Reflexão

Artigo | Sobre a arte degenerada

Não é primeira vez que obras de arte recebem tratamento difamatório, mas elas são poderosas demais para serem ignoradas

Brasil de Fato | Belo Horizonte (MG) |
Parte da exposição Queermuseu
Parte da exposição Queermuseu - Reprodução Santander Cultural

Em 1933, Hitler fecha a Bauhaus na Alemanha (Escola de Arte criada pelo arquiteto Gropius em 1919) e promove a primeira exposição difamatória da arte moderna em Karlsruhe e Mannheim. O regime nazista começa então a perseguir diversos curadores, diretores de museus, artistas e professores como Willi Baumeister e Otto Dix.

Em 1937, o então ministro da propaganda Josef Goebbels, difundiu uma massificada campanha contra a arte moderna, criando assim o conceito de “Arte Degenerada”, para definir uma série de obras artísticas que eram consideradas “subversivas”. As maiorias destas obras eram de artistas alemães, porém entre elas havia também telas de Matisse, Picasso e até mesmo Van Gogh.

Foram confiscadas cerca de 5000 obras e em 19 de julho de 1937, organizaram uma exposição com cerca de 650 pinturas, esculturas, gravuras, devidamente escolhidas daquele acervo “maldito”, e lhe chamaram Entartete Kurnst, ou Exposição da Arte Degenerada, cujo objetivo era expor as obras apreendidas com fim de ridiculariza-las.

Usando sobre as imagens ou esculturas frases com intuito “pedagógico” de “explicar” seu significado aos visitantes. Os nazistas também organizaram simultaneamente uma outra exposição chamada “Grosse deutsche Kurnstausstellung  (“Grande exposição da Arte Alemã”), com obras de arte ditas “não degeneradas”. Contudo a exposição da “Arte Degenerada” recebeu um número imensamente maior de visitantes do que a exposição com obras consideradas “não degeneradas.

Esta nota histórica nos traz a reflexão de que não é primeira vez que obras de arte recebem tratamento difamatório. Por outro lado, nos mostra que são poderosas demais para serem ignoradas. Elas transcendem seu próprio tempo, traem seu próprio criador, significam e ressignificam aos olhos de seu apreciador ou mesmo de seu inquiridor.

No Brasil recentemente uma série exposições de arte tem estado sob o astuto olhar censor de certos grupos políticos conservadores. O caso mais emblemático é o do Queermuseu. Que foi duramente criticado até o fechamento da exposição. Exposição esta que já havia sido apresentada em Washington e também em Varsóvia, capital da Polônia, coincidentemente uma das cidades que mais sofreu com o regime nazista.

Porém se antes as obras do Queermuseu ficariam restritas a poucos e seletos observadores, que pudessem acessá-las em uma exposição realizada na galeria de um banco privado, agora, elas romperam para além de seus próprios limites e estão no foco do olhar de todos. Bertold Brecht, poeta alemão exilado durante o regime nazista, se questionava, “que tempos são estes, em que é quase um delito falar de coisas inocentes”.

Pois o surto pseudo moralizante caiu como um tacape sobre a arte alemã, e consequentemente sobre as liberdades individuais. As cores sumiram, o riso silenciou, o pensar por si mesmo foi substituído pela norma publicada, por uma estética sombria que tragou uma geração. Surtos moralizantes quase sempre precedem o horror, a insensibilidade e a insensatez.

Como disse Adorno: “A grandeza de uma obra de arte está fundamentalmente no seu caráter ambíguo, que deixa o expectador decidir sobre seu significado”. Na tentativa de silencia-la, ela gritou. Gritou alto, para que todos a ouvissem, até mesmo os que a tentaram silenciar! A arte sobreviverá certamente. Mas são tempos sombrios sem dúvida. Em que o pincel segue os contornos do medo, os poemas devem ser ditos em segredo, a única nudez tolerada é a da ignorância explícita.

Como historiador não posso me furtar a responsabilidade de alertar a sociedade, que fenômenos iguais a estes já se passaram neste mundo. E que as consequências foram terríveis. "A função do historiador é lembrar a sociedade daquilo que ela quer esquecer" diria Peter Burke. No que completa Bertold Brecht, pois “aquele que ri ainda não recebeu a terrível notícia que está para chegar”.

*Flávio Muniz é historiador

Edição: Frederico Santana