Agricultura

Assembleia Constituinte na Venezuela pode ser uma saída para a crise alimentar

Camponeses participarão ativamente da Assembleia Constituinte com oito representantes eleitos no próximo domingo (30).

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“Os grandes produtores são os que agora fazem o povo passar fome", afirma camponês
“Os grandes produtores são os que agora fazem o povo passar fome", afirma camponês - Leonardo Fernandes

No próximo domingo (30), os venezuelanos e venezuelanas estão convocados a eleger os 545 deputados e deputadas constituintes, que terão a tarefa de redigir uma nova Constituição para o país. Desse total, 364 serão eleitos de acordo a sua localização territorial, sendo um representante por cada município e dois representantes pelas capitais regionais (o município Libertador, onde está a sede do poder central do país, e o mais povoado, elegerá sete representantes); oito representantes indígenas, que serão escolhidos de acordo com os costumes e normas dos povos originários; além de outros 181 que serão escolhidos de acordo com setores sociais pré-determinados pelo Conselho Nacional Eleitoral.

A inclusão de setores em uma eleição dessa natureza já ocorreu durante a constituinte de 1999, quando foram eleitos três representantes das comunidades indígenas. Dessa vez, serão oito setores representados, entre eles, os camponeses, que junto aos pescadores, terão oito deputadas e deputados eleitos.

“Para mim, este é um momento histórico, e é a hora de reivindicar o protagonismo do setor camponês, que possa assumir um espaço dentro da Assembleia Nacional Constituinte. O povo camponês jamais foi levado em conta, e por isso, essa é uma grande oportunidade para discutir as demandas e os direitos que os camponeses devem ter garantidos para que possam seguir trabalhando a favor da soberania alimentar”, afirma José Ramón Anzola, camponês, presidente do Conselho Socialista de Camponeses e Camponesas do Estado Lara.

Anzola lembra sem saudades dos tempos de governos neoliberais, quando a única prioridade do estado era o fomento à economia rentista, baseada na produção e exportação de petróleo, enquanto os camponeses e camponesas eram excluídos das políticas públicas do estado venezuelano. “Os camponeses e camponesas sempre foram excluídos, isolados, resultado de uma bonança petroleira que estava dirigida somente aos latifundiários, fazendeiros, enquanto os pequenos produtores recebiam as migalhas e ficavam à mercê dos donos das terras para poder fazer seu cultivo. Muitas vezes, os produtores eram obrigados a vender seu pequeno pedaço de terra, ou arrendá-las, para poder sobreviver, porque não havia qualquer incentivo para a produção”.

Verena Vásquez, camponesa de 27 anos, lembra que em 2007, quando o ex-presidente Hugo Chávez propôs uma reforma à Constituição, já se vislumbrava avançar em um plano de transformação da matriz produtiva do país, com vistas a conseguir a soberania alimentar. “Naquele momento, o que estava projetado era o lema ‘comuna ou nada’. E qual é a ideia da comuna? Que fosse um espaço de empoderamento popular e produtivo para si mesma e para o conjunto da sociedade. Nesse contexto, entra o campesinato. Então agora se abre outra vez esse debate, se reforça o projeto das comunas, a organização popular e a promoção da soberania alimentar. Se algo é vital para a nossa Revolução é a soberania alimentar, haja visto que agora a direita ataca o povo justamente através do tema dos alimentos”.

De quem é a culpa da crise alimentar na Venezuela?

Com uma matriz econômica baseada unicamente na produção e exportação de petróleo e na importação da maior parte dos alimentos consumidos no país, os setores que controlam o sistema de importação e distribuição dos produtos, articulados com potências estrangeiras, têm conseguido gerar uma forte crise alimentar, elevando preços de alimentos essenciais da dieta venezuelana e, em alguns casos, se negando a vender determinados produtos, com a finalidade de promover o caos social. Essa é a opinião de Simón Uzcatégui, camponês de 40 anos.

“Os grandes produtores são os que agora fazem o povo passar fome. São os que processam a farinha e escondem, ou revendem, ou levam à Colômbia, que tem uma moeda mais valorizada que a nossa. Estão lucrando às custas da fome do povo”.

A opinião de Simón é compartilhada por José Ramón Anzola: “A direita fascista e o imperialismo estadunidense usa essa nossa debilidade como arma, e ataca o povo venezuelano pelo estômago. É sua maneira de fazer com que o povo se enfureça e saia às ruas contra o Estado”.

Para Uzcatégui, participar da Assembleia Constituinte como um setor consolidado é a única forma de que os camponeses possam expressar suas demandas e necessidades, no sentido de superar as dificuldades no desenvolvimento do projeto agrícola tão almejado.

“Aqui há uma lei de sementes, que proíbe o uso de sementes transgênicas, mas acreditamos que esse é um tema que deve estar constitucionalizado. Precisamos criar um capítulo específico que nos ajude a combater o agronegócio, proibindo o latifúndio e todos os desvios que são praticados para atacar o povo da Venezuela. Temos uma lei que versa sobre a segurança e soberania alimentar, mas precisamos aprofundar esse tema na Constituição da República. Os direitos dos camponeses e camponesas precisam ser garantidos pela constituição, para quitar a dívida histórica que o estado têm com o povo rural do nosso país”.

A oposição venezuelana e os meios de comunicação mundo afora atribuem a atual crise alimentar da Venezuela à inoperância econômico-financeira do estado, sob gestão dos governos socialistas, o que segundo Edson Marcos Bagnara, coordenador da Brigada Internacionalista Apolônio de Carvalho, do MST, presente na Venezuela há mais de 10 anos, não tem qualquer relação com a realidade.

“Quando tinha dinheiro já não tinha comida. Com dinheiro, ou sem dinheiro, quando é inoperante, o é. Uma coisa é você poder gerir essa situação com um barril de petróleo a 130 dólares, outra coisa é gerir com o barril custando 40, como está agora. Então não se trata de inoperância do governo, se trata de falta de recursos que é causada principalmente pela estrutura econômica do país, que não foi inaugurada pelos governos socialistas, pelo contrário, os governos do presidente Chávez e do presidente Maduro fez e faz um grande esforço pra transformar essa realidade”.

Hugo Chávez, um camponês presidente

A profissão mais conhecida do ex-presidente Hugo Chávez foi a de militar, paraquedista das Forças Armadas da Venezuela. Mas ele falava com orgulho de sua origem camponesa. Nascido no estado de Barinas, no oeste do país, Chávez demonstrava uma profunda sensibilidade para a realidade do campo venezuelano, abandonado por décadas de cultura rentista.

“O comandante Chávez plantou uma semente em todos os camponeses e camponesas. Infelizmente, teve que ocorrer tudo o que está ocorrendo hoje em dia, a escassês de alimentos, a guerra econômica, para que nós pudéssemos tomar as rédeas sobre a questão produtiva. Temos certeza de que nas mãos dos camponeses, dos trabalhadores rurais, está a salvação sobre o tema alimentar em nosso país”, afirma José Ramón Anzola.

Segundo ele, o grande desafio da classe trabalhadora venezuelana é consolidar uma organização com suficiente autonomia para desenvolver projetos que visem conquistar a soberania alimentar no país. “Queremos algum dia conformar uma organização igual ou parecida ao que é o MST no Brasil. Que é praticamente um estado dentro do estado. Lá pode chegar governos de direita, de esquerda, do que seja, e igualmente eles seguirão avançando sobre o tema produtivo. Para conquistar a independência agroalimentar, precisamos primeiro deixar de depender da importação, inclusive em relação aos insumos, para que possamos garantir o nosso alimento”.

A necessária Revolução econômica ainda está por vir

“A Venezuela precisa de uma revolução econômica”, disse o presidente venezuelano Nicolás Maduro, durante uma reunião do Conselho Nacional de Economia, realizada na quinta-feira, 20 de julho. Desde o começo do processo denominado Revolução Bolivariana, a partir da eleição do ex-presidente Hugo Chávez, em 1999, um grande esforço foi feito, a partir do estado, para a transformação da matriz econômica do país, totalmente dependente da exportação de petróleo há mais de um século.

“Há mais ou menos 100 anos há exploração do petróleo na Venezuela. E podemos afirmar que desde o surgimento do petróleo no país, houve uma intencionalidade de transformar a Venezuela num país não-agrícola e dependente da renda petroleira”, explica Bagnara.

Segundo Bagnara, a opção por fomentar uma economia rentista, a partir da exploração petroleira, buscou entregar às potências estrangeiras o controle sobre a população e sobre os rumos políticos do país, que possui a maior reserva de petróleo certificada no mundo, com cerca de 300 milhões de barris.

“Qualquer insurgência contra o status quo é muito mais fácil de conter através do método que estão aplicando agora: reduzindo o preço do petróleo a nível internacional, e com isso, asfixiando o país economicamente. É ir do céu ao inferno muito rapidamente. Em 2012, o barril de petróleo custava entre 130 e 140 dólares, e em janeiro de 2016 chegou a 21 dólares. Fazendo uma comparação muito simples, é como se uma família tivesse uma renda mensal de três mil reais e passasse a receber 500. Não diminui os filhos, não diminui as despesas da casa, não diminui a conta de água, mas a renda encolheu. Então parte da crise que a Venezuela vive hoje é justamente por isso”, destaca.

A transformação da matriz econômica e a promoção de uma cultura camponesa, que devolva ao país uma produção sustentável de alimentos e a tão almejada soberania alimentar não tem sido tarefa fácil. Ainda hoje, a população camponesa do país não ultrapassa os 2%.

“O Chávez fez muito para tentar levantar a agricultura venezuelana, incrementando investimentos, desapropriação de terras, etc. Mas como não há uma cultura agrícola, as terras permaneceram abandonadas, sem produzir. Isso parece algo simples, para os países que têm cultura camponesa. Mas onde não existe cultura camponesa, não é raro que uma criança pense que o leite vem da caixinha”, comenta Bagnara.

Segundo o coordenador da Brigada Internacionalista do MST, ‘a cultura de 100 anos de dependência do petróleo gerou uma perda da memória agrícola’:

“Então não se trata de um problema simplesmente do povo, é um problema histórico, cultural, e que leva muitos anos para que se possa reorganizar a agricultura, já que é preciso começar do zero praticamente, produzir uma classe de agricultores que hoje não existe. Como fazer agricultura sem camponeses?”

Edição: MST