ESTADO ESPANHOL

A vitória da autodeterminação da Catalunha e o beco sem saída do governo de Rajoy

O governo, através das forças repressivas, fez o possível para tornar impossível aquilo que exigia: a legalidade

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Manifestações de solidariedade com a Catalunha aconteceram em diversas cidades do Estado espanhol, como Madri, Sevilha, Valência, Bilbau
Manifestações de solidariedade com a Catalunha aconteceram em diversas cidades do Estado espanhol, como Madri, Sevilha, Valência, Bilbau - TeleSUR

Após a declaração de inconstitucionalidade da Lei do Referendo, que havia sido aprovada pelo Parlamento da Catalunha, por parte do Tribunal do Constitucional espanhol, os 15 mil policiais nacionais e guardas civis enviados em três cruzeiros para o porto de Barcelona (ES) saíram em seus veículos.

Durante todo o dia do último 1 de outubro reprimiram o exercício do direito ao voto do povo catalão. O famoso "vá pegá-los" com que foram enviados, retirados de outras cidades da Espanha, com a participação de autoridades, não era outra coisa senão uma extensão do que já havia decidido o governo de Rajoy.

Não é preciso buscar adjetivos para o exercício da repressão contra os colégios eleitorais, contra a fila de eleitores ou contra o "material eleitoral". As imagens divulgadas nos vídeos compartilhados falam por si só e não precisam de comentários sobre o que o governo Rajoy considera como uso "proporcional, eficaz e tranquilo" do monopólio da violência que ostenta.

A Guarda Civil e a Polícia Nacional atuaram como tropas de ocupação. Em todo caso, a vice-presidenta do governo espanhol, Soraya Saenz de Santamaría, esclareceu todas as eventuais dúvidas assegurando que as forças repressivas - neste caso de "desordem" do processo eleitoral - atuaram somente contra o "material eleitoral".

Os 844 "materiais eleitorais", na cínica terminologia da vice-presidenta, tiveram que ser atendidos em diversos hospitais da Catalunha e dois deles se encontram em estado grave por disparos de balas de borracha. Balas de borracha que há algum tempo estão proibidas na Catalunha.

O que demonstra uma das qualidades, entre muitas, do grande movimento que possibilitou o 1 de outubro: a capilaridade da organização. Alguns, com excessiva licença poética, comparam o movimento com o 15-M catalão: não, ele é muito mais amplo.

Durante semanas, o governo Rajoy havia assegurado que legalidade é o mesmo que democracia. PSOE, Ciudadanos, os meios de comunicação (as capas e os artigos do El Mundo, La Razón, El País, ABC...do dia 02 parecem uma alucinante invenção do que aconteceu no dia anterior) e os conhecidos especialistas em legitimação explicaram esta tese de mil maneiras distintas. Explicaram também sua contrapartida: o referendo do 1 de Outubro não era legítimo, não era legal, não tinha garantias, não era nada próximo a algo democrático.

Independente do que o governo defina e interprete através do controle do seu aparato judicial - especialmente o Tribunal Constitucional cuja maioria comanda, relegando a "independência do poder judiciário" a um insuperável exemplo de contradição de termos [contradictio in terminis] do que é "legalidade" -, é evidente que a coerência do seu discurso exige, nesse momento, ilustrar o que compreende como "democracia" através das imagens de doze horas de repressão filmadas ao vivo.

O efeito não poderia ser mais devastador para a legitimidade de qualquer governo. Um governo legal por definição, outro exemplo perfeito de que existem legalidades que merecem ser varridas da realidade.

Autodeterminação impossível?

A "ilegalidade" reprimida - com um critério de "proporcionalidade" que exigia, para conter a dissolução do "material eleitoral", que não fosse permitido expressar-se através da introdução de um papel em uma urna - tornou impossível o exercício do direito à autodeterminação através do referendo, segundo o governo Rajoy.

É difícil que o governo consiga negar seus esforços repressivos para desvirtuar as condições habitualmente exigíveis para o desenvolvimento democrático do exercício do voto. Como em uma profecia autocumprida ou uma crônica anunciada, o governo fez o possível para tornar impossível o que exigia.

Apesar disso, o mais assustador é que as pessoas - muitas pessoas, mais de dois milhões de pessoas - organizaram milhares de colégios eleitorais, enfrentaram muitas horas de fila (o ataque ao sistema informático obrigava muitas vezes que algum membro da sala saísse para pedir que as pessoas "tivessem paciência") - votaram e fizeram cordões humanos contra aqueles que queriam levar as urnas e os papéis.

Tal ousadia democrática merecia ser punida através da barbárie policial, uma e outra vez "proporcionalmente". As imagens da repressão impressionaram muitos observadores estrangeiros que ficaram incrédulos diante do que estavam vendo, em um Estado que se costuma chamar como "de direito".

É possível questionar que a expressão de resistência democrática e do exercício do direito à autodeterminação de todas essas pessoas é algo muito superior ao formalismo de introduzir um voto em uma urna?

Muitas pessoas, no momento da votação, quiseram ser fotografadas. Porque estavam conscientes de que viviam um momento histórico. Não é algo comum nas outras eleições. E existem aqueles que em sua impotência de impedir o referendo,  quiseram discutir posteriormente a transparência das eleições. É a calúnia mais imprudente quando não se tem nem mais um pingo de razão. Estavam presentes pessoas idosas, que tinham lugar preferencial nas filas, que tiveram que voltar para casa porque haviam levado a cópia do documento e só era permitido votar com o documento original, como informavam os membros da mesa com lamento. E algum tempo depois os idosos voltavam com o documento original...Mas os defensores do "estado democrático de direito" tentaram desprezar esta grande jornada de mobilização democrática qualificando-a como "piquenique", ou caluniando-a ao afirmar que se realizavam "votações em grupo".

As hemerotecas foram severas, mas algumas voltaram atrás. O Alto Comissariado dos Direitos Humanos das Nações Unidas,  Zeid Raad Al Hussein, exige uma investigação sobre os atos violentos cometidos pela polícia no dia 01 de outubro.

Recordem a definição de direito à autodeterminação dos povos no direito internacional: "Todos os povos têm direito à autodeterminação. Em virtude desse direito, determinam livremente seu estatuto político e asseguram livremente seu desenvolvimento econômico, social e cultural".

Porque o elemento central do direito de autodeterminação é a constituição de um povo soberano que decide por si mesmo, e não o resultado dessa decisão. Depois do 1 de outubro restam poucas dúvidas de que o povo da Catalunha se constituiu como povo soberano. Este é o direito internacional de um povo que pretende desvincular-se da Constituição de 1978 que estabelece a priori, no seu 12º artigo, a existência de um só povo soberano no Reino da Espanha, que "restauraria" sua soberania sob uma monarquia, depois de 40 anos de ditadura franquista.

Uma nova legitimidade popular catalã

Depois do 1 de outubro, a "ilegalidade" declarada pelo Tribunal Constitucional sobre a qual se assenta a repressão vivida, se enfrenta a uma nova legitimidade constituinte surgida da própria mobilização popular em defesa do direito a decidir. Nos próximos dias, várias propostas serão embaralhadas. Mas algo já está claro para uma grande parcela da população: o 1 de outubro constituiu um povo catalão soberano e tornou realidade o surgimento de uma nova legitimidade para o estabelecimento das instituições políticas catalãs que, no momento adequado, atribuirão ao novo Parlamento um caráter constituinte.

Esta é a principal razão jurídico-política da derrota de Rajoy neste 1 de outubro: o diálogo necessário e a negociação terão lugar e estarão baseadas nas soberanias compartilhadas, mas distintas das que impunham à Catalunha o regime de 78. No discurso da noite do 1 de outubro e nos próximos dias, o governo de Rajoy tentará negar esta possível natureza nova das instituições políticas catalãs, como se a mobilização - e não só o referendo - não houvesse acontecido, como se o que ocorreu fosse apenas um problema de "ordem pública" e o diálogo político uma submissão hierarquizada para reestabelecer a gestão das finanças e as competências autônomas interditadas.

Nessa lógica, tem todo sentido o chamado da Frente Ampla pela Democracia para defender os direitos soberanos cidadãos na Catalunha. Como também é imprescindível  a solidariedade em todo o Estado Espanhol e em toda a União Europeia. Hoje, dia 3, acontece uma greve geral, ainda que alguns prefiram chamar de "paro de país" ou de "paro" apenas.

Uma fase mais aguda da crise do regime de 78

O 1 de outubro inaugurou uma nova fase, mais aguda, da crise do regime de 1978. Tanto Unidos Podemos como as forças independentistas catalãs - e em breve vascas - apontam para o desenvolvimento de processos constituintes que permitam estender o direito de decidir para além da Constituição de 78 e os limites impostos pelo "poder fático" na Transição Espanhola a todos os cidadãos e a todos os povos do Estado espanhol. As manifestações de solidariedade com a Catalunha que aconteceram em Madri, Sevilha, Valência, Bilbau são demonstrações deste caminho aberto pelas mobilizações do 15-M, da luta do povo catalão pela sua autodeterminação e a negligência com as liberdades democráticas da Catalunha antes e durante o 1 de outubro.

As declarações de Pedro Sánchez não são esperançosas: ele condena o 1 de outubro como atentado ao "estado de direito". Ao mesmo tempo, o dirigente do PSOE teve que exigir do PP a instauração de uma comissão de reforma constitucional e um "diálogo" com as instituições políticas catalãs devido à condenação da atuação repressiva do governo Rajoy: um equilibrismo impossível, cabe ressaltar. Mas a solução para este equilíbrio não é outra senão uma moção de repúdio imediata contra o governo Rajoy.

Porque, em termos práticos, o governo Rajoy sai da sua gestão desmoralizado não só por causa do 1 de outubro, mas devido à sua orientação de confronto com o movimento independentista catalão desde que entrou com um recurso de inconstitucionalidade contra o Estatuto de Autonomia da Catalunha, aprovado em 2005, e ganhou a sentença em 2010. Sua minoria maioritária que lhe permitiu formar um governo depois de dois processos eleitorais perdendo uma quantidade significativa de votos só foi possível com a abstenção da direção do PSOE e com o apoio orçamentário do Partido Nacionalista Vasco (PNV). Depois do 1 de outubro, o PP não pode mais contar com o PNV para o orçamento de 2018 e terá que prorrogar o de 2017. E a tentativa de promover uma aliança com o PSOE de Pedro Sánchez sob sua hegemonia através do enfrentamento com o independentismo catalão esbarra atualmente na condenação das cenas de repressão e no chamado ao diálogo que o tornam corresponsável, em outro equilibrismo, pelo enfrentamento institucional com Puigdemont. O PP conta somente com o apoio dos autonomistas das Canárias e com Ciudadanos, que já começa a criticar a gestão da questão catalã por sua ineficácia, quando não pelo seu fracasso.

A repressão ao referendo do 1 de outubro exige um ato de fé por parte da direita espanhola: acreditar que desarticularam um referendo cuja recontagem de votos podia ser vista na TV3 no momento em que Rajoy fazia sua declaração oficial depois da jornada. Mas se é discutível a existência das condições para o desenvolvimento democrático depois da massiva repressão, não resta dúvida de que a mobilização do movimento independentista catalão para votar e defender os colégios eleitorais  foi a maior de todas nestes sete anos de ofensiva do PP. E esse movimento segue mais ativo depois do 1 de outubro, mais organizado e mais legitimado do que em ocasiões anteriores em relação ao exercício do direito de autodeterminação. De tal modo que parecem minimamente ingênuas as ofertas de ministros como a de Luis De Guindos, de uma melhora no sistema de financiamento da autonomia quando todas as contas já estão bloqueadas. Essa direita nacionalista espanhola culpará Rajoy pelo seu fracasso no 1 de outubro, desgastando a sua legitimidade e a sua hegemonia na sua própria base social.

Sem descartar novas intervenções repressivas nos próximos dias e nos próximos meses, inclusive a aplicação formal do artículo 155 [que autoriza o governo, mediante aprovação do Senado, a obrigar a comunidade autônoma a cumprir forçadamente a Constituição], a crise catalã será transferida para Madrid. Já foi transferida, mas será com maior contundência. A exigência do diálogo para sair do beco sem saída em que Rajoy colocou o regime de 78, tanto no campo do orçamento como na estrutura territorial do Estado (os dois únicos objetivos desta legislatura), pressionará a existência de um governo capaz de executá-lo.

Esse governo não pode surgir da aliança entre PP e Ciudadanos e só pode ser constituído através de novas eleições antecipadas, que seriam as terceiras desde o final da maioria absoluta do PP.

Na falta de uma alternativa de esquerda - que não poderia contar com os apoios dos partidos independentistas vascos ou catalães sem provocar uma nova crise no PSOE - a agonia do regime de 78 pode se prolongar com consequências cada vez mais prejudiciais para uma gestão econômica completamente dependente dos programas de "flexibilização quantitativa" do Banco Central Europeu para o financiamento da sua dívida pública e privada.

O autocomplacente discurso de vitória de Rajoy no 1 de outubro pode ser seu canto do cisne. Soava à decomposição de um regime deslegitimado e corrupto. No dia 4, o Parlamento da Catalunha fará um balanço. E Rajoy comparecerá ao Congresso dos Deputados da Espanha (Câmara dos Deputados no Brasil) para explicar uma intervenção que provocou violações de direitos humanos criticadas pela própria União Europeia. Enquanto isso, na Catalunha e em outras regiões do Estado espanhol se exige: Fora Guarda Civil e Polícia Nacional da Catalunha!

Edição: Sin Permiso | Tradução: Luiza Mançano