Sul e Sudeste paraenses vivem período de maior violência agrária das últimas décadas

Especialistas afirmam que governo de Michel Temer incentiva latifundiários e estimula conflitos violentos

Por Júlia Dolce | Brasil de Fato | Marabá (PA), 24 de novembro de 2017

Há 25 anos lutando pela reforma agrária, Izabel Rodrigues Lopes Filho, dirigente estadual do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), acredita que, mesmo tendo perdido muitos companheiros no passado, assassinados por representantes do agronegócio, o atual período é o pior para os movimentos do campo.

“O momento mais marcante foi Eldorado dos Carajás, mas, em termos de dificuldades na luta pela terra e pela reforma agrária, agora está pior, com o governo Temer retirando o orçamento do Incra [Instituto Nacional da Colonização e Reforma Agrária], desmanchando o Ministério do Desenvolvimento Agrário [MDA] e a Ouvidoria Agrária Nacional, além de não estar disposto a criar assentamentos”, opinou.

A denúncia, compartilhada por especialistas e representantes da luta pela reforma agrária no país, é baseada em estatísticas alarmantes. Uma delas é o aumento em seis vezes no número de mortes em decorrência de conflitos agrários no Brasil, em 2016, em comparação com o ano anterior. E, neste ano, dos 64 assassinatos de camponeses ocorridos em todo o país, 20 foram no Pará, sendo 18 no Sul e no Sudeste do estado.

O Pará também lidera outro ranking. Entre 1985 e 2017, ocorreram 46 massacres de trabalhadores rurais no Brasil, sendo 26 deles neste estado. Somente nas regiões Sul e Sudeste paraenses, foram 20 chacinas. Os dados são da Comissão Pastoral da Terra (CPT).

Segundo José Batista Afonso, advogado da comissão, a violência tem vitimado principalmente as lideranças da luta pela reforma agrária.

“É uma região dominada pelo latifúndio arcaico, mais violento, mais tradicional, que sempre usou a força bruta, as armas, para tentar garantir o controle das terras e das riquezas existentes aqui. Em nenhum outro estado do Brasil o latifúndio assassinou tantas lideranças nas últimas décadas como no Sul e no Sudeste do Pará. Isso, sem dúvida nenhuma, tem causado prejuízos incalculáveis, porque perder lideranças importantes deixa um efeito psicológico forte para as pessoas”, explicou.

O Massacre de Eldorado dos Carajás talvez seja o mais conhecido na luta pela reforma agrária. O caso ocorreu em 1996, quando 21 sem-terra foram assassinados pela Polícia Militar durante uma marcha contra a demora na desapropriação de terras.

Além deste crime, a região foi palco do assassinato de outros militantes do MST, como Onalício Araújo Barros e Valentim Serra, conhecidos como “Fusquinha” e “Doutor”, em 1998; dos sindicalistas Expedito Ribeiro de Sousa, em 1991, e João Canuto de Oliveira, em 1985, e de seus dois filhos José Canuto e Paulo Canuto, em 1990.

Outros crimes marcantes foram os assassinatos das lideranças religiosas Irmã Dorothy Stang, em 2005, e Irmã Adelaide Molinari, em 1983; e a chacina da Fazenda Ubá, quando oito trabalhadores rurais foram assassinados no município de São Domingos do Araguaia, em 1985.

Neste ano, o massacre de Pau D’Arco, que completa seis meses em 24 de novembro, foi o maior responsável pelo aumento nas estatísticas, tendo vitimado dez camponeses. Eles foram assassinados por policiais militares enquanto ocupavam a Fazenda Santa Lúcia, após uma reintegração de posse.

Para Andréia Silvério, também advogada da CPT, o caso no município de Pau D’Arco exemplifica não apenas o crescimento da violência na região, mas a intensificação de sua brutalidade.

“Sem dúvida nenhuma o número de conflitos registrados até o momento em 2017, e o nível de crueldade empregado em vários dos casos, como o de Pau d'Arco, deixa claro o recrudescimento da violência na região Sul e Sudeste do Pará e no estado como um todo”, afirmou.

Privatização e grilagem

O histórico dos conflitos agrários na Amazônia paraense pode ser explicado por muitos fatores ligados à distribuição e à posse da terra ao longo do século 20. De acordo com o historiador e professor da Universidade do Estado do Pará (Uepa), Airton dos Reis Pereira, os conflitos se acentuaram após a privatização intensificada de terras na região, durante a década de 1950.

Já a partir dos anos 1960, com a construção das rodovias Belém-Brasília (BR-010), BR 222 e a Transamazônica, somada ao subsídio de crédito para a aquisição de lotes, a corrida por terras na região cresceu ainda mais.

“Comerciantes, fazendeiros, empresários, trabalhadores rurais, garimpeiros, diversas pessoas vão vir para cá para tentar a vida.  Então, a terra aqui vai ser uma mina de ouro e de diamante para diversos empresários, que vem adquirir terra de forma muito barata”, explicou o especialista.

No entanto, Pereira destaca que o elemento fundamental para entender a disputa por terras no Pará é a falsificação de títulos de posse de terras públicas, por meio do processo popularmente conhecido como grilagem.

“Essa região nossa talvez seja uma das regiões com mais grilagem de terra.  Se o cara não tem título falsificado, não tem título nenhum. À medida que essa gente endinheirada passa a adquirir essas terras do Estado, até mesmo de forma fraudulenta, e não vai levar em consideração quem está nas terras, você vai ter conflitos”, disse.

De acordo com a CPT, o estado do Pará teria que possuir duas vezes seu tamanho real para comportar todas as alegadas “posses” registradas em cartório.

Por fim, o professor critica o papel dos órgãos públicos do Estado pela corrupção e pela ineficiência na resolução desses conflitos. Entre estes, ele cita o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e o regional Instituto de Terras do Pará (Iterpa).

“Você tem o papel de diversas instituições do Estado, não só a polícia vai servir essa elite que está chegando, mas você vai ter juízes que vão dar ação de reintegração de posse em áreas ocupadas há 20, 30 anos. Esses órgãos acabam ficando do lado desses grandes comerciantes, fazendeiros ou empresários. Esses grandes proprietários de terra vão acionar as diversas instituições a seu favor e, por outro lado, acionar suas milícias”, indicou.

A prática de contratação de pistoleiros por latifundiários é bastante comum no país, e torna ainda mais difícil a condenação dos proprietários de terras. De acordo com dados da CPT, a judicialização e condenação dos responsáveis por assassinatos de camponeses é rara. Ao longo de 32 anos (1985-2017), apenas 112 dos 1.387 assassinatos foram julgados, sendo que 92 executores foram condenados. No caso dos mandantes dos assassinatos – geralmente os fazendeiros proprietários das terras –, apenas 31 foram condenados.

Por esse motivo, a sem-terra Izabel Rodrigues acredita que a condenação dos pistoleiros não seja realmente eficiente. “Aqui na região, os pistoleiros e os que matam são punidos, porque são encontrados rapidamente. Passam alguns dias na cadeia e acabam sendo soltos. Agora, o real problema está nos mandantes, que aqui na região são os latifundiários, e ficam impunes”, afirmou.

Conjuntura

A importância da cumplicidade do Estado para a consolidação das violações de latifundiários contra camponeses exemplifica as opiniões que relacionam o golpe de Estado sofrido pela ex-presidenta Dilma Rousseff (PT) ao aumento da violência agrária no Pará.

Segundo o deputado estadual Carlos Bordalo (PT-PA), que tem visitado o Sul e o Sudeste paraenses para prestar apoio aos camponeses, o recente aparelhamento do Incra e do Iterpa tem contribuído para a incidência de conflitos na região.

“Ao longo deste ano, eles têm sido muito omissos em relação a muitas questões da terra. Antes do governo Temer, havia mais cuidado para se cumprir liminares de reintegração de posse. Então, o fortalecimento dessas forças conservadoras, violentas, que são baseadas na grilagem absurda que temos aqui, paralisou todos os processos de aquisição de áreas para assentamentos. É um cenário desolador para a política de reforma agrária no país”, opinou.

Procurados pela reportagem, os órgãos do poder público não se pronunciaram sobre as alegações.

O advogado da CPT José Batista concorda que o aumento da violência está relacionado à conjuntura política nacional. “É uma escalada de violência que não presenciávamos há muitos anos e, sem dúvida, nenhuma ação está ocorrendo em função dessa relação entre o latifúndio e o governo Temer. É a carta branca para os latifundiários resolverem o problema a seu modo”, avaliou.

Resistência

Diante de toda a violência que marca o Sul e o Sudeste do Pará, a resistência dos movimentos que lutam pela reforma agrária é marcada por uma série de ameaças. De acordo com José Batista, que atua há 15 anos na região, é comum a circulação de listas de pessoas “marcadas para morrer”, o que faz com que muitas lideranças políticas tenham que fugir do estado. Ele próprio conta que já sofreu uma série de ameaças.  

“Muitas lideranças importantes, que podem contribuir na luta, abandonam a região, porque não há política pública do Estado que dê o apoio e garanta a continuidade das pessoas aqui”, relatou.

Para Batista, no entanto, as conquistas que os camponeses tiveram na região ao longo das décadas servem de estímulo para a sua permanência. “Os camponeses conseguiram avançar na conquista de um território, em termos proporcionais, maior do que todas as regiões do país. Então, embora muito cruel e bruta, a violência do latifúndio não tem sido suficiente para barrar a luta histórica dos camponeses pela conquista e permanência na terra”, defendeu.

As conquistas também estimulam a dirigente estadual do MST Izabel Rodrigues. Ela afirma que, apesar de ter medo das ameaças, isso é superado pela organização do movimento. “Quando a gente está junto, o medo é substituído pela coragem dos lutadores. A gente tem encontrado muitas dificuldades, mas isso a gente supera quando desapropria uma terra, quando cria um assentamento, quando vê mais de mil estudantes sem-terra na universidade, quando vê uma criança que nasce no acampamento, vai para a escola e se torna consciente da luta de classes”, concluiu.

No total, aproximadamente um quinto da população das regiões Sul e Sudeste do Pará vive em assentamentos ou ocupações, segundo dados do MST e do Incra.


Na próxima reportagem, saiba como estão os familiares das vítimas e a região de Pau D'Arco seis meses após o massacre.