ELEIÇÕES

Artigo | Chile em seu Labirinto

A incógnita do segundo turno das eleições chilenas

São Paulo |
- Reprodução

Chile, o que esperar do segundo turno?

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A Frente Ampla (FA) foi a grande novidade das eleições chilenas deste ano. Não fosse a distorção das sondagens eleitorais, Beatriz Sánchez provavelmente estivesse no segundo turno, representando a nova esquerda na disputa que decidirá em duas semanas quem governará o país nos próximos quatro anos. Mesmo fora da disputa direta, que será travada entre a centro-direita, de Sebastián Piñera, e a centro-esquerda, de Alejandro Guillier, a FA conquistou um lugar decisivo no quadro político-eleitoral chileno, que se manteve basicamente inalterado nos últimos 25 anos. Para surpresa de muitos, a jovem coligação da nova esquerda, criada em janeiro de 2017, foi alçada à condição de terceira força política do país. 

 

Resultado conservador 

O desempenho da FA contrasta com os resultados conservadores do primeiro turno, que em linhas gerais consistiram na reprodução do esquema tradicional da política chilena do período pós-autoritário. Em 2010, Michelle Bachelet entregou a faixa presidencial a Sebastián Piñera, encerrando um ciclo de vinte anos de predomínio da Concertación Por la Democracia – coligação de centro-esquerda que governou o país de 1990 a 2010. Em 2014, foi a vez de Piñera devolver a faixa presidencial para Bachelet, que retornou ao La Moneda com um programa reformista e uma frente de centro-esquerda revigorada pela presença do Partido Comunista (PCCh). 

Não está descartada a possibilidade de a centro-direita triunfar novamente e voltar a governar o país por mais quatro anos (2018 – 2022). Piñera chegou à frente no primeiro turno, com 36,6% dos votos válidos, e tem a seu favor os ventos conservadores que sopram na região. Neste caso, como fez anteriormente, Bachelet passaria pela segunda vez a faixa presidencial ao direitista Sebastián Piñera. Triste sina para uma socialista de velha cepa, primeira mulher a governar o país (2006 – 2010), que termina o segundo mandado (2014 – 2018) com a desaprovação de 64% dos chilenos, a despeito dos avanços em matéria de direitos humanos e desenvolvimento social de seu governo.  Os chilenos estão cansados dessa corrida de revezamento, que até agora produziu poucos efeitos em termos de mudanças efetivas do quadro de desigualdade que caracteriza a estrutura social do país.

Tampouco se pode afastar a eventual consagração de Alejandro Guillier, o candidato apresentado pelo Partido Radical, agremiação da Nueva Mayoría, coligação herdeira da Concertación. Somados, os votos da centro-esquerda no primeiro turno superaram os da centro-direita, o que não deixa de ser um resultado alvissareiro. Mas eleições nada têm a ver com aritmética. Antes de chegar ao Senado, o jornalista Guillier ficou conhecido dos chilenos por sua participação nos telejornais da Chilevisión, rede de televisão da família Piñera, e ainda não disse a que veio. Além disso, é a primeira vez que o candidato da centro-esquerda não vem das fileiras da Democracia Cristã, nem do Partido Socialista, as duas maiores agremiações da Nueva Mayoría. Nestas eleições, a DC lançou a senadora Carolina Goic, e obteve parcos 5,8% dos votos; o PS, por sua vez, renegou o seu líder histórico, o ex-presidente Ricardo Lagos (2002 – 2006), para apoiar o candidato do oficialismo. 

Ambos representam a reiteração do consenso neoliberal que governa os chilenos desde a redemocratização. Isto não significa dizer que não existem diferenças entre os dois. Essas discrepâncias não são apenas significativas – conforme se evidenciou na resistência dos partidos de direita às reformas propostas por Bachelet – como deverão se aprofundar mais claramente na reta final do segundo turno. O fato é que, neste momento, o destino dos chilenos é incerto, e qualquer previsão seria temerária. Por um lado, a presumida vitória de Piñera se revelou uma ilusão criada pelos institutos de pesquisa, que foram os grandes derrotados do pleito nacional. Todos eles perderam credibilidade, e não há razão para confiar nas sondagens para o segundo turno. Por outro, a equação para a recondução da Nueva Mayoría ao poder ficou mais complexa, e passará necessariamente por uma delicada aproximação com a Frente Ampla. 

 

Uma esquerda dividida

Ao contrário do que acontece no Brasil ou na Argentina, países em que a luta de classes evoluiu para a polarização política e ideológica entre defensores e opositores do neoliberalismo, no Chile seria impróprio falar de uma disputa de projetos nacionais antagônicos. Desde a transição para a democracia, o peculiar progressismo chileno se pautou pela mitigação das políticas neoliberais – ao invés de lutar pela sua superação. Dos países latino-americanos, o Chile foi aquele que mais se aproximou do denominado social-liberalismo, configurando um esquema singular daquilo que chamei de “progressismo resignado”, isto é, de uma esquerda que abdicou das bandeiras históricas da integração latino-americana, da democracia participativa e das reformas estruturais, para se acomodar aos marcos institucionais do neoliberalismo da Constituição de 1980.  

Isto sempre foi motivo de acirradas polêmica entre as esquerdas chilenas. Há muito tempo o Partido Socialista se dividiu entre duas correntes divergentes: a dos “autocomplacentes”, que consideram que apesar da persistência dos enclaves autoritários o Chile avançou em matéria de direitos humanos e democracia; e a dos “autoflagelados”, para os quais, apesar dos avanços conquistados desde a redemocratização, o país permanece refém do neoliberalismo e das injustiças sociais que lhe são inerentes. O debate estéril entre ambas as correntes neutralizou a possibilidade de renovação do PS nos últimos 25 anos. 

A esquerda não concertacionista, por sua vez, não logrou até agora constituir um polo alternativo com fôlego para propor mudanças do modelo herdado da ditadura, com capacidade de galvanizar amplos setores sociais e sustentar politicamente um programa de mudanças estruturais. Os movimentos sociais, os partidos da esquerda extraparlamentar e as associações e coletivos militantes de estudantes, jovens, feministas, ecologistas, humanistas, anarquistas, libertários, artistas e intelectuais que floresceram no transcurso do período pós-autoritário não lograram constituir uma alternativa de esquerda, a despeito do seu peso sociocultural, especialmente nas grandes cidades como Santiago, Valparaiso e Concepción. O advento da Frente Ampla e o seu ingresso na cena política é um sinal de mudança desse quadro geral da esquerda chilena. 

 

Segundo turno 

Diante desse quadro, o que podemos esperar para o segundo turno? 

Em primeiro lugar, é certo que deverá haver uma inflexão dos dois candidatos nas semanas que antecedem o segundo turno. Ambos precisam consolidar os votos do centro político e social, sem os quais não se alcança a maioria chilena. Mas, ao contrário do que fez Michelle Bachelet há quatro anos, nenhum dos dois está em condições de apresentar um programa de reformas sem soar hipócrita à sociedade.  O que deverá predominar nas próximas semanas, portanto, são promessas de gestão e continuidade do modelo dominante. Para os padrões chilenos, isto significa apostar na manutenção de uma ordem que alcançou elevados patamares de crescimento econômico acompanhado de impressionantes níveis de desigualdade social. 

Consolidado o apoio do centro político, os representantes da centro-direita e da centro-esquerda seguirão caminhos opostos. Para conquistar os votos da extrema-direita, Piñera terá que assumir posições contrárias a descriminalização do aborto, ao casamento gay, a demarcação dos territórios indígenas e outras leis progressistas aprovadas por iniciativa do governo Bachelet. Por sua vez, para conquistar os votos da Frente Ampla, Alejandro Guillier terá que fazer concessões programáticas aos movimentos sociais e à bancada parlamentar eleita pela FA. Não será uma tarefa fácil para nenhum deles. 

Durante o primeiro mandato (2010 – 2014), Piñera se apresentou como membro de uma direita renovada que prometia levar para a política a visão de mundo dos negócios, substituindo as precárias decisões por maioria – que são próprias da democracia – pela lógica inflexível (e pretensamente infalível) dos comandos tecnocráticos. Seu gabinete, composto por jovens recrutados entre executivos de empresas multinacionais e estudantes egressos das universidades americanas, foi uma versão moderna dos Chicago Boys. Ele se dirigia aos chilenos como consumidores, e não como cidadãos. Por trás do artificio ideológico estava implícita a ideia de conferir ao Estado o mesmo pretenso padrão de eficiência das empresas privadas. Os serviços públicos passariam a ser entregues com eficácia e qualidade.... para quem pudesse pagá-los, é claro. 

Na atual eleição, Piñera chegou ao segundo turno repetindo a fórmula exitosa de quatro anos atrás, e se apresentou como representante de uma direita civilizada, responsável e preparada para governar o país. Em essência, todos sabem que se trata de um bilionário direitista, cuja fortuna espelha a modalidade do capitalismo financeiro e rentista instituída pelo neoliberalismo no pais. No entanto, Piñera está preso ao discurso pretensamente modernizante que o tornou palatável ao centro democrático, e que tem resistência aos discursos fascistas. Não será simples para ele se aproximar dos eleitores da extrema direita que votaram em José Antonio Rist, sem colocar em risco o apoio do centro. E os setores que ele precisa conquistar são absolutamente reacionários, representantes do gremialismo chileno, movimento de corte fascista criado por Jayme Guzmán, um dos autores da Constituição de 1980 e fundador da União Democrática Independente (UDI).       

 

A Frente Ampla 

Do lado de Guillier, que depende dos votos da Frente Ampla para se eleger, as contradições não são menores. Para alguns agrupamentos da FA, Guillier constitui uma alternativa difícil de engolir, não só em razão do seu perfil de candidato outsider, como também, e principalmente, pelo passivo dos governos da Concertación/Nueva Mayoría, considerados por eles responsáveis pelo aprisionamento do país na jaula de aço do neoliberalismo. A dificuldade maior reside na heterogeneidade dos partidos, movimentos sociais e coletivos que compõe a Frente: Esquerda Autônoma, Esquerda Libertária, Movimento Autonomista, Nova Democracia, Partido Ecologista Verde, Partido Humanista, Partido Igualdade, Partido Liberal, Poder Cidadão, Revolução Democrática, Partido Pirata do Chile, Movimento Democrático Progressista, Movimento Socialismo e Liberdade, Movimento Democrático Popular, Movimento Democrático Progressista são os mais expressivos.

Em realidade, não seria uma Frente se não fosse heterogenia... Mas, neste caso, o nível de discrepância entre correntes que vão do anarquismo libertário ao liberalismo político é tão elevado, que fica muito difícil a construção de posições unitárias. O denominador comum entre eles é a presença de lideranças e ex-dirigentes estudantis que emergiram dos enfretamentos de rua em 2006 e 2011. Revolução Democrática é o mais consolidado dos partidos que surgiram desse processo recente. Além de Juan Ignácio Latorre, eleito senador pela Região de Valparaiso, a FA conquistou vinte cadeiras na Câmara dos Deputados, sendo 8 de Revolução Democrática, 3 do Movimento Autonomista, 3 do Partido Humanista, 2 do Partido Liberal, 1 de Esquerda Libertária, 1 de Poder, 1 de Esquerda Autônoma e 1 de Partido Ecologista Verde. Capitaneados por Camila Vallejo, um grupo de 300 líderes e ex-dirigentes estudantis divulgou um comunicado há três dias afirmando que “o candidato de Chile Vamos (Piñera) representa um retrocesso no caminho de garantir o direito à educação e o fim do endividamento”.  Este pode ser o caminho... 

Outra dificuldade a ser enfrentada pela centro-esquerda é a baixa participação nas eleições, o que favorece a Piñera. A tendência de não comparecimento é maior entre os eleitores cujos candidatos foram eliminados no primeiro turno. Criar uma onda de participação é vital para derrotar o candidato da centro-direita. Mas isso dificilmente acontecerá sem o engajamento pessoal de Beatriz Sanchez e da bancada de parlamentes da FA recém-eleita nestas eleições. Estará a Nueva Mayoría disposta a incorporá-los de alguma forma ao comando da campanha na reta final do segundo turno? Estarão os militantes de FA dispostos a aceitar uma aproximação com a Nueva Mayoría, o que poderia representar, para mal dos pecados, o fim desse recente experimento de renovação das esquerdas chilenas?  Tudo isto ainda é uma incógnita.  

 

Comentário final 

O que está claro há bastante tempo é que o principal desafio chileno reside na constituição de um polo de esquerda comprometido com um ambicioso programa de reformas, capaz de fazer as mudanças estruturais e desbloquear o caminho para uma sociedade menos injusta e desigual. O surgimento da FA pode significar uma esperança de renovação das esquerdas chilenas. Nessas eleições ela alcançou o mesmo patamar de votos que em 2010 foi atribuído a Marco Enriquez-Ominami, filho do lendário Miguel Enríquez. 

Posteriormente, este patamar não foi sustentado por MEO, que saiu do PS para criar o Partido Progressista (PRO), não tendo prosperado este primeiro intento de criação de uma alternativa de esquerda à Concertación. Pode-se supor que a FA galvanizou o mesmo sentimento de oposição ao modelo que já existia àquela época, e que se mantém em torno de 20% dos chilenos. A diferença é que agora, ao contrário do que aconteceu com o PRO, a FA formou uma extraordinária bancada de jovens parlamentares, revelando-se muito mais consistente e socialmente enraizada nos movimentos populares do que aquele primeiro intento. 

Seja como for, na oposição a Sebastián Piñera, ou no apoio crítico a Alejandro Guiller, os próximos quatro anos serão decisivos para a evolução desse muito bem-vindo processo de renovação das esquerdas chilenas capitaneado pela Frente Ampla. 

 

Renato Martins é professor adjunto de Ciência Política e Sociologia da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA) e presidente do Fórum Universitário Mercosul (FoMerco).      

Edição: Brasil de Fato