos intrafamiliares e comunitários por conta do recebimento ou não do apoio. O fato dos processos serem individuais e sem um prazo previsto para uma resposta definitiva, aumentam a tensão entre os moradores.

A Defensoria Pública constatou um cenário generalizado de muita insegurança no cadastramento, o que tem gerado estresse e rompimento da malha social, divisão das comunidades, atritos e sentimento de animosidade”, aponta Rafael Portella, defensor público do Espírito Santo.

A pesquisa já mencionada atenta que, na maioria das famílias, os homens saem para pescar e as mulheres trabalham na limpeza e comercialização do pescado, geralmente ficando responsáveis pela gestão financeira. Com o benefício, essa questão é invertida, pois o cartão é entregue ao portador do registro de pesca, geralmente o homem. Além disso, a renda que antes vinha conforme o trabalho de cada dia, hoje chega mensalmente em depósito único.

Buscando articular pescadores e comunidades atingidas ao longo do Rio Doce, organizações sociais realizaram um seminário conjunto em Povoação, município de Linhares (ES) | Foto: Ingrid Campos

Organizar para regenerar

“Indivíduos doentes, impactados, entristecidos, não têm condições de cuidar de si, quanto mais ajudar a cuidar dos problemas comunitários. E comunidades enfraquecidas não tem condições de promover regeneração de nada, quanto mais de um rio e nas proporções do dano causado”, diz Hauley Vallim, que também é um dos organizadores do Festival Regenera Rio Doce.

Integrante do Conselho Pastoral dos Pescadores, Ormezita Barbosa avalia que há um processo de dispersão, com vários grupos organizados mas não muito articulados entre si. “Isso dificulta pensar uma pauta mais forte e uma ação de forma estratégica para incidir conjuntamente e não como cada grupo propor”. Ela participou, no fim de junho deste ano, de uma caravana e um seminário com pescadores afetados de toda região do Rio Doce e considera que essas iniciativas são fundamentais para melhorar a articulação política.

Diante do cenário preocupante, o defensor público do estado acredita que a mobilização social é fundamental para garantir os direitos das pessoas e comunidades atingidas. “Nosso trabalho tem sido esclarecer as comunidades e empoderá-las com informações que as ajudem na mobilização social. Embora estejamos prontos para ações judiciais - já há dezenas delas - as respostas podem ser muito lentas. Cobrar o poder político e utilizar o sistema de governança já criado pode ser mais eficiente”.

Um exemplo é a reivindicação dos pescadores em São Mateus. “Através da luta popular conseguimos que se realizassem pesquisas que reconhecem nossas comunidades como afetadas”, diz Eliane Balke, integrante do Movimento de Pescadores e Pescadoras Artesanais do Brasil (MPP). As reparações, porém, ainda estão sendo negociadas.

Ao que tudo indica, o rio e as comunidades ainda precisarão de tempo para se regenerarem.

Edição: José Eduardo Bernardes