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Os interiores de Guimarães Rosa: a sabedoria popular nas estórias do escritor mineiro

Há 50 anos nos despedíamos do escritor que narrou o sertão no realismo mágico de suas palavras inventadas

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Conhecedor de 13 línguas, Guimarães rodeou o mundo como diplomata, mas sempre acompanhado do caderninho dele
Conhecedor de 13 línguas, Guimarães rodeou o mundo como diplomata, mas sempre acompanhado do caderninho dele - Divulgação
Há 50 anos nos despedíamos do escritor que narrou o sertão no realismo mágico de suas palavras inventadas

"João era fabulista, fabuloso, fábula? Sertão místico disparando no exílio da linguagem comum? (...) Por que João sorria se lhe perguntavam que mistério é esse? E propondo desenhos figurava menos a resposta que outra questão ao perguntante? (...) Ficamos sem saber o que era João e se João existiu de se pegar"

É com toda essa aura de mistério que o poeta Carlos Drummond de Andrade se despediu do escritor João Guimarães Rosa, em poema publicado no jornal Correio da Manhã, em 22 novembro de 1967, três dias após a morte do amigo.

Entre Diadorins, Riobaldos, burrinhos Pedrês, Augustos Matragas, em terras distantes do sertão brasileiro que se passa o universo do realismo mágico de Rosa.

As personagens e os cenários narrados pelo escritor revelam o seu próprio interior sensível e humilde. É assim que Carolina Serra Azul doutoranda em Teoria Literária pela USP, define Guimarães Rosa.

"Nos interiores do Brasil, nas sabedorias populares, o Guimarães Rosa consegue enxergar uma sabedoria profunda, muitas vezes comparável até com o que os filósofos da Europa estavam formulando no século 20. Ele não olha pro ser humano, para as pessoas dos interiores do Brasil como pessoas que soubessem menos, mas como pessoas que tivessem uma sabedoria extremamente profunda para deixar como tradição", analisa.

Conhecedor de mais de 10 línguas, Guimarães tinha relação peculiar com as palavras. Se recusava a grafar alguns acentos corretamente, conforme a gramática, porque para ele, tal coisa era “sem importância”.

Também foi inventor de muitos neologismos como “enxadachim”, uma mistura de enxada com espadachim, usado no livro “Primeiras Estórias” para se referir a um trabalhador do campo que lutava para sobreviver.

A pesquisadora Carolina Serra Azul estudou a relação de Guimarães Rosa com o modernismo paulista da década de 1920. Ela destaca o quanto o escritor foi além do regionalismo ao retratar o sertão brasileiro.

"No sentido de que ele trabalha intensamente com a tradição regionalista, mas ele supera. Isso tem muito a ver com a inversão do ponto de vista, ela abarca não só questões caras a uma região, cara ao interior de Minas Gerais, cara ao sertão. Mas se aprofundando na região, o Guimarães Rosa consegue falar de questões caras a pessoas que não habitam aquela região. Ele consegue formular questões que a gente pode dizer "universais", se a gente pensar pelo menos no ocidente, embora ele mobilize muitas questões do oriente também, mas ele consegue superar o regionalismo neste sentido", pontua.

Guimarães nasceu em Codisburgo, Minas Gerais, em 1908. A primeira obra dele foi "Magma", um livro de poemas publicado postumamente, apenas em 1977. Estreou de fato com o livro “Sagarana”, em 1946, a obra reúne 9 novelas, gênero característico do autor.

Dez anos depois, em 1956, veio a obra que o consagrou: o romance "Grande Sertão: Veredas". Desfiador e intenso, a narrativa trata do amor proibido que o jagunço Riobaldo sentia pelo amigo Diadorim.

Leia um trecho: 

“Diz-que-direi ao senhor o que nem tanto é sabido: sempre que se começa a ter amor a alguém, no ramerrão, o amor pega e cresce é porque, de certo jeito, a gente quer que isso seja, e vai, na idéia, querendo e ajudando; mas, quando é destino dado, maior que o miúdo, a gente ama inteiriço fatal, carecendo de querer, e é um só facear com as surpresas. Amor desse, cresce primeiro; brota é depois.” “Tudo turbulindo. Esperei o que vinha dele. De um aceso, de mim eu sabia: o que compunha minha opinião era que eu, às loucas, gostasse de Diadorim, […] no fim de tanta exaltação, meu amor inchou, de empapar todas as folhagens, e eu ambicionando de pegar em Diadorim, carregar Diadorim nos meus braços, beijar, as muitas demais vezes, sempre.” “Abracei Diadorim, como as asas de todos os pássaros”

O escritor faleceu três dias depois de tomar posse na Academia Brasileira de Letras, em 1967. Mas como ele mesmo disse, durante o último discurso: “As pessoas não morrem, ficam encantadas.”

E viva os encantamentos de João Guimarães Rosa!
 

Edição: Camila Salmazio