“República de Curitiba”

Mais de 70 protestos tomaram as ruas de Curitiba em 2017

Pautas identitárias e por direitos trabalhistas estão entre os principais motivos das manifestações, aponta pesquisa

Brasil de Fato | Curitiba (PR) |
A luta por direitos ganha novas proporções, inclusive enfrentando expedientes de violência e repressão
A luta por direitos ganha novas proporções, inclusive enfrentando expedientes de violência e repressão - Giorgia Prates

Ao contrário dos que sustentam a ideia do pensamento único na chamada “República de Curitiba”, em 2017 a capital paranaense e sua Região Metropolitana foram palco de 73 manifestações catalogadas. Entre elas estão as que tiveram maior repercussão na mídia, que revelam conflitos e visões diferenciadas, como pode ser visto em uma breve análise feita pelo Observatório de Conflitos Urbanos de Curitiba. O grupo existe desde 2012 e envolve professores e estudantes da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR) e da Universidade Federal do Paraná (UFPR).

Por exemplo, em julho de 2017, Curitiba viveu um “inverno quente” em protestos contra a reforma trabalhista, com a ocupação da sede do Ministério do Trabalho e Emprego no Centro da capital, após diversas manifestações de entidades e movimentos sociais contra o projeto, aprovado no Senado em 11 de julho e que “flexibilizou” a relação entre trabalhador e patrão, retirando conquistas trabalhistas históricas.

Na mesma semana, foi anunciada a condenação do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva em primeira instância pelo juiz Sérgio Moro e ocorreram protestos contra e a favor de Lula. Se, para alguns, Curitiba é a cidade-sede da força-tarefa da Lava Jato no combate à corrupção, para outros, tornou-se símbolo das arbitrariedades e violações de direitos fundamentais por parte do Judiciário.

Embate já observado em maio de 2017, quando o depoimento de Lula a Moro alterou o cotidiano da cidade. Foi montado forte esquema de segurança pela polícia, que limitava a circulação das pessoas e os atos de protesto programados. Mesmo assim houve grande mobilização, com cerca de 5 mil pessoas participando de atos em apoio ao ex-presidente, com apoiadores locais e pessoas vindas de todo o Brasil. Houve também manifestações contra Lula, causando certa tensão na cidade.

Ainda em relação aos processos contra o ex-presidente, em agosto, Curitiba foi palco do Tribunal Popular da Lava Jato, articulação do grupo Advogados pela Democracia, que simulou um júri e deu veredito em que condenava “irregularidades e violações constitucionais cometidas pela operação Lava Jato”. A sentença, que tem valor simbólico, pretendeu fazer contraponto ao pensamento único dos que apoiavam o juiz Sérgio Moro.

O presidente golpista Michel Temer esteve no centro das críticas dos manifestantes (Foto: Leandro Taques)

Voltando à semana quente de julho de 2017, ela terminou com as manifestações durante o casamento da deputada estadual Maria Vitória (PP), filha da vice-governadora do Paraná, Cida Borghetti (PP), e do Ministro da Saúde do presidente Michel Temer, Ricardo Barros. Segundo notícias da imprensa local, o evento foi orçado em R$ 5 milhões e ocorreu no centro histórico de Curitiba. Mesmo com centenas de policiais militares convocados para fazer segurança em um evento particular, o trajeto entre a Igreja do Rosário e o Palácio Garibaldi foi marcado por uma chuva de ovos e sacos de lixos nos convidados. Houve repressão policial, com balas de borracha e bombas de gás contra os manifestantes.

O casamento de Maria Vitória coroou o final de uma semana de fervorosas manifestações, logo após a condenação do ex-presidente Lula em primeira instância e a aprovação da reforma trabalhista, com retirada de importantes direitos conquistados há 74 anos. Os protestos, com chuvas de ovos e lixo, foram uma explosão de insatisfação. As palavras de ordem "Viemos brindar a sua boa vida" e "chega de deboche, eu quero o meu brioche" lembraram as desigualdades sociais entre a nobreza e a plebe que antecedeu a Revolução Francesa.

O que levou Curitiba às ruas?

Traçando um panorama geral das mobilizações em Curitiba catalogadas pelo Observatório de Conflitos Urbanos de Curitiba em 2017, observa-se que 68% dos conflitos se concentraram em quatro categorias: Gênero, Raça, Etnia e Diversidade (23%); Trabalho e direitos trabalhistas (23%); Estado, Governo e Democracia (11%) e Transporte coletivo e mobilidade urbana (11%).

Na primeira categoria há uma série de protestos identitários, que lutam por mudanças culturais em favor dos direitos das chamadas minorias ou de grupos historicamente discriminados. Além das habituais marchas nacionais, como 18º Parada LGBTI de Curitiba, Marcha das Vadias, o 8 de março e a celebração do Dia da Consciência Negra, os protestos desta categoria voltam-se contra o preconceito, a homofobia, crimes contra mulheres e a intolerância religiosa.

A Marcha do Orgulho Crespo esteve entre as ações que marcaram o 20 de Novembro em Curitiba (Foto: Giorgia Prates) 

Vale destacar alguns desses protestos, como o do orgulho crespo; contra o projeto de lei da cura gay, contra a cultura do estupro, contra intolerância em relação às religiões de matriz africana e contra a proposta de emenda constitucional, a PEC181, que proíbe aborto mesmo em casos de estupro e anencefalia.

Numa análise preliminar, esses movimentos de protesto atingem na raiz padrões culturais pré-estabelecidos. Desejam criar novos significados, quebrar tabus, porque seus integrantes não se sentem incluídos nos modelos estabelecidos. O destaque a essas pautas parece, num primeiro momento, reação a uma possível cultura conservadora da sociedade e leva a pensar como determinados grupos têm reivindicado novos modos de pensar e agir a partir dos princípios da diversidade e do respeito à integridade do humano.

Na categoria relacionada a trabalho e direitos trabalhistas, foram retratados, no primeiro trimestre do ano, protestos dos professores contra o governador Beto Richa pela mudança nas condições de trabalho e distribuição das aulas, além de protestos dos bailarinos do Teatro Guaíra contra a decisão de demitir todo o corpo do balé.

Houve ainda protestos dos servidores públicos municipais contra o chamado pacote de ajustes fiscais do prefeito Rafael Greca, que retirou direitos dos servidores municipais. Após 3 meses seguidos de protestos, ocupação da Câmara Municipal, passeatas e protestos, o “Pacotaço do Greca” foi aprovado numa sessão de vereadores que foi transferida para a Ópera de Arame, espaço reservado para eventos na cidade e que contou com grande aparato policial para isolar os votantes. Houve forte repressão da polícia, com manifestantes ficando feridos. Mesmo depois de aprovado o pacote, as manifestações continuaram com a “chuva de dinheiro” feita com cédulas falsas sobre os vereadores.

Servidor ferido pela Polícia Militar durante protesto da categoria em frente à Câmara Municipal de Vereadores (Foto: Rodrigo Fonseca/CMC)

Servidores públicos de outras cidades, como Colombo e Araucária, também protestaram, ocupando as respectivas câmaras de vereadores. Em dezembro, funcionários do Bradesco denunciam o “Natal de horrores” com demissões em massa de 9,2 mil funcionários do banco em um ano. Esses protestos demonstram a insatisfação frente à retirada de direitos trabalhistas que se amplia ainda mais com a reforma aprovada. O caráter dos protestos atingindo principalmente o funcionalismo público mostram que em nome da crise e do ajuste fiscal qualquer medida de contenção é justificável.

A saída da “crise” parece elevar para um patamar superior as contradições da relação capital x trabalho, acirrando a precarização das condições de trabalho e de vida. É nesse contexto que a luta por direitos ganha novas proporções, inclusive enfrentando expedientes de violência e repressão.

A terceira categoria em número de conflitos em Curitiba foi “Estado, Governo e Democracia. Apesar de um número menor de atividades, foram ações que tiveram repercussão nacional, como as grandes greves gerais em março e abril, que mobilizaram cerca de 40 mil e 30 mil manifestantes em Curitiba, segundo seus organizadores. Somaram-se a paralisações de vários sindicatos e entidades de classe, tais como bancários, petroleiros, metalúrgicos, policiais civis, funcionários da limpeza pública, além de movimentos sociais, frentistas e estudantes.

A greve geral de 28 de abril mobilizou milhares de pessoas em todas as regiões do Paraná (Foto: André Chaves)

Professores, motoristas e cobradores do transporte coletivo somaram-se às lutas e houve paralisação das atividades habituais e do transporte público da capital. As greves foram em repúdio à reforma trabalhista e previdenciária do governo Temer. Ocorreram outros protestos dessa categoria como os que pediam a saída do presidente Michel Temer e a convocação de eleições diretas; jornada contra as privatizações e em defesa das empresas estatais do Brasil.

Esse grupo de protestos nos faz refletir: Que democracia vivemos? A democracia representativa ainda tem espaço no Brasil? Qual é o papel do Estado? O Estado trabalha para si mesmo ou para o povo? Parte desses movimentos de protesto tem pressionado os Estados a se tornarem mais democráticos e responsáveis, questionando também como as decisões são tomadas. Reflete também que os grupos mobilizados não são unânimes frente às ações que envolvem o Estado e Democracia, sendo que suas concepções estão em constante disputa.

Novas disputas

Em relação à mobilidade pública e transporte coletivo, foram retratadas paralisações de motoristas e cobradores por melhores condições de trabalho, segurança e de usuários contra o preço da tarifa e qualidade dos serviços; além das disputas entre táxis e operadoras de serviços de transporte como Uber e Cabify, sua regulamentação e utilização.

Apesar de a cidade ser conhecida como modelo na área de transporte coletivo, as mobilizações não têm apontado na mesma direção. O preço da tarifa e a inércia na modernização da integração temporal apontam para que a manutenção de privilégios dos proprietários das empresas é a prioridade, em detrimento da qualidade do sistema. E novas disputas entram em cena com a regulamentação das formas transporte público via veículos privados.

 

*Simone Polli é professora da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), doutora em Planejamento Urbano e Regional e integrante do Observatório de Conflitos Urbanos de Curitiba

Edição: Ednubia Ghisi