Geração

Rompendo ciclos: a nova cara do sertão

A juventude do interior nordestino interrompe ciclo de pouco estudo e trabalho precoce

Brasil de Fato | Caruaru (PE) |
Crianças de Queimadas, na cidade de João Câmara no Rio Grande do Norte
Crianças de Queimadas, na cidade de João Câmara no Rio Grande do Norte - Danilo Ramos

O dia começa cedo, afinal as aulas regulares acontecem logo pela manhã. O período da tarde é dedicado às atividades extracurriculares como aulas de teatro, dança, música e futebol, além do cursinho preparatório para a escola técnica ou para o vestibular. Nos momentos livres é hora de encontrar os amigos, assistir séries no Netflix, ler mangás e navegar nas redes sociais pelos smartphones. 

Os planos para o futuro são muitos. “Eu quero ser diretor de cinema”, diz Lázaro Peixoto, de 13 anos. “Meu sonho é conhecer a Coréia do Sul”, releva Érica Miranda, de 12 anos. “Estou estudando para cursar engenharia civil na universidade federal”, conta Márcio Júnior, de 15 anos.

Essas crianças são do interior do Nordeste, área que historicamente reuniu os maiores índices de pobreza e desigualdade do país e que ainda habita o imaginário geral como o local de poucas oportunidades. No entanto, após décadas de políticas sociais Lázaro, Érica, Márcio e grande parte de toda uma geração romperam com um ciclo de estudos interrompidos, trabalho precoce, falta de água e se preparam para um futuro cheio de perspectivas. 

Karollyny do Nascimento Silva ( primeira à direita) mora em Alto do Moura, um distrito de Caruaru a 140 quilômetros da capital pernambucana. Foto: Danilo Ramos

“Meus pais contam que tinham que caminhar uma hora para chegar na escola e meu pai diz que na minha idade já trabalhava para sustentar sua família. Minha mãe também parou de estudar muito cedo para ajudar em casa. Hoje eu não conheço ninguém que tenha parado de estudar para trabalhar, nem dentro nem fora de casa”, conta a estudante Karollyny do Nascimento Silva, de 14 anos, que mora em Alto do Moura, um distrito de Caruaru a 140 quilômetros da capital pernambucana.

Com acesso garantido à escola, cisterna em casa, vacinas em dia, pelo menos três refeições no prato e uma série de atividades gratuitas no contra turno das aulas, o novo sertão sonha alto: os jovens planejam ir para a universidade e se tornarem médicos, dentistas e arquitetos. Mais que isso, querem fazer intercâmbio e estudar nos Estados Unidos ou no Canadá. Sonham em viajar, aprender línguas, adquirir casa própria e têm plena consciência que são parte da primeira geração com tantas oportunidades.

“Minha mãe só conseguiu estudar até a 4ª série e sempre trabalhou. Nunca teve luxo em casa, como um telefone, por exemplo”, conta Lázaro, o aspirante a diretor de cinema, de Trindade, no sertão pernambucano. O interesse é tanto que ele está dirigindo uma novela gravada em sua escola. “Estamos nos inspirando em um livro escrito por uma adolescente, que foi disponibilizado em um aplicativo de compartilhamento de textos”, conta. Além de teatro, o jovem tem aulas de dança, jogos, desenho e saídas de campo, em um projeto pedagógico inovador da sua escola, que o ocupa durante todo o dia. 


Lázaro Peixoto, estudante de Trindade que pretende ser diretor de cinema. Foto: Danilo Ramos

Apesar de enfrentar um momento de recessão, a expectativa para este ano é que o Nordeste sustente o segundo maior crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) do país, com uma taxa positiva de 2,3%, atrás apenas do Norte, que deve crescer 3,9%, segundo um estudo da consultoria Tendências. Na região, onde vive mais de um quarto da população brasileira, a classe média foi engrossada em 20 pontos percentuais entre 2003 e 2013 e passou a reunir 34% da população naquele ano, atrás apenas do Sudeste, com 36%, segundo um estudo do Instituto Data Popular. 

“Meu sonho é ser médica pediatra. Gostaria de um dia poder estudar nos Estados Unidos ou no Canadá, como um intercâmbio. Acho que isso seria muito bom”, planeja a estudante Emylim Juvêncio da Silva, de 12 anos, que vive em Queimadas, distrito de João Câmara (RN). “Eu assisto animes, leio mangás e me interesso muito pela cultura do Japão. Sonho em uma dia viajar para lá e para a Coréia do Sul”, emenda a amiga também estudante, Érica Miranda. Juntas elas assistem filmes e seriados e participam de grupos de dança e teatro em seu município.

A mudança

Os programas de transferência de renda, sobretudo o Bolsa Família, tiveram papel importante nesta virada. “Indiretamente ele começou a regular o valor da mão de obra. Antigamente o agricultor era explorado e recebia por um dia de trabalho algo em torno de R$ 5 ou R$ 10. Com o dinheiro garantido do Bolsa Família ele pode negociar um preço melhor. Além disso o programa melhorou o nível educacional e reduziu o analfabetismo”, diz o pesquisador do Instituto Nacional do Semiárido, Salomão Medeiros.

Outro fator que explica a mudança foi o acesso facilitado à água. Entre 2003 e 2014 o governo federal financiou a instalação de um milhão de cisternas nas áreas rurais do sertão nordestino, a partir de articulações da sociedade civil, por meio do programa Um Milhão de Cisternas. “As famílias tinham que passar parte considerável do tempo em busca de água em vez de se dedicarem a uma atividade produtiva. Com as cisternas melhorou a saúde, tanto devido à melhor qualidade da água como ao incremento de mais opções na cesta básica”, diz Medeiros.

A pedagoga Fabiana Ribeiro de Vasconcelos, de 34 anos, que vive em Trindade, lembra bem dessa época.  “A gente caminhava muito para buscar água em uma barragem longe daqui e só conseguíamos uma água ruim. As crianças ficavam na feira, com um carrinho de mão, levando as compras para a casa em troca de uma moeda. Essa geração nem sabe o que é isso. Eles não conheceram esse nosso passado sofrido”, conta. Hoje o município é abastecido por água oriunda da transposição do Rio São Francisco.

Para o coordenador do escritório do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) em Fortaleza (CE), Rui Aguiar, o que falta agora são medidas de estímulo a pequenos negócios comunitários, que permitam empreender e gerar renda nas pequenas e médias cidades do interior nordestino. “Esta geração é única e eles são fundamentais para o projeto de desenvolvimento do país. Investir neles é muito importante”, diz. 

“Deste Nordeste vivo e empreendedor se fala pouco. As pessoas no sertão estão enfrentando uma seca que já dura 6 anos. Na década de 50 algo parecido levou um contingente grande de nordestinos para Brasília, para a Amazônia e para São Paulo. Mas hoje eles estão atraindo pessoas de outros lugares. Desde a constituição de 1988 vem se criando condições de desenvolvimento do semiárido, permitindo que se alavanque outras oportunidades ali. Isso prova que vale a pena investir em políticas sociais e em direitos humanos. Este é o Brasil que nós precisamos”, conclui. 

Edição: Daniela Stefano