Exposição

Filósofo francês aponta herança cultural de atos rebeldes ao redor do mundo

Em cartaz no Sesc Pinheiros, em SP, mostra resgata, através de expressões artísticas, a importância das insurgências

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
“Alguém que não fale com os outros seria um louco. Ou um ditador", afirma Georges Didi-Huberman
“Alguém que não fale com os outros seria um louco. Ou um ditador", afirma Georges Didi-Huberman - José Eduardo Bernardes

“Para definir nosso desejo de futuro, temos que saber que memória herdamos”, conta o francês Georges Didi-Huberman, filósofo e historiador de arte, que traz para o Brasil a mostra Levantes. Utilizando fotografias, vídeos e registros literários, a exposição reconta a história das mais variadas insurgências contra o poder instituído pelo mundo.

Segundo Huberman, curador da mostra em parceria com a galeria Jeu de Paume, de Paris, a ideia é resgatar, a partir de pequenos fragmentos da memória, o que significaram as movimentações populares por Justiça, direitos e cultura e dar aos visitantes a opção de "herdar" as lutas que ajudaram a moldar o mundo como conhecemos.

“A exposição, no melhor dos casos, serve para dar às pessoas a ideia de que elas são as herdeiras de Baudelaire, de Victor Hugo, de Glauber Rocha, do Parangolê [de Hélio Oiticica]”, conta o francês.

Em entrevista exclusiva para o Brasil de Fato, Huberman comenta que o papel do artista, independentemente da plataforma utilizada, é de se comunicar com os outros: “Alguém que não fale com os outros seria um louco. Ou um ditador. É igual. Uma fantasia nacionalista, por exemplo, fica entre si, o mesmo com o mesmo”. 

Em cartaz no Sesc Pinheiros, em São Paulo, de 19 de outubro a 28 de janeiro, a mostra reúne fotografias de Marcel Duchamp, Man Ray, Cartier Bresson e Gilles Caron, além de textos de Marcel Foucault, Baudelaire e André Breton. Os levantes brasileiros que transformaram a cultura popular como o Manifesto Antropofágico de Oswald de Andrade e obras de arte como Parangolés, de Hélio Oiticica, também estão presentes na exposição. 

Maria Kourkouta - fronteira Grécia e Macedônia

Confira a íntegra da entrevista:

 

Brasil de Fato: A exposição tem registros de levantes e insurgências de vários períodos. E eles continuam acontecendo, de alguma maneira. Qual é o legado, a herança que esses registros deixam desses levantes? 

Georges Didi-Huberman: A ideia, de fato, mais importante dessa exposição, corresponde à sua pergunta. É uma questão de herança. Eu acho que para definir nosso desejo de futuro, temos que saber de que memória herdamos. Tem um grande poeta francês, chamado René Char, que era um resistente durante a guerra [Segunda Guerra Mundial - 1939 a 1945], um grande resistente, e ele disse: 'Nossa herança não é precedida por nenhum testamento'. 

Ninguém fez o testamento, mas temos que constituir nossa herança. Então, uma exposição como essa, no melhor dos casos, serve para dar às pessoas a ideia de que elas são as herdeiras de Baudelaire, de Victor Hugo, de Glauber Rocha, do Parangolê [de Hélio Oiticica], entende? Somos nós que temos que inventar uma genealogia. E essa é a ideia da exposição: pequenos testemunhos da memória, dos quais a gente pode escolher se a gente quer herdar ou não.


Natureza das Coisas, de Pedro Motta

Você comentou, em uma entrevista, que o artista tem a liberdade de chegar onde outros não chegam e, por isso, o dever do artista é comunicar com o outro, não consigo mesmo. A exposição consegue cumprir esse papel? 

Alguém que não fale com os outros seria um louco. Ou um ditador. É igual. Então, o artista tem que dirigir-se constantemente aos outros. Uma imagem é sempre a imagem de alguém, do outro. Mesmo se você faz um auto-retrato, é um outro. Você faz a imagem de um outro e você transmite ela aos outros. A catástrofe é acreditar que poderíamos ficar o mesmo com o mesmo. Isso é a fantasia.

É uma fantasia de muitas pessoas. É uma fantasia nacionalista, por exemplo, ficar entre si, o mesmo com o mesmo. E bom, eu me interesso pelos outros e eu pensei isso para essa exposição, que ela tivesse épocas muito diferentes e países muito diferentes. O que acontece na China é tão terrível quanto o que está acontecendo no Brasil. O que acontece na Grécia e na Macedonia é terrível, o que acontece na França… Tudo isso comunica do outro para o outro.

The Route, do cineasta Chieh-Jen Chen

No Brasil, vivemos um momento de censura da arte. É uma onda conservadora que tem encontrado eco por aqui, e também fora do país, com uma expansão de ideias fascistas na Europa e nos Estados Unidos. Como tem percebido esse movimento e o quanto ele afeta a produção artística? 

Eu acho que toda atividade é uma atividade contra. Você sempre tem alguém na sua frente, contra ou a favor. É o que a gente estava falando antes. Tudo se faz com o outro. Então, tem o outro hostil. Tem essa ideia catastrófica que é: o que é outro tem que ser inimigo. Isto é a extrema direita, a ideia de que o outro é um inimigo. Então, como isso afeta? Afeta, evidentemente, porque eles têm muito poder, muita força. E estamos em um momento de luta. Mas sempre foi assim. 

Então, temos que ter uma espécie de persistência e expressar nosso desejo, apesar de tudo, apesar da censura. Mas há censuras de todos os lados. Conheço casos na França, de censuras da esquerda, infelizmente. Desde que exista um aparato, ou seja, um poder instituído, há riscos de censura.

Beaubien Street, de Ken Hamblin

Nesse ano completamos 100 anos da Revolução Russa e 50 anos da morte de Che Guevara. Como você analisa os registros de artistas como Alexander Rodchenko e do fotógrafo Alberto Korda das revoluções. Eles se tornaram uma espécie de marketing? 

É preciso fazer uma diferenciação entre os levantes e a revolução. Porque se a gente a chama revolução, é porque ela teve sucesso. Lenin chegou no poder. Mas ainda em 1905, houve, na Rússia, um movimento revolucionário que fracassou. Então, a gente chama isso de levante. 

Eu aqui me interessei não pelas revoluções, mas pelos levantes. Talvez seja apenas uma questão de abordagem. Eu tenho interesse pelas imagens e pela arte. Não sou um homem político. Então meu problema não é saber como chegar ao poder. Isso não é meu problema. Mas eu me interesso por tudo isso. E, sobretudo, me interesso por esse desejo de levante que, às vezes, se quebra na própria revolução. 

Por exemplo, em um dos espaços da exposição nós temos os jornais de Kronstadt. O Kronstadt é um levante de marinheiros russos em 1921, totalmente comunistas. Eles eram verdadeiros comunistas. Eles foram massacrados por [León] Trotsky. Isso foi um levante, não uma revolução.

Então, todas as formas de potência e de poder usam a imagem, desde sempre. O crucifixo é uma imagem de propaganda, o Cristo crucificado. Então não é de se surpreender que o Che Guevara tenha se tornado uma imagem. 

Falando nisso, o Che Guevara, em muitas fotos, está ele mesmo com uma câmera. Você já reparou nisso? Ele fez muitas fotos. Tem um livro magnifico sobre as fotos do Che. É muito interessante. A imagem é um meio. O interessante no Che Guevara é que ele observa, por exemplo em Cuba, ou nos países da África, um pouco à maneira de um etnólogo. Ele é fascinado pela beleza dos monumentos. Então, de repente, essas fotografias são fotografias de artes. Então tem essa mistura. A imagem é como a linguagem. Com a linguagem, você pode expressar um discurso muito duro ou você pode fazer um poema.

Estefanía Peñafiel Loaiza 

Hoje, as pessoas se tornaram agentes da história, ao registrar com seus celulares levantes, insurgências. Como as novas tecnologias influenciaram na propagação dessas imagens?

No fundo, você tem razão. Hoje, qualquer pessoa pode ser a testemunha de um levante com seu celular. Mas a questão não é apenas ter os meios para fazer isso. Porque no século XVI, isso já era feito, mas pela fala, um com o outro. A questão é: o que vai se tornar este testemunho? A questão não são as novas tecnologias. 

Eu não uso muito as redes sociais. Sou um pouco velho para isso. Eu me pergunto: esses testemunhos que todo o mundo quer fazer, o que eles querem dizer? Essa é a minha pergunta. Você deve saber melhor do que eu...

Enrique Ramirez, Cruzar un muro [Passing through a wall], 2013

Falando em redes sociais, existe hoje um jornalismo mais emergencial, que foca em imagens e pequenas artes gráficas para comunicar. De outro lado, ainda resiste um jornalismo mais tradicional, mais analítico. Essa era de emergências pode ser um risco para a perpetuação desses levantes, não acha?

Você tem razão. Estou espantado com isso. Por exemplo, tem aqui na exposição, uma foto da Tina Modotti, é uma fotógrafa mexicana da época da revolução mexicana. É uma fotografia que está aqui do lado e são camponeses que acabaram de receber o jornal. Só tem um jornal. Hoje, cada um tem tudo no seu celular. Cada um por si. Lá, tem um único jornal para todos. Então, você vê, os camponeses, que estão todos juntos, estão lendo o jornal juntos e, evidentemente, conversam sobre o que estão lendo. 

Hoje, se eu estou com meu iPhone, meu smartphone, estou sozinho frente à informação. A questão não é, de novo, que a informação circula melhor. É verdade que ela circula melhor, e ainda bem. A questão é : qual é o uso inter-subjetivo, entre os sujeitos, que se faz de esta informação? Será que é realmente um dialogo que se estabeleceu? Nem sempre. A forma publicitaria é uma forma narcisista. 

Você não pode se isolar com a informação. Eu penso que essa estratégia é uma espécie de neo-fascismo, é de isolar cada um. Você pode saber tudo do mundo e você está sozinho, você não pode conversar a respeito disso. Então, para que serve saber tudo? Não serve para nada!

Serviço:

Exposição Levantes - Curadoria de Georges Didi-Huberman

Quando:

Visitação: 19/10 a 28/01. 

Terça a sexta, das 10h30 às 21h30; sábados, das 10h30 às 21h; domingos e feriados, das 10h30 às 18h30.

Local: Sesc Pinheiros. Endereço: Rua Paes Leme, 195. Próximo à estação Pinheiros do metrô.

Ingresso: gratuito.

Recomendação etária: livre.

Edição: Vanessa Martina Silva