Reparação

Comissão de Anistia do Ceará concede indenização à vítima da ditadura militar

Em 1965, Raimundo Nonato Santos Freire teve sua casa invadida e devassada por policiais à paisana

Brasil de Fato | Aracati (CE) |

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Santos Freire durante depoimento à Comissão de Anistia do Ceará
Santos Freire durante depoimento à Comissão de Anistia do Ceará - Zema Ribeiro

Após 52 anos de ter tido sua casa invadida e devassada por dois policiais à paisana, Raimundo Nonato dos Santos Freire teve concedida indenização, deliberada pela Comissão Especial de Anistia Doutora Wanda Sidou. A sessão especial da comissão aconteceu na Câmara Municipal de Aracati, Ceará, no início de dezembro.

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Corria o ano de 1965. Santos Freire era funcionário da Alaor Livraria e Distribuidora. Em sua casa, os policiais procuravam livros subversivos, “comunistas”. O nome de Alaor Albuquerque, então seu patrão, consta em documentos dos órgãos de repressão da ditadura como filiado ao PCB.

“Num domingo, dois policiais invadiram a minha casa. A casa era cheia de livros, uma estante muito grande. Todo tipo de livro. Os caras entraram mudos e saíram calados e foram botando os livros no chão. Eles procuravam material subversivo, material comunista. Aí partiram para os quartos, só tinha uma cama. Eles esfaquearam a cama, pra ver se tinha [algum livro escondido no colchão], não tinha nada. Depois chegaram no quintal. No quintal eu tinha enterrado vários livros comunistas, eu tinha enterrado. Mas o cabra não sabia não. Os caras não encontraram nada. Dois dias depois eu desenterrei os livros e queimei. Naquela época tinha que queimar. Eu fiz vários requerimentos, um para o quarto exército em Recife, não deram resposta nenhuma. O tempo foi passando e criaram a Lei da Anistia. Eu não fui torturado nem preso. Eu fiz o requerimento para a Anistia, pra ver se eu tinha alguma coisa para receber e disseram que não, por que eu não fui nem torturado nem preso”, relembra Santos Freire.

Criada pela Lei 13.202, de 10 de janeiro de 2002, a Comissão Especial de Anistia do Ceará Wanda Sidou tem a incumbência de receber e avaliar a procedência dos pedidos de indenização das pessoas detidas sob acusação de terem participado de atividades políticas entre 1961 e1979, que hajam ficado sob a guarda e responsabilidade de órgãos da estrutura administrativa do Estado do Ceará ou em quaisquer dependências desses órgãos e que sofreram sevícias que deixaram comprometimentos físicos e psicológicos, fixando o seu valor, de acordo com os critérios estabelecidos na referida Lei.

A Comissão é formada por 11 membros efetivos e seus respectivos suplentes, sendo seis de órgãos públicos e cinco da sociedade civil, nomeados pelo governador do estado através de portaria. Não recebem qualquer tipo de remuneração. Atualmente é presidida pelo ex-preso político Mário Miranda de Albuquerque, que comandou os trabalhos da sessão que apreciou o processo de Raimundo Nonato.

Antes dos trabalhos, o advogado Egídio Barreto, presidente da subseção Aracati da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB/CE) lembrou seu encontro mais recente com o professor: “Eu o encontrei sem camisa, na luz do sol, lendo “A normalista”, de Adolfo Caminha. Emoção enorme, reencontrá-lo, depois de muitos anos, e ele estar lendo um livro do escritor aracatiense Adolfo Caminha”, frisou.

Santos Freire revelou ter lido “O bom crioulo”, também de Adolfo Caminha, “um romance ousado para a época”, concordaram ambos. Apaixonado por livros, se formou em Letras pela Universidade Estadual do Ceará (UECE) e abriu um cursinho preparatório ao exame de admissão ao ginásio [equivalente, hoje, às séries mais altas do ensino fundamental].

“A casa era pequena, era tamborete [onde os alunos se sentavam]. Como os alunos eram muito pobres, vamos supor que eu cobrava naquela época [o equivalente a] 50 reais, vinham alunos de todo lugar, meu nome já estava nas rádios, Rádio Dragão do Mar, Rádio PR9 e outras rádios. Eu estava na crista da onda. Quem fazia minha propaganda era o próprio aluno”, conta Santos Freire.

Os horrores típicos de casos emblemáticos do regime militar brasileiro não comparecem a este episódio, no qual não consta tortura física, desaparecimento ou morte. “O entendimento da Lei da Anistia vem se ampliando cada vez mais. À medida em que vamos tendo acesso aos requerimentos, a gente vai vendo que a ditadura, o espectro da perseguição é amplo, generalizado. Qualquer pessoa naquela época que tivesse livros que não fossem didáticos já era suspeita, tanto que uma marca daquela época é a queima de livros, a apreensão, o enterramento de livros. O caso do seu Raimundo se enquadra no que na época chamávamos de terror cultural. A cultura sempre foi um elemento alvo das ditaduras, impedir que as pessoas lessem para pensar”, pontua Mário Albuquerque.

Ex-preso político,  Albuquerque destaca o protagonismo do Ceará quanto à reparação de direitos violados durante a ditadura militar, reconhecendo fragilidades ainda existentes nestes processos.

“O Estado do Ceará é conhecido nacionalmente como um dos mais avançados nisto. Inclusive fomos nós quem inauguramos este pedido de desculpas, não consta da Lei, é uma interpretação que nós fazemos, emitimos um certificado, fazemos julgamento público, o que é uma característica do Ceará. Não é todo estado que faz isso e nem todos os estados têm leis de anistia, são poucos estados. Apesar disso nós temos avançado, mas é preciso avançar mais. A questão não é só julgar, é pagar, às vezes demora-se muito para pagar”, avalia.

Com dificuldades para andar e manter-se de pé, Santos Freire tem uma fala que oscila entre o tímido e o exaltado, sobretudo quando prestou seu depoimento à Comissão.Sobre a decisão da indenização, Santos Freire afirmou ter sido “boa”. “Custou um pouco, mas foi bom, uma vitória dessa aí...”. 

Atualmente morando em Jaguaruana/CE, aposentado há 10 anos, Santos Freire trabalhou no Banco do Estado do Ceará (BEC), foi comerciário, atuou na 25ª. Circunscrição do Serviço Militar (CSM) e deu aula em 10 colégios em Fortaleza. Em 9 de dezembro, dia seguinte à sessão, ele completou 74 anos.

Edição: Daniela Stefano