Coluna

O fim do imposto sindical foi uma derrota dos trabalhadores?

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Se um governo reacionário como esse tomou tal iniciativa ela só pode ser prejudicial aos trabalhadores.
Se um governo reacionário como esse tomou tal iniciativa ela só pode ser prejudicial aos trabalhadores. - Reprodução
Extinção do imposto pode abrir brecha no controle do Estado sobre sindicatos

Esse é um tema complexo e nós acreditamos que requer ainda muita análise no movimento sindical e popular. Um governo golpista, reacionário nas áreas econômica, social, cultural e de política externa, aprovou uma reforma trabalhista que só faz retirar direitos dos trabalhadores e, dentro dessa reforma, incluiu o fim da contribuição sindical obrigatória – essa deixou de ser paga, obrigatoriamente, por todos os trabalhadores, sindicalizados ou não; agora, só é descontada do trabalhador que autorizar tal desconto.

I

A primeira reação que se pode ter diante desse fato é a seguinte: se um governo reacionário como esse tomou tal iniciativa ela só pode ser prejudicial aos trabalhadores. Ocorre que a luta política é mais complicada. É importante lembrar aqui uma orientação geral. O sindicalismo e a esquerda não podem se guiar pela ideia simplista de que o correto é fazer o contrário exato do que faz o inimigo, pois se esse estiver assumindo uma posição equivocada do ponto de vista de seus próprios interesses – e é bom lembrar que a direita também erra – o sindicalismo será levado, ao defender a posição contrária, a, de fato, defender aquilo que interessa ao inimigo e não ao sindicalismo.

Acrescente-se que no caso da extinção do imposto sindical, o quadro é de tal complexidade que inviabiliza a prática simplista de fazer o contrário exato do que a direita faz. Vejamos. No campo das forças populares e democráticas, cabe lembrar que a CUT, quando foi criada e também ao longo de boa parte de sua existência, posicionou-se contra o imposto sindical. Recentemente, sob o governo Dilma Rousseff, a CUT organizou uma campanha nacional pelo fim do imposto sindical. Ademais, os sindicatos cutistas mais combativos e que prezam minimamente a independência organizativa dos trabalhadores adotaram há muito tempo a prática de devolver o dinheiro do imposto ao trabalhador que solicitar tal devolução. No campo sindical, de uma maneira geral e também à época da reforma trabalhista, quem foi contra a extinção do imposto sindical de modo explícito, público e ativo foram, principalmente, as centrais sindicais mais conservadoras ou pelegas, como a Força Sindical e a União Geral dos Trabalhadores (UGT), e também os sindicatos pelegos e de carimbo. Já no campo burguês, cabe lembrar que a Confederação Nacional da Indústria (CNI), a Confederação Nacional da Agricultura (CNA) e muitos sindicatos patronais posicionaram-se contra a extinção do imposto sindical. Afinal, os sindicatos patronais também arrecadavam o imposto – nesse caso sobre o capital social das empresas de sua base – e também tinham nessa arrecadação uma importante fonte de receita. Muitos, num segundo momento, passaram a defender o fim do imposto, como foi o caso da Fiesp, mas tal se deu porque os sindicatos patronais da indústria têm como principal fonte de arrecadação hoje o Sistema S, que também é sustentado por um imposto. A conclusão geral é a seguinte: qualquer que seja a posição que assumamos nessa matéria, iremos constatar que teremos ao nosso lado tanto boas quanto más companhias.

II

Em debate realizado em São Paulo e transmitido online no Face book do Brasil de Fato, argumentou-se que em muitos países do mundo o movimento sindical tem acesso a receita assegurada em lei. O que se queria afirmar com isso é que o imposto sindical brasileiro é apenas um dos muitos casos existentes em muitos outros países. O imposto sindical, mesmo que sob outras formas, seria a regra em todo o mundo, diferentemente do que imaginariam, provincianamente, sindicalistas e analistas brasileiros que pensam se encontrar diante de algo muito particular. Esse argumento não procede. O imposto sindical sim é um caso especial, ainda que não seja exclusivo do Brasil. Esse imposto, como parte integrante embora não essencial da estrutura sindical brasileira, contribui para atrelar os sindicatos ao Estado.

É certo que todo direito acarreta algum tipo de limitação. Exemplificando. O direito de greve é importante para os trabalhadores porque ele impede o empregador de contratar trabalhadores para substituírem os grevistas. É acima de tudo isso que o direito de greve significa: proibição de contratar fura-greves.  Justamente por isso, o movimento operário sempre lutou pelo direito de greve. Contudo, como todo direito burguês, ele impõe limites: todo direito está limitado por outros direitos. Portanto, estabelecido o direito de greve, está aberta a possibilidade de o Estado, por intermédio do Judiciário, intervir na luta sindical, avaliando o eventual caráter abusivo desta ou daquela greve. Seria, contudo, improcedente afirmar, baseados nesse fato geral, que são a mesma coisa um ordenamento jurídico que assegura o direito de greve sem regulamentação e outro que impõe toda sorte de condicionantes e de procedimentos para a realização da greve – há regulamentações do direito de greve que estabelecem tutela ativa do Estado sobre o movimento grevista desde a sua deflagração até o seu término. Voltando às receitas dos sindicatos. De maneira semelhante com o que ocorre com o direito de greve, é um erro equiparar uma lei que, como ocorre em muitos países, obriga a empresa a descontar contribuição do funcionário associado ao sindicato, mediante prévia manifestação desse, e repassá-la à sua entidade representativa, entidade essa erigida em um regime de liberdade de organização sindical, é um erro, dizíamos, equiparar essa lei, pelo fato de ela ser uma norma do Estado que garante fonte de receita ao sindicato, com a lei brasileira que a) impõe a todos os trabalhadores, associados ou não ao sindicato, uma contribuição obrigatória, b) determina quais os usos permitidos da arrecadação daí proveniente e, acima de tudo, c) reserva ao próprio Estado a capacidade de dizer qual associação, que ele próprio designou como único sindicato representativo dos trabalhadores desta ou daquela empresa, irá receber – e quanto irá receber – da receita proveniente de tal contribuição. É preciso portanto analisar os diferentes casos com suficiente profundidade. O imposto sindical tem essa particularidade: ele é peça integrante de uma engrenagem – a estrutura sindical corporativa de Estado – que é um sistema de tutela do Estado sobre o sindicalismo.

III

Uma argumentação mais refletida, e que tem dominado esse debate, consiste em argumentar que o fim do imposto reduz as finanças dos sindicatos e, portanto, reduz sua capacidade de organização e de luta. E esse deve ser justamente o cálculo que fizeram os partidos conservadores no Congresso Nacional e as associações patronais que, algumas tardiamente, acabaram aderindo à proposta de extinção do imposto sindical, tornando-o uma contribuição incidente apenas sobre o trabalhador que autorizá-la. Fizeram o cálculo correto?

Primeiramente, é preciso romper a relação mecânica entre finanças sindicais e organização e luta sindical. Alguns dos sindicatos mais ricos, porque têm uma base muito extensa pagando o imposto sindical, são sindicatos que pouco ou nada organizam e lutam e muitos deles são pelegos. Exemplo disso é a maioria dos sindicatos dos comerciários – em São Paulo, esse sindicato tem na sua base cerca de 700.000 trabalhadores, todos, até o ano em curso, tinham um trinta avos de seus salários descontados obrigatoriamente para pagar o imposto sindical. A grande maioria dos sindicatos brasileiros constrói e possui sedes enormes e até suntuosas, adquire equipamentos que pouco têm a ver com a organização e a luta sindical, são sindicatos ricos no patrimônio, mas pobres na ação sindical.

E isso é assim, não só, mas também, porque o uso do dinheiro proveniente do imposto sindical está disciplinado pelo Estado. Se é o Estado que garante a arrecadação por intermédio de um imposto, ele pode se dotar de autoridade legítima para disciplinar o uso do dinheiro arrecadado. E o sindicalismo brasileiro aceita tal legitimidade. Exemplo: o Estado proíbe o uso das finanças do sindicato para financiar campanhas eleitorais e partidos políticos e para financiar movimentos populares alheios à categoria do sindicato. É verdade que os sindicalistas progressistas procuram – parcimoniosamente, diga-se de passagem – contornar tal interdição, mas o fazem por baixo do pano, aceitando na prática, portanto, a legitimidade da autoridade do Estado sobre as finanças sindicais. Se não mantiverem as aparências, mesmo que o governo não intervenha ou o Ministério Público não denuncie, um grupo de oposição à diretoria progressista poderá entrar na justiça contra o uso livre e democrático das finanças sindicais e ensejar uma intervenção na entidade sindical. A grande maioria das intervenções do Estado na vida sindical após a Constituição de 1988, que têm sido muito numerosas, tem obedecido esse padrão.

IV

Mas, é de fato verdade que a extinção do imposto sindical reduzirá, ao menos inicialmente, as finanças sindicais e, assim, poderá incidir negativamente – no caso, e somente no caso, de o sindicato ser combativo – na luta reivindicativa dos trabalhadores. Isso justifica que defendamos tal imposto? Penso que não. A pergunta que precisa ser feita aqui é a seguinte: quem será mais afetado? quais poderão ser as consequências? Os mais afetados serão os sindicatos pequenos e também os sindicatos com base social extensa, porém com número muito reduzido de associados. Pensamos o seguinte: isso não será ruim para o movimento sindical.

Desde a Constituição de 1988, surgiu no Brasil uma verdadeira indústria da criação de sindicatos. Como a estrutura sindical brasileira está baseada na unicidade sindical, que concede o monopólio legal da representação sindical ao sindicato designado pelo Estado para representar uma determinada categoria numa determinada base territorial, e como oferecia o dinheiro do imposto sindical, qualquer grupo, sem representatividade sindical ou política e mesmo dotado da mera intenção de criar uma sinecura para enriquecimento próprio, qualquer grupo pode criar, facilmente, um sindicato. Isso porque terá a representatividade e as finanças asseguradas, independentemente da adesão dos trabalhadores. Antes da Constituição de 1988, para se criar um sindicato, era preciso percorrer um caminho complicado para obter autorização, funcionar experimentalmente por três anos e, só depois, e eventualmente, obter a carta sindical. Após a Constituição atual, que liberalizou o sistema sem contudo implantar a liberdade sindical, é possível criar sindicatos sem autorização prévia do Estado e a indústria da criação de sindicatos proliferou. Hoje, o Brasil possui cerca de 12.000 mil sindicatos de trabalhadores. Essa é uma quantidade dez, vinte ou até trinta vezes maior que a quantidade de sindicatos existentes em países europeus e latino-americanos. Ou seja, a unicidade sindical e o imposto pulverizaram o sindicalismo brasileiro. Muitos temem o direito ao irrestrito pluralismo sindical, mas onde existe esse direito os trabalhadores estão organizados em um número reduzido de sindicatos grandes e fortes. No Brasil da unicidade sindical, os trabalhadores estão organizados (?) num número cada vez maior de sindicatos cada vez menores, pequenos e fracos. A indústria da criação de sindicatos que floresceu após a Constituição de 1988 procedeu por divisão: dividiu a base de sindicatos já existentes por território ou por categoria; transformou sindicato grande em sindicatos médios e sindicato médio em sindicatos pequenos. Não agregou em matéria de organização. Pulverizou e enfraqueceu o movimento sindical brasileiro.

São esses sindicatos pequenos e artificialmente criados que serão os mais penalizados pelo fim do imposto sindical. A maioria deles está sob controle quase inexpugnável de pelegos – formaram-se colégios eleitorais com regras as mais esdrúxulas que tornaram as eleições nesses sindicatos uma farsa. É bom que que tais sindicatos pereçam e que suas bases retornem aos sindicato de origem. Ademais, o fim do imposto pode representar uma pequena brecha num sistema montado todo ele para que o Estado tutele e controle o movimento sindical. Se os sindicalistas progressistas e socialistas não seguirem a prática atual dos pelegos que consiste na proposta conservadora de tentar restaurar o imposto, na forma antiga ou sob formas novas, e investirem na massificação do sindicalismo, forem às bases, lutarem para elevar a taxa baixíssima de sindicalização que o Brasil apresenta, se isso ocorrer, esse será mais um motivo para nos perguntarmos se o governo Temer e os partidos de direita acertaram, de fato, ao extinguirem o imposto sindical.

Edição: Simone Freire