Marco Temporal

Ação de Temer contra povos tradicionais é "crueldade", diz advogada indígena

Joenia Wapichana, primeira indígena a se formar em direito fala sobre as ofensivas contra as comunidades

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

Ouça o áudio:

Povos da região do vale do Javari, que recebeu denúncias recentes da Funai, de ter sido alvo de massacre promovido por garimpeiros
Povos da região do vale do Javari, que recebeu denúncias recentes da Funai, de ter sido alvo de massacre promovido por garimpeiros - Survival, movimento global pelos direitos dos povos indígenas

Cortes de recursos do governo a órgãos ligados à proteção de comunidades indígenas, a criação do marco temporal, que garante a posse do território somente para comunidades que estavam na terra antes de 1988, data da promulgação da Constituição Federal. As investigações sobre o massacre de índios em isolamento voluntário no Vale do Javari, extremo oeste do Amazonas, através de denúncia feita pela Fundação Nacional do Índio (Funai) ao Ministério Público Federal. Essas são algumas das ofensivas que os indígenas brasileiros vem enfrentando nos últimos meses. 

O Brasil de Fato conversou com Joenia Wapichana, primeira advogada indígena, sobre essas e outras questões sensíveis a respeito de comunidades indígenas.

Joenia é membro do Conselho indígena de Roraima, ganhadora do Prêmio Reebok de Direitos Humanos, indicada pelo Comitê do Movimento Mil Mulheres ao Prêmio Nobel da Paz. Após graduar-se em direito pela Universidade Federal de Roraima em 1997, acompanhou o conflito das demarcações da reserva indígena Raposa Serra do Sol, comunidade onde cresceu. Confira a entrevista completa:

Brasil de Fato: Como primeira mulher indígena a se tornar advogada, quais são as lutas diárias que você enfrenta? E como foi se formar?

Comecei a atuar praticamente em 1999, em casos locais da terra indígena Raposa Serra do Sol, aqui pelo Conselho Indígena de Roraima. Um dos primeiros casos foi sobre conflitos, após a demarcação da Raposa Serra do Sol. 

Como a primeira mulher, lógico que tem essa parte bem sensível de terem essa visão em cima da dificuldade da família indígena, da comunidade, do povo e essa visão que, geralmente, um advogado não indígena não tem. Pode até saber um pouco das legislações indígenas, indigenistas, mas na prática não faz esse link junto as demais questões. Então, eu tenho um pouco deste olhar mais de perto, mais sensato, mais geral do que se passa com os povos indígenas, tendo essa visão como mulher também. Essa parte mais de olhar de perto o que está se passando no dia a dia com as famílias.

Quando eu comecei a assumir, os principais problemas foram conflitos, disputas sobre terras, a questão do meio ambiente era muito acentuada naquela época. Tinha também a questão da presença dos rizicultores dentro da Raposa Serra do Sol que jogavam agrotóxicos nos rios e afetavam, principalmente, as mulheres, muitas tiveram problemas de aborto. Já as crianças tiveram problemas de pele. Então, enfrentei muito essa briga toda para combater essas contaminações dos principais rios da Raposa Serra do Sol. Fora isso, também nessa construção de políticas públicas, tentar sempre defender os direitos constitucionais, procurar garantir a participação indígena nesses processos de implementação, tentar rebater e denunciar qualquer violação de direitos. Então, até hoje enfrento este tipo de situação.

Como você avalia as ofensivas aos povos indígenas realizadas nos últimos tempos, inclusive contra comunidades de índios isolados voluntariamente, como o caso dos flecheiros da tríplice fronteira, Colômbia, Peru e Brasil?

Sobre a ofensiva que a gente tem visto nos últimos dias, para mim é um ato de crueldade contra povos que estão vulneráveis, que não têm nenhuma forma de se defender dessa violação. A invasão que se tem é o que a gente tem passado aqui a nível da Amazônia, principalmente nessas áreas que são distantes. O acesso, às vezes, é difícil, mas não é impossível. A gente tem enfrentado bastante aqui em Roraima também a entrada de garimpeiros na terra indígena Yanomami, já vimos quais são as consequências do garimpo.

Eu vejo assim, como uma responsabilidade do Estado brasileiro tomar medidas urgentes para fazer a defesa dos povos que estão ali no Vale do Javari. Nós tivemos conhecimento de que já havia essa preocupação, denúncia de diversos indígenas ali da região, inclusive em relação aos flecheiros, que foi feita na Assembleia da Coiab, realizada a poucos dias.

As organizações indígenas da região já tinham encaminhado com o ministério público federal. É responsabilidade do estado fazer uma investigação e ação urgente. Seja pela Funai, Ibama ou instituições responsáveis por fazerem isso.

As tensões estão maiores no governo de Michel Temer? Como você enxerga cortes sistemáticos em diversas áreas, mas sobretudo os que atingem os povos indígenas?

Os povos indígenas são os mais vulneráveis do país, porque não têm poder econômico, não têm poder político, não têm uma representação dentro do Congresso Nacional. A gente não ocupa cargos. O cargo que deveríamos estar ocupando não estamos, que é a própria Funai. Nós estamos numa situação bastante vulnerável e, consequentemente, tudo que é atrocidade, tudo que é barbaridade, tudo que é política anti-indígena tá aflorando cada vez mais.

A prova disso é o parecer que o próprio presidente da república, chefe do poder executivo, solta, determinando que todos os órgãos públicos da União obedeçam uma orientação totalmente anti-indígena, inconstitucional, que foi questionada no Supremo. Isso é uma crueldade. Agora, está querendo colocar um marco de direitos indígenas, marco temporal, tentando virar políticas públicas, tentando ser incorporado em leis.

Outro exemplo de ações contra o direito dos povos indígenas é o constante investimento contra o único órgão federal indigenista, que é a Funai, para inviabilizar a implementação de direitos, a demarcação de terras indígenas. Neste sentido, tornar cada vez mais frágil a vida dos povos indígenas. A gente sabe que o índio sem terra não é nada. A gente sabe que as terras são consideradas direitos fundamentais para as vidas dos povos indígenas, se você não reconhece, se você deixa indefinido um procedimento de demarcação, você vai esta favorecendo cada vez mais clima de conflito, a disputa sobre terras, invasões, tudo isso. É preciso concluir a regularização das terras indígenas, respeitar as legislações, seja ela a constituição, a convenção 169 da OIT e os próprios procedimentos de demarcações de terras indígenas.

Quais são os próximos desafios que as comunidades tradicionais enfrentarão e como deve ser a reação?

Estamos tentando fazer com que a sociedade brasileira tome ciência do que os povos indígenas estão passando, essas ameaças, essas concretizações de várias ameaças, como a situação do povo no Vale do Javari, no Amazonas, e aí a gente tá tentando fazer com que o Brasil acorde. Nós estamos sendo ameaçados, os povos indígenas estão em risco e é preciso cobrar mais respeito destes representantes, destas autoridades que estão aí no poder.

Tem que cobrar mais respeito, implementação dos direitos que já existem e principalmente apuração e punição das violações sobre direitos indígenas. É necessário que exista uma investigação, medidas urgentes de proteção e principalmente a demarcação de terras indígenas como prioridade aqui no Brasil.

Edição: Camila Salmazio