Direito humano

Debate elenca os riscos da privatização da água no Brasil

Projetos de sistemas de abastecimento e saneamento são alvo de seminário na Câmara dos Deputados

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"A água está em disputa por quem precisa para beber e produzir, e por quem precisa para a mineração e agronegócio", afirma ativista do MST
"A água está em disputa por quem precisa para beber e produzir, e por quem precisa para a mineração e agronegócio", afirma ativista do MST - Reprodução/Sul21

A Comissão de Desenvolvimento Urbano da Câmara dos Deputados realizou, na tarde desta quarta-feira (22), o seminário “Garantir a água como direito e não mercadoria”. Foram mais de cinco horas de exposições voltadas para a ampliação do debate sobre a preservação desse recurso, bem como o fortalecimento da soberania nacional diante de ameaças privatistas no setor. Participaram parlamentares como o deputado Patrus Ananias (PT-MG) e lideranças de movimentos populares, como Maria Udri, representante do Fórum Alternativo Mundial da Água (Fama).

Maria iniciou sua fala ao alertar sobre os riscos da privatização de sistemas de água. "Temos que ter em mente a imagem da privatização do saneamento. É algo dramático. A água é direito humano fundamental. Não há como admitirmos e subjugarmos nosso país, que tem a maior quantidade de água doce do mundo. Seremos escravos", disse.

Já Patrus, que é secretário da Frente Parlamentar Mista em Defesa da Soberania Nacional, alertou para retrocessos recentes que podem impactar sobre o tema. “Tudo que conquistamos está sendo desconstituído. A Emenda Constitucional 95 (de autoria da base do presidente peemedebista Michel Temer), que chamo de emenda do desmonte, congela o país por 20 anos, congela investimentos em Saúde, Educação, agricultura familiar e, também, congela a proteção das águas. Circula um projeto para liberar a venda de terras para estrangeiros, sem limites. Com a terra, vai a água, nossos recursos e riquezas”.

Patrus lembrou de sua cidade natal, Bocaiuva, no norte de Minas Gerais, para argumentar que, com a escassez de água, sofrem sempre os mais pobres, e que tal recurso deve ser visto como bem público, e não mercadoria. “Estou aqui para combater a insensatez humana. Minha região é marcada pela seca. Se chover 30 dias sem parar, chamamos de tempo bom. Hoje, em Bocaiuva e Montes Claros, temos um racionamento brutal: 12 horas com água e 36 sem. Os mais ricos se viram, fazem poços. Os pobres são penalizados, sofre a agricultura familiar.”

Sobre a frente da qual faz parte, Ananias disse que a água é elemento central da soberania nacional, como bem necessário para o desenvolvimento sustentável. “Somos pessoas com o compromisso com a soberania do país. Para nós, soberania nacional está vinculada com a popular. Nossa compreensão de país soberano é aquele que toma conta de sua gente, que possibilita que todas as pessoas tenham condições dignas.”

Diante das adversidades da atual conjuntura política, o parlamentar propõe ações conjuntas da sociedade civil organizada. “Entregam a Petrobras, o setor elétrico e as águas. Em face disso, desse desmonte de nosso futuro com o comprometimento de recursos, penso que devemos buscar ações cada vez mais integradas e transversais. Ações que superem dificuldades regionais e sociais, por mais importantes que elas sejam (…) Respeitando as especificidades, que busquemos ações integradas entre questões urbanas e rurais”, completou.

Fórum alternativo

O seminário foi composto de sete mesas para a discussão de temas relativos à questão da água como mercadoria. Muitos dos presentes eram membros de comitês do Fama. O evento se realizará no Brasil pela primeira vez em março do ano que vem, na Universidade de Brasília (UnB). A intenção é fazer um contraponto ao Fórum Mundial da Água, chamado pelos ativistas de “Fórum das Corporações”.

“Em todos os Fóruns das Corporações já temos o costume de realizar um trabalho de resistência para fazer o contraponto. O conjunto de entidades é de âmbito nacional e internacional e começamos a nos chamar de fórum paralelo. Então, começamos a articulação do Fama no Brasil em fevereiro de 2017”, disse Silvano Silvério da Costa, membro da Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental do Distrito Federal (Abes-DF). Entre as entidades citadas estão a CUT, a Contag, a FUP, o MST, o MTST e o MAB.

Silvério disse que “a cada dia somam-se mais entidades. O Fórum está marcado para o período de 17 a 22 de março, e o das corporações para os mesmos dias. Estamos programando, para o dia 22, uma grande manifestação internacional em defesa da água como direito e não mercadoria”, disse. “Nossa perspectiva no Fama é de incentivar a população a lutar pelo acesso à água com qualidade”, completou Dandara Kokay, representante do Fama.

Conflitos pela água

A ativista do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) Antônia Ivoneide Silva foi a responsável por levantar questões sobre conflitos relacionados com recursos naturais no campo. “Sou nordestina, cearense, do sertão. Assentada da reforma agrária. Portanto, essa questão da água é muito importante para nós (…) Os conflitos são muito desiguais, principalmente quando se trata de nossa realidade. É um conflito de quem tem a terra e controla a água que está sob ela. Trabalhei em bolsões da seca e sei o que é construir uma obra para conseguir água e de repente aquela água não era mais nossa e sim do dono da terra”, disse.

“Essa luta avança a cada dia com o processo de privatização crescente. A água está em disputa por quem precisa para beber e produzir, e por quem precisa para a mineração e agronegócio”, disse. O problema é que a água utilizada por grandes empresas detentoras do grande capital não retorna para a natureza, como explica a ativista. “A água do agronegócio volta acrescida de agrotóxicos que envenenam outras águas. A água da mineração volta com urânio, ferro, que vai contaminar as pessoas e as águas”, disse.

Por fim, Antônia disse que “não é uma luta pela minha terra, pela minha cisterna ou açude. É a defesa do território. Por isso, a privatização, que transforma tudo em mercadoria, começa a tirar a identidade do que é a água, que vem da terra e não da garrafa. Hoje, dependendo de onde esteja, a água chega a custar R$ 6 a garrafa. E quem não puder comprar, vai beber o quê? Luiz Gonzaga dizia que boi com sede bebe lama. É isso que queremos para os seres humanos? Que bebam lama?”

A luta por soberania e água como direito passa também pela questão das ideias e de disputas fictícias entre moradores da cidade e do campo, como explicou José Isidoro, da Contag. “Um dos instrumentos que tenho percebido é colocar a cidade contra o campo. Isso é muito preocupante porque às vezes isso produz efeito. Não dá para a cidade pensar que com 85% da população morando na cidade e 15% da população morando no campo, que esses 15% da população vão dar conta de resolver esse problema sozinho. Quando a coisa aperta para o Estado, eles entregam para as corporações resolverem. O Estado precisa organizar uma política que vá ao  encontro do que a agricultura familiar já faz: produzir com responsabilidade. Se é menos do que o necessário é porque não tivemos reforma agrária.”

Problemas e perspectivas
O deputado federal Paulo Teixeira (PT-SP) afirmou que temos um governo “que deu um golpe para saquear o Brasil (…) Estão vendendo o petróleo, a energia e a água. Qualquer prefeito que tem autonomia sobre as águas dos municípios resolveu fazer negócio. Os governos estaduais caminham na mesma perspectiva. Veja o Rio de Janeiro vendendo sua empresa de energia. O governo federal está estimulando a venda das empresas de água e esgoto. Vivemos um tempo que nem o serviço que foi vendido no passado com a promessa de ter abastecimento de água foi cumprido. Isso aconteceu em Manaus, que privatizou sua empresa de água e não tem quase nenhum saneamento”.

“Essas empresas só fazem lucro sem nenhum retorno para a sociedade. Temos que dar um paradeiro nestas tenebrosas transações, neste black friday que o governo Temer resolveu dar no Brasil, liquidando as riquezas naturais. Tentaram mesmo mudar a natureza de reservas ambientais com objetivo de permitir exploração indevida. Esse governo precisa ser derrotado. Sua única função é a defesa do interesse de setores mais concentradores de renda e do capital financeiro. Este é o objetivo deste governo: implementar a agenda do setor financeiro”, completou o parlamentar.

Para o ativista do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) Iury Paulino, os ataques sistemáticos à soberania brasileira tem relação direta com o atual governo. “É difícil pensar a soberania de um povo sem o controle das riquezas e recursos. Vemos uma perda sistemática da soberania, dos direitos e da possibilidade de termos uma nação desenvolvida. Estamos sendo saqueados. Com o processo de golpe isso vem sendo ampliado.”

“Temos um processo brutal de privatização da água, que passa pela energia. Quando passamos pela estratégia do capital, me parece semelhante entre água e energia. O capital tem olhado e dividido a água em três grandes negócios: o saneamento em cidades grandes e médias, aonde já tem estruturas feitas e o capital não precisa investir para ter taxas de lucro exorbitantes; o outro é a água superficial com barragens para energia e mineração; por último a comercialização da água mineral”, completou.

Diante dessas disputas, Maria Udri levantou a necessidade de causar impacto com a discussão, de mostrar a relevância e a necessidade de discutir o tema. “É necessário que nossos jovens saibam o que é construir uma cidade sensível ao tema da água. É necessário que os engenheiros conheçam a natureza e suas dinâmicas, o que não está nos currículos. É necessário conhecer o clima e saber que todos estamos sendo prejudicados por um modelo insustentável que é, como todos sabem, o modelo poluente e destruidor da natureza e das fontes, o que está nos levando a esse momento climático dramático que implica na perda das águas.”

“A privatização dos meios de comunicação nos levou a termos três ou quatro operadoras que disputam (o mercado). Imagine o que será a disputa de empresas de saneamento. As cidades inteiras perfuradas por canos. E os que não dão lucro, sem água”, concluiu.

Edição: RBA