Especial | A condenação de Lula no TRF4 e os esqueletos no armário da Lava Jato

O que estava em jogo no julgamento do ex-presidente no "caso triplex"

Ricardo Stuckert

Por Daniel Giovanaz

Porto Alegre, 24 de janeiro. Hotel Sheraton, 4º andar, sala Assunção. Um homem grisalho, de aparência cansada, discursa em inglês diante de 90 jornalistas e 20 câmeras de vídeo. Em meio à vasta cabeleira branca despontam dois inseparáveis fones de ouvido, dos quais ele não desgruda desde as oito da manhã. Com uma pronúncia enfática, que se assemelha ao inglês britânico, o advogado australiano Geoffrey Robertson descreve o assombro causado pela experiência vivida algumas horas antes:

"Cheguei ao tribunal esperando assistir a um julgamento justo, mas logo vi o procurador sentado com os juízes, tomando café, batendo papo, almoçando juntos. Foi inacreditável!".

Após uma breve pausa, para tentar distinguir mudanças no semblante dos espectadores, o jurista prossegue: "Trata-se uma corte tendenciosa. O Brasil tem um sistema jurídico primitivo, no qual não há juízes independentes".

Os repórteres brasileiros não parecem escandalizados com esse relato. Dois deles, com crachás de uma emissora afiliada da Rede Globo, se entreolham como quem diz: “Do que esse gringo está se queixando? Uma refeiçãozinha inocente entre acusadores e julgadores...”

Aos 71 anos, Robertson atua no Comitê de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU). A autorização para acompanhar a sessão mais esperada da história do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4) foi obtida após um pedido dos advogados do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

Das 8h30 às 17h, o representante da ONU foi testemunha ocular da condenação de Lula em segunda instância na ação penal conhecida como “caso triplex”. A votação unânime da 8ª Turma resultou na ampliação da pena aplicada pela 13ª Vara Federal de Curitiba: de nove anos e meio para 12 anos e um mês de prisão.

"Em uma corte de apelação, o que os três juízes deveriam fazer era escutar argumentos sobre uma primeira sentença", explica o australiano, que assume um tom de voz mais didático, sem disfarçar a indignação. "Os desembargadores de hoje falaram por cin-co-ho-ras, como se estivessem lendo um script! Eles tinham a decisão pronta antes de ouvir qualquer argumento".

Suspeição

O script a que Robertson se refere foi antecipado pelo presidente do TRF4 no dia 6 de agosto de 2017. Em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, menos de um mês após a divulgação da sentença em primeiro grau, o juiz Carlos Eduardo Thompson Flores qualificou a peça como “irrepreensível”: "Fez exame minucioso e irretocável da prova dos autos e vai entrar para a história do Brasil".

A Lei Orgânica da Magistratura Nacional (Loman) proíbe os juízes brasileiros de “manifestar, por meio de qualquer meio de comunicação, opinião sobre processo pendente de julgamento”. A cereja do bolo veio no dia 3 de janeiro, quando a chefe do gabinete dele, Daniela Tagliari Kreling Lau, compartilhou nas redes sociais uma petição exigindo a prisão imediata de Lula.

Mesmo antes da declaração do presidente do TRF4 ou da postagem no Facebook, o réu previa que o clima da sessão seria adverso. O motivo da desconfiança responde pelo nome de João Pedro Gebran Neto, relator da 8ª Turma e admirador confesso de Sérgio Moro – juiz que condenou Lula em primeira instância.

Nos agradecimentos do livro “A aplicação imediata dos direitos e garantias individuais”, publicado em 2008, o desembargador menciona o vínculo afetivo com o juiz de Curitiba: “Desde minhas primeiras aulas no curso de mestrado encontrei no colega Sérgio Moro, também juiz federal, um amigo. Homem culto e perspicaz, emprestou sua inteligência aos mais importantes debates travados em sala de aula. Nossa afinidade e amizade só fizeram crescer nesse período”.

O Código de Processo Penal prevê que um julgador seja considerado suspeito se tiver parentesco ou relação íntima de amizade com uma das partes, acusação ou defesa. Em teoria, essa suspeição não se aplica ao vínculo entre Gebran Neto e Moro — embora os advogados de Lula aleguem que o magistrado de Curitiba se comporta como parte interessada (acusação), e não como mero juiz de primeira instância.

Em outubro de 2016, eles protocolaram na Justiça um pedido para que Gebran Neto esclarecesse suas relações pessoais com Moro. O desembargador de Porto Alegre se recusou a dar qualquer explicação.

Na apelação entregue ao TRF4 para julgamento no dia 24 de janeiro, a defesa de Lula listou 30 preliminares — novos questionamentos à sentença de Moro ou à forma como foi conduzido o processo. Gebran Neto rejeitou todas as elas e enalteceu a sentença assinada pelo amigo.

“Foi uma transcrição da sentença de Moro”, analisa Beatriz Vargas Ramos, professora de Direito da Universidade de Brasília (UnB). “Eles [desembargadores do TRF4] foram iguais em tudo. Parecia uma única pessoa dando o voto”.

"Como o Brasil esperava um julgamento justo se o presidente do tribunal [Flores] já havia dito que a sentença era impecável?" – questiona Robertson, a um passo de se irritar com a apatia dos repórteres. "Isso nunca aconteceria na Europa!", o representante da ONU faz uma ênfase especial na comparação, presumindo certo sentimento antinacional da plateia.

Em nenhum momento, conforme a interpretação de Robertson, a peça condenatória de Moro ou os indícios apresentados pelo MPF foram analisados pelos desembargadores com o devido ceticismo. A sessão durou oito horas e 20 minutos: a maior parte dedicada a elogios à sentença em primeira instância.

Os indícios reunidos pela Polícia Federal (PF) um ano antes ganharam o codinome de “provas”, sem qualquer pudor. A ausência de documentos que sustentassem a condenação foi tratada como mero detalhe, resolvido com duas ou três frases de efeito.

“Foi uma decisão política, sem provas, violadora de garantias e direitos conquistados com muita luta”, critica Luciana Pivato, advogada da organização Terra de Direitos, que presta assessoria jurídica a movimentos populares. “O sistema penal foi criado, e vai seguir sendo, seletivo e punitivista”.

No dia seguinte à condenação, o jornal O Globo estamparia na capa uma citação macarrônica e paradoxal, proferida ao final da sessão pelo revisor Victor Luiz dos Santos Laus — o último dos três desembargadores a votar: “Quem responde por crime tem que ter participado dele. E, para ter participado, alguma coisa errada ele fez”.

Se a intenção do jornal era desmoralizar o revisor da 8ª Turma, o que não faltava eram pérolas para a capa do dia 25. A melhor delas ficou reservada para os minutos finais da sessão:

"Se as provas [sic] resistiram à crítica da defesa, restou provado", disse Laus, em rede nacional.

Conforme a análise da professora Beatriz Vargas Ramos, seria o mesmo que afirmar: “Se Moro disse, está dito”. Ou, “Se Gebran disse, eu assino embaixo”.

Nada como um tribunal colegiado para celebrar as divergências.

Antecedentes

As violações ao direito de defesa, que despertaram a indignação de Geoffrey Robertson, se tornaram rotina no Brasil desde 2014. Em fevereiro, a PF deflagrou a chamada operação Lava Jato para investigar pagamentos de propina e lavagem de dinheiro em órgãos públicos e empresas estatais.

À ânsia de se combater a corrupção, que atinge as altas esferas de poder no país desde as capitanias hereditárias, no século 16, somou-se o desejo de parte da população de derrubar a presidenta eleita Dilma Rousseff (PT) em meio à recessão econômica. Com as bênçãos do capital financeiro internacional e das maiores empresas de comunicação do país, abriu-se caminho para que procuradores e juízes de primeira instância se tornassem celebridades, acima do bem e do mal.

Os números oficiais do MPF apontam 844 mandados de busca e apreensão, 210 de condução coercitiva, 97 de prisão preventiva e 69 pessoas condenadas em menos de quatro anos. Sergio Moro foi considerado uma das 100 pessoas mais influentes do mundo pela revista estadunidense Time e eleito duas vezes o “brasileiro do ano” pela revista IstoÉ. O chefe da força-tarefa da Lava Jato em Curitiba, Deltan Dallagnol, tornou-se um influenciador digital com 632 mil seguidores no Facebook e 333 mil no Twitter.

Sem controle

Dez anos antes da Lava Jato, Moro escrevia sobre a importância de ter a mídia ao lado dos julgadores e investigadores para acuar e deslegitimar a defesa dos réus. Entusiasta da operação Mani Pulite, que deixou um rastro de destruição na Itália, ele publicou em 2004 um artigo sobre o tema e relatou: “Tão logo alguém era preso, detalhes de sua confissão eram veiculados no ‘L’Expresso’, no ‘La Republica’ e outros jornais e revistas simpatizantes. (...) A deslegitimação, ao mesmo tempo em que tornava possível a ação judicial, era por ela alimentada (...) O constante fluxo de revelações manteve o interesse do público elevado e os líderes partidários na defensiva”.

De fevereiro de 2014 a dezembro de 2016, Moro e os operadores da Lava Jato aproveitaram o respaldo da imprensa para testar os limites do Estado de direito. Sob a égide da liberdade, todo e qualquer questionamento aos abusos cometidos pela operação passou a ser visto como tentativa de obstrução da Justiça. Entre as violações mais citadas pelos juristas brasileiros estão: a banalização das prisões preventivas; as interceptações telefônicas ilegais; os acordos de delação com benefícios acima do previsto em lei; as conduções coercitivas sem intimação prévia.

O próprio Lula foi despertado pela PF às seis da manhã, no dia 4 de março de 2016, e levado a depor na delegacia do aeroporto de Congonhas, em São Paulo, sem nunca antes ter se recusado a colaborar com as investigações.

Em entrevista ao jornal Brasil de Fato em fevereiro de 2017, o juiz Alexandre Morais da Rosa afirmou que a condução coercitiva é uma modalidade estranha ao processo penal, decorrente de uma interpretação obtusa do Código de Processo Penal: “É sempre um mecanismo autoritário, dado o direito ao silêncio. Ela tem sido utilizada como trunfo ou blefe para constranger os conduzidos à colaboração com as investigações. Ninguém deveria ser conduzido coercitivamente a prestar declarações, já que o investigado ou acusado tem o direito de não produzir prova contra si mesmo”.

Morais da Rosa também questiona o uso indiscriminado de delações premiadas na Lava Jato. Para um réu que recebe um mandado de prisão preventiva, delatar os colegas é uma chance única de diminuir a pena. “O fato de o investigado estar preso não é causa suficiente para o reconhecimento da ausência de legitimidade da delação. Mesmo assim, pode-se apontar que a prisão cautelar é um forte incentivo para quem deseja obter a liberdade”, interpreta o magistrado, que também é professor de Direito da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). “A depender do caso, a prisão deixa de ter caráter cautelar, transformando-se em emboscada para delação”.

A polêmica dos acordos de colaboração ganhou novo tempero a partir de outubro. Acusado de participar de esquemas de lavagem de dinheiro e pagamento de propina na empreiteira Odebrecht, Rodrigo Tacla Durán, ex-advogado da empresa, reuniu em um livro várias acusações contra a Lava Jato e as interferências do Estado das negociações com os réus.

Em 30 de novembro, Tacla Durán prestou depoimento via teleconferência para a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) e relatou que foi extorquido durante as negociações de um acordo de colaboração. Conforme um anexo de 45 páginas entregue por Durán ao final do depoimento, a extorsão teria sido realizada por outro advogado, Carlos Zucolotto Jr., profissional que lhe foi indicado para vender certas “facilidades” no acordo. O anexo contém cópias de conversas por celular, que foram submetidas à perícia e tiveram sua legitimidade confirmada.

Carlos Zucolotto é padrinho de casamento do juiz Sérgio Moro e foi sócio da esposa dele, Rosângela Moro, em um escritório de advocacia.

Conforme a versão de Tacla Durán, o compadre de Moro tinha o poder de negociar propostas favoráveis aos delatores junto ao MPF. Os diálogos por celular mostram que Zucolotto teria conseguido diminuir a multa paga ao final do acordo de 15 para 5 milhões de dólares, mediante o pagamento de outros 5 milhões em propina.

Sérgio Moro alega que Zucolotto é um advogado “sério e competente”, e que o rumor de que ele teria intermediado um acordo de delação é “absolutamente falso”.

Tacla Durán acompanha o processo em liberdade na Espanha, porque tem dupla cidadania. Zucolotto nunca foi chamado a prestar esclarecimentos sobre o caso.

Em dezembro de 2017, segundo pesquisa do Instituto Ipsos, a rejeição a Sérgio Moro entre os brasileiros subiu 18% e chegou a 53%.

A delegada paranaense Érika Mialik Marena, outra peça-chave da Lava Jato, tornou-se conhecida por batizar a operação da PF – e por não tolerar nenhum tipo de comentário ou reportagem crítica.

Durante as eleições presidenciais de 2014, uma matéria do jornal O Estado de S. Paulo reproduziu uma breve postagem de Marena no Facebook, sob o codinome Herycka Herycka: “Dispara venda de fraldas em Brasília”. A publicação foi interpretada pela repórter Julia Dualibi como uma resposta irônica ao depoimento de Paulo Roberto Costa, ex-diretor de Abastecimento da Petrobras, que acusava o PT de receber 3% dos contratos superfaturados da estatal. A delegada não deixou barato: entrou com uma ação na 9ª Vara Cível de Curitiba para tirar a reportagem do ar e pediu R$ 70 mil em indenizações.

No ano seguinte, a empresa Facebook Brasil foi alvo de uma nova ação, desta vez junto ao Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. A “mãe da Lava Jato” pedia que fosse retirado do ar de “todo o conteúdo ofensivo, correlato à denominada operação [Lava Jato] que vincule o autor, sob pena de multa diária de R$ 500 por dia de descumprimento, até o limite de R$ 50 mil”. Em março 2016, sobrou para o jornalista Marcelo Auler, que teve duas reportagens críticas à Lava Jato censuradas em seu blog, com autorização do 8º Juizado Especial Cível de Curitiba.

Transferida a Florianópolis no início de 2017, Marena comandou nove meses depois a abordagem policial que resultou na prisão do então reitor da UFSC, Luiz Carlos Cancellier — acusado de atrapalhar investigações sobre desvios nos programas de ensino à distância.

Cancellier sofreu uma condução coercitiva sem intimação prévia, foi afastado da reitoria e teve o acesso restringido à universidade antes mesmo da formalização de um processo. O suicídio do ex-reitor, em outubro, tornou-se símbolo do “lavajatismo” e do “Estado policialesco” instaurado no Brasil após a deflagração da operação.

Além do apoio da mídia comercial, os operadores da Lava Jato se valeram de uma série de medidas tomadas pelos próprios governos PT, como a Lei da Ficha Limpa, de 2010, e a Lei Anticorrupção, de 2013. A primeira tornava inelegíveis os políticos condenados por crimes em segunda instância. A segunda previa a responsabilização objetiva de empresas que praticassem atos contra a Administração Pública e estabelecia parâmetros para os acordos de delação premiada.

Mesmo quando a Lava Jato investigou e puniu os caciques do partido, Dilma manteve o procurador-geral da República (PGR), Rodrigo Janot, e o diretor-geral da PF, Leandro Daiello. Em vez de proteger o deputado corrupto Eduardo Cunha (PMDB) no conselho de ética da Câmara para garantir, em troca, que ele barrasse o pedido de impeachment, o PT lavou as mãos e pagou o preço do republicanismo.

Sangria

O afastamento de Dilma Rousseff sem crime de responsabilidade em 2016, embora comemorado pelos movimentos “contra a corrupção”, resultou da articulação de setores que pretendiam frear as denúncias para defender interesses particulares. Essa intenção veio à tona em uma conversa telefônica entre o senador Romero Jucá (PMDB) e o empresário Sérgio Machado, divulgada pelo jornal Folha de S. Paulo em maio daquele ano.

O diálogo tornou-se uma espécie de mantra para os que se opuseram ao impeachment: “Botar o Michel, num grande acordo nacional, com o Supremo, com tudo… aí parava tudo, delimitava onde está”.

O golpe parlamentar concretizou-se com a posse do então vice-presidente Michel Temer (PMDB) e inaugurou uma nova etapa da Lava Jato. As mudanças no Ministério da Justiça e em cargos de chefia na PF e da PGR, as sucessivas compras de votos no Congresso Nacional e a nomeação de aliados para o Supremo Tribunal Federal (STF) impediram que as denúncias contra Temer fossem adiante.

O mesmo não se pode dizer das investigações em que Lula era o alvo. Em um ano e meio, o ex-presidente tornou-se réu em sete ações penais — quatro delas na Lava Jato. O processo que tramitou com mais agilidade caiu na boca do povo sob a alcunha de “caso triplex”.

Via crucis

Em 20 de setembro de 2016, Sergio Moro aceitou uma denúncia apresentada pelo MPF com base no processo n.º 5046512-94.2016.4.04.7000/PR. Munido de um relatório de 59 páginas entregue pela PF, o procurador Deltan Dallagnol afirmava que Lula cometeu os crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro ao receber vantagens indevidas da empreiteira OAS.

Um apartamento triplex no edifício Solaris, no Guarujá, litoral paulista, teria sido reservado e reformado sob a orientação da família do ex-presidente. A denúncia também apontava que Lula havia incorrido em crimes ao aceitar que a OAS armazenasse seu acervo presidencial.

Conforme descrito pelo MPF, o Grupo OAS distribuiria benefícios ilegais a membros do PT de forma sistemática para garantir contratos com a Petrobras, como no Consórcio CONEST/RNEST, em obras da Refinaria do Nordeste Abreu e Lima (Ipojuca-PE), e no Consórcio CONPAR, em obras na Refinaria Presidente Getúlio Vargas (Araucária-PR). O total pago em propinas chegaria a R$ 87.624.971,26. Cerca de 1% seria destinado a agentes políticos do PT. Lula teria recebido R$ 3.738.738,00, valor equivalente à reserva e reforma do apartamento.

No dia em que apresentou a denúncia à imprensa, Dallagnol exibiu uma peça em PowerPoint em que descrevia Lula como “comandante máximo” e “maior beneficiário” dos esquemas de corrupção apurados pela Lava Jato.

A postura precipitada do chefe da força-tarefa foi motivo de repreensão por parte de Teori Zavascki, então ministro do STF: “A espetacularização do episódio não é compatível com o objeto da denúncia nem com a seriedade que se exige na apuração desses fatos”.

Setenta e três testemunhas — 27 de acusação e 46 de defesa — foram ouvidas em 23 audiências, e nenhuma delas afirmou que o apartamento pertencia formalmente a Lula.

A sentença

Moro conseguiu comprovar apenas uma visita do ex-presidente ao imóvel no Guarujá. Pesou contra Lula, no entanto, o depoimento de um co-réu: Léo Pinheiro, executivo da OAS. Condenado a 16 anos de prisão em agosto de 2015 por corrupção, lavagem de dinheiro e organização criminosa, ele prestou uma série de esclarecimentos ao MPF entre março e junho de 2016.

Sempre que o assunto era o triplex do Guarujá, o empresário insistia que Lula era inocente. Na versão dele, a empreiteira tentara oferecer “agrados” ao ex-presidente para manter uma boa relação junto aos governos PT, mas não houve nenhuma contrapartida por parte de Lula, que sequer se interessou pela compra do imóvel que lhe foi oferecido.

Conforme reportagem do jornal Folha de S. Paulo, essa postura fez com que o MPF “travasse” os acordos de delação premiada da OAS. A mesma matéria afirma que a empreiteira tinha pressa de encaminhar um acordo de colaboração premiada para que Pinheiro tivesse a chance de reduzir sua pena em até dois terços.

Para isso, foi preciso alterar o conteúdo do depoimento e “encaixá-lo” na tese da acusação. Em 20 de abril de 2017, após quase um ano de insistência, o executivo da OAS afirmou a Sergio Moro que Lula era dono do triplex e que teria recebido o imóvel em troca de vantagens à empresa. O preço do imóvel e o custo das reformas teriam sido abatidos de uma “conta-corrente geral de propinas” administrada pelo Grupo OAS em parceria com agentes do PT.

Para justificar a falta de documentos que atribuíssem a propriedade do imóvel ao ex-presidente, a solução encontrada pelo empresário e seus advogados foi dizer que “as provas foram destruídas” a pedido do próprio Lula.

Embora a redução de pena tenha entrado em pauta após a divulgação desse depoimento, ele não foi homologado no contexto de uma colaboração premiada. A não homologação pressupõe que o executivo da OAS não precisou jurar a veracidade da informação nem apresentar provas documentais que sustentassem suas alegações.

A mesma corte que aumentou a pena de Lula decidiu pela redução do tempo de prisão de Léo Pinheiro: de 10 anos e oito meses em regime fechado para três anos e seis meses em regime semiaberto.

No texto em que condena Lula, Moro afirmou: “Embora não haja dúvida de que o registro da matrícula [do triplex] aponte que o imóvel permanece registrado em nome da OAS Empreendimentos S/A, empresa do Grupo OAS, isso não é suficiente para a solução do caso”.

A defesa do ex-presidente interpreta que o juiz de Curitiba modificou a acusação do MPF para poder imputar-lhe os crimes de corrupção e lavagem de dinheiro. Como não foi provado que Lula tinha a propriedade do apartamento nem usufruiu da posse, o magistrado passou a trabalhar com a ideia de “atribuição” do imóvel, com base no depoimento de Léo Pinheiro.

“[Lula foi condenado] por crime estranho ao processo”, resumiu nas redes sociais Afrânio Jardim, professor associado de Direito Processual Penal da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj).

Quanto à acusação do MPF sobre corrupção e lavagem de dinheiro nas negociações para armazenamento do acervo presidencial, Moro absolveu Lula e os demais réus por falta de provas.

A sessão

O presidente da 8ª Turma, Leandro Paulsen, abriu a sessão de julgamento às oito e meia da manhã do dia 24 de janeiro. Além do petista, outros três réus pediam a absolvição ou a redução da pena aplicada em primeira instância: Léo Pinheiro, o ex-diretor da área internacional da OAS, Agenor Franklin Magalhães Medeiros, e o ex-presidente do Instituto Lula, Paulo Okamotto.

As teses formuladas pelo MPF foram repetidas pelo procurador Maurício Gerum, que falou por meia hora e pediu a ampliação da pena aplicada aos réus. Na sequência, o microfone foi aberto para o assistente de acusação René Dotti, advogado da Petrobras, que optou por um discurso de caráter político: em dez minutos, ressaltou a importância da petroleira para a história do Brasil e a gravidade das denúncias em questão.

Em seguida, foi a vez de Cristiano Zanin, que se ateve aos elementos jurídicos e debateu a tipificação dos crimes relatados na sentença. O advogado de Lula argumentou que não houve corrupção passiva, uma vez que não se comprovou o recebimento do apartamento pelo réu, nem se determinou em que contratos o ex-presidente teria favorecido a OAS em troca da suposta propina.

Desconstruir a hipótese de lavagem de dinheiro tomou-lhe menos tempo. Este crime se configura a partir de uma negociação ou movimentação financeira usada para “limpar dinheiro sujo”, produto de outro delito. Em nenhum parágrafo do processo ou da sentença ficou claro qual foi o crime anterior, que requeria que o dinheiro fosse “lavado” — por meio da transferência da propriedade do triplex. Lula não recebeu o imóvel, por isso mesmo não o vendeu nem embolsou o valor correspondente a ele.

Antes de encerrar as considerações da defesa, Zanin argumentou que o processo era nulo, havia gerado uma sentença nula, e que não havia provas suficientes para uma condenação: "O poder do Estado tem limite, e não pode ser utilizado desta forma", advertiu, como se soubesse o que estava por vir.

Àquela altura, antes mesmo da leitura do relatório de Gebran Neto, a emissora de TV BandNews anunciava em letras garrafais que Lula seria condenado por unanimidade no TRF4.

O relator Gebran Neto rejeitou os 30 questionamentos preliminares formulados pela defesa de Lula e negou que Moro e os procuradores do MPF fossem considerados suspeitos para atuar no caso. Pelo contrário, durante três horas e meia, ele seguiu à risca a interpretação do amigo e legitimou o uso de métodos polêmicos durante as investigações da Lava Jato, como as conduções coercitivas sem intimação prévia e a divulgação de grampos telefônicos do ex-presidente fora do prazo estipulado pela Justiça.

Diante da falta de provas que respaldassem a sentença sobre o triplex, o relator apostou na “teoria de domínio do fato” para sustentar que Lula tinha ciência dos desvios da Petrobras — pois ocupava um cargo superior na hierarquia e participou da nomeação dos gestores da estatal.

A mesma interpretação foi usada, segundo Gebran Neto, durante a Ação Penal 470, conhecida como caso Mensalão, a partir de 2006. Uma gafe monumental: o próprio Claus Roxin, jurista alemão criador da teoria “domínio do fato”, discorda da forma como suas ideias foram aplicadas no Brasil. Roxin argumenta que ninguém pode ser punido pela ilicitude cometida por um subordinado, a não ser que a Justiça comprove que havia conhecimento de ambas as partes sobre o crime.

Antes de passar a palavra aos colegas, o amigo de Moro cometeu mais um deslize ao dizer que Lula poderia ser condenado por corrupção passiva sem a verificação de um “ato de ofício” — benefício concedido à OAS em troca do apartamento. Desta vez, o jurista citado por Gebran Neto foi às redes sociais para esclarecer o equívoco: “O pior de tudo é ser citado no voto por meio de um texto meu totalmente descontextualizado”, desabafou Alamiro Velludo Netto, professor de Direito da Universidade de São Paulo (USP), ao criticar o voto do relator.

Gebran Neto manteve a condenação e acrescentou à pena de Lula dois anos e sete meses de prisão em regime fechado. Quando a sessão foi interrompida para o almoço, às duas da tarde, o Brasil estava a um voto de ter o primeiro ex-presidente da República condenado por um tribunal em segunda instância.

Em emissoras de TV, rádios e portais de notícia na internet, juristas de todo o país foram chamados a palpitar ao vivo sobre a decisão de Gebran Neto durante o intervalo da sessão no TRF4. Uma das análises mais contundentes foi feita pelo advogado Patrick Mariano, da Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares (Renap), em entrevista à Rádio Brasil de Fato.

“Quem teve paciência para acompanhar [o voto] deve ter ficado estarrecido com o nível a que chegou o Judiciário brasileiro. Um desembargador, que vai ter uma influência grande nas próximas eleições, com aquele nível de debate teórico e argumentação?”, questionou Mariano. “Ele defendeu o juiz Sérgio Moro e a condução coercitiva. Foi de uma baixeza e de uma estupidez rara de ver. A argumentação é toda baseada em subjetividades, impressões e opiniões”, concluiu.

A expectativa de que os dois revisores questionassem a decisão de Gebran, após o almoço, foi destruída em poucos minutos. Leandro Paulsen, o segundo desembargador a votar, não divergiu em nenhum aspecto do voto do colega e ressaltou: “Lula foi beneficiário direto da propina do triplex” .

O terceiro a votar, Victor Luiz dos Santos Laus, foi além. Em menos de uma hora, enalteceu o trabalho do MPF e do juiz de primeira instância e concordou com a interpretação de Paulsen e Gebran Neto: "Moro é um magistrado corajoso, talentoso, brilhante...".

A condenação foi mantida e a sugestão de ampliação da pena, acatada. Vitória do mercado. Às cinco da tarde, minutos antes do fim da sessão, a bolsa de valores Ibovespa registrava valorização de 3,3% e a cotação do dólar caía mais de 2% em relação ao real.

Dois brasis

As arbitrariedades cometidas pelo Judiciário brasileiro chegaram ao conhecimento de Geoffrey Robertson em 27 de julho de 2016 pelas mãos de Cristiano Zanin. De acordo com as informações repassadas ao Comitê de Direitos Humanos da ONU, Lula era vítima de perseguição e enfrentava uma “guerra jurídica”, com violações explícitas ao direito de defesa.

A agilidade com que a 8ª Turma analisou o recurso impetrado pela defesa de Lula logo se tornou um novo elemento de suspeição. Os autos do processo conhecido como “caso triplex” têm 230 mil páginas. O julgamento no TRF4 passou à frente de outros sete processos menores, cujos recursos chegaram antes ao tribunal.

A defesa de Lula questionou a agilidade na tramitação do recurso. Carlos Eduardo Thompson Flores, o mesmo que elogiou a sentença de Moro em entrevista à imprensa, respondeu que “o julgamento dos processos pela ordem cronológica de distribuição no tribunal não é regra absoluta”. Ainda assim, chamou a atenção de Robertson a aparente obstinação dos juízes e procuradores para impedir uma nova candidatura do réu à Presidência da República em 2018.

Como entender a animosidade em torno de um ex-chefe de Estado que, oito anos antes, deixara o cargo com 83% de aprovação? Por que existe uma relação de amor e ódio em relação a um político de 72 anos que, longe de ser um radical, consolidou-se como mediador e pacificador de conflitos?

Para chegar às respostas, o representante da ONU precisaria se debruçar sobre o perfil socioeconômico do Brasil, entender as diferenças regionais e identificar os preconceitos de classe que se reproduzem nas instituições há quatro séculos. O chamado “lulismo” — assim como a Lava Jato — não dividiu a população, mas colocou frente a frente duas visões de mundo separadas por um abismo.

A polarização chegou ao ápice na rua e nas urnas em 2014, ano em que a operação foi deflagrada. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), a candidata do PT recebeu 73,6% dos votos da parcela mais pobre da população. O opositor, Aécio Neves (PSDB), que levantou a bandeira anticorrupção, liderou a votação entre os mais ricos, com 40,6%.

Quando a disputa foi ao segundo turno, a discrepância dos números tornou-se mais evidente. Dilma venceu em todos os estados do Nordeste e obteve a maioria dos votos na região Norte, com vantagem mais expressiva nos municípios com menor renda per capita. Aécio foi o mais votado nos três estados do Sul, em dois do Sudeste e em quatro do Centro-Oeste, regiões onde os processos da Lava Jato avançaram e foram a julgamento.

O professor do Departamento de Ciência Política e Sociologia da Universidade Federal do Paraná (UFPR) Ricardo Costa de Oliveira afirma que a origem social dos indivíduos está relacionada a uma série de hábitos e visões de mundo compartilhadas. Por isso, os vínculos familiares são determinantes para se entender as dinâmicas dos campos político e judiciário no Brasil.

Em artigo publicado no ano passado, em conjunto com José Marciano Monteiro, Mônica Helena Harrich Silva Goulart e Ana Christina Vanali, ele apresenta uma biografia coletiva de Moro, dos 14 membros da força-tarefa nomeados pela PGR e de oito delegados da PF que atuam na Lava Jato.

“Este seleto grupo de indivíduos forma parte do 1% mais rico no Brasil, e muitos até mesmo do 0,1% mais rico em termos de rendas”, descrevem os pesquisadores, que expõem relações históricas de parentesco com a elite política do Paraná.

Políticos e juristas integrantes da ditadura civil-militar também aparecem na árvore genealógica da operação. O procurador Carlos Fernando dos Santos Lima, por exemplo, é “filho do ex-deputado estadual da Arena [Aliança Renovadora Nacional, partido da ditadura brasileira] Osvaldo dos Santos Lima, promotor, vice-prefeito em Apucarana e presidente da Assembleia Legislativa do Paraná em 1973, no auge da ditadura, quando as pessoas não podiam votar e nem debater livremente”, segundo o texto. O pai de Carlos Fernando, assim como os irmãos, Luiz José e Paulo Ovídio, também atuaram como procuradores.

“Os operadores da Lava Jato são de famílias políticas e atuam em rede. Os pais trabalharam, defenderam, reproduziram ou atuaram na ditadura militar”, explica Oliveira. “Como pertencem ao 1% mais rico, estudaram em escolas de elite, vivem em ambientes luxuosos, estudaram Direito, depois fizeram concursos, com muito sucesso. Quando você tem pais no sistema, você tem facilidades”.

A 8ª TURMA

Os vínculos familiares expressos no artigo avançam até meados do século 19 e apontam, por exemplo, que João Pedro Gebran, avô do relator da 8ª Turma do TRF4, casou-se em 1924 com Francisca Cunha — filha do coronel Francisco Cunha, prefeito da Lapa na República Velha. O avô do coronel Cunha era o comendador Manuel Antonio da Cunha, primeiro prefeito da Lapa, em 1833, casado com a filha do 1º capitão-mor do município, o português Francisco Teixeira Coelho. Todas, famílias com origens históricas no latifúndio escravista e aparentadas entre si, como os Braga, do ex-governador Ney Braga e a família Lacerda, do ex-reitor e ministro da Educação do início da ditadura Flávio Suplicy de Lacerda.

A análise do professor Ricardo Costa de Oliveira leva a crer que a derrota de Lula nos tribunais era certa. “Todos eles [operadores da Lava Jato] pertencem à alta burocracia estatal. Quase todos são casados com operadores políticos, ou do Direito. É uma unidade familiar que opera juridicamente, opera politicamente. Os filhos herdam a mesma mentalidade autoritária, o elitismo, o ódio de classe”.

Quem julga os réus na Lava Jato pertence à classe que, há quatro anos, se opôs ao projeto político do PT e de Lula. O mesmo se aplica aos delegados da PF. Conforme reportagem publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, durante o pleito de 2014 eles usaram as redes sociais para difundir opiniões favoráveis à candidatura de Aécio Neves e manifestações de ódio contra Dilma Rousseff.

Em 22 de janeiro, Porto Alegre amanheceu com a notícia de que haveria atiradores de elite e 150 câmeras de segurança do lado de fora do TRF4 para “garantir a ordem” durante o julgamento. Trinta mil apoiadores de Lula foram à capital gaúcha e acamparam no Anfiteatro Pôr-do-Sol, à beira do Lago Guaíba, em solidariedade ao ex-presidente.

Na véspera da votação do recurso pela 8ª Turma, 80 mil pessoas participaram de um evento na Esquina Democrática, local histórico de manifestações e reuniões populares desde a década de 1930. Ao lado de lideranças do PT e de partidos aliados, Lula discursou por quase uma hora e esbravejou contra a Lava Jato, a mídia e as reformas do governo Temer. Antes de se despedir, prometeu manter a luta contra as arbitrariedades do Judiciário e pelos direitos dos trabalhadores, mesmo em caso de condenação:

"Só uma coisa vai me tirar das ruas desse país: será o dia em que eu morrer."

A Lava Jato cutucou com vara curta uma militância que nem o impeachment havia sido capaz de despertar: o ato político de 23 de janeiro foi o maior da história de Porto Alegre.

O amor e o ódio a Lula parecem incondicionais — embora o primeiro se apoie em estatísticas. Durante os governos PT, o Produto Interno Bruto (PIB) per capita saltou de US$ 2,9 mil para US$ 11,5 mil. Um milhão e meio de jovens ingressaram no ensino superior custeados pelo Programa Universidade Para Todos (ProUni). O salário mínimo teve aumento real de 72%, e os programas federais de distribuição de renda tiraram o Brasil do mapa da fome.

Lula é o favorito às eleições presidenciais de 2018, mas pode ter seus planos frustrados pela Lei da Ficha Limpa — que torna inelegíveis os políticos condenados por crimes contra a administração pública por um órgão colegiado, como a 8ª Turma do TRF4. O partido não fala em segunda opção, e a candidatura deve ser protocolada em agosto deste ano. Caberá ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) autorizar ou não a participação dele no pleito até 17 de setembro.

Constrangimento

Enquanto Geoffrey Robertson conclui sua reflexão e se despede dos jornalistas, opositores do ex-presidente celebram a condenação a 400 metros de distância do hotel Sheraton.

Três anos atrás, milhões de brasileiros saíram às ruas para pedir o fim da corrupção e a prisão de Lula. Outros tantos bateram panelas nas janelas de suas casas, entusiasmados com o avanço dos processos contra o ex-presidente. Hoje, são menos de 120 pessoas no Parque Moinhos de Vento, em Porto Alegre, sorridentes em meio a bandeiras verde-amarelas, bonecos do herói “Super Moro” e cartazes raivosos em apoio à ditadura militar.

Há várias razões para o esvaziamento das manifestações anti-PT. A multidão que um dia protestou pelo impeachment e em apoio à Lava Jato não era nada homogênea. Nem todos eram fascistas, nem todos “odiavam os pobres”, por assim dizer. Mas não há dúvidas de que viram ameaçada sua distinção enquanto classe nos últimos 14 anos.

Na noite da condenação de Lula só sobraram os extremistas, e está na cara que eles são minoria. Presume-se que os demais estão constrangidos.

Michel Temer, que substituiu Dilma após o golpe, não conseguiu recuperar a economia nem reduzir o desemprego. Ao contrário, cortou direitos trabalhistas e tornou-se alvo de denúncias mais graves e consistentes do que aquela que derrubou a presidenta eleita. Aécio Neves, abandonado por parte significativa do eleitorado após indícios de corrupção, é carta fora do baralho para 2018.

Esqueletos no armário

Ao lançar um olhar cético sobre a aparência de legalidade do processo contra Lula, Robertson traz à tona mais um esqueleto escondido no armário da Lava Jato. Respeitam-se os ritos previstos na Constituição e no Código de Processo Penal, mas a forma nem sempre encontra respaldo no conteúdo. Os advogados argumentam, apelam a instâncias superiores, fazem questionamentos, mas na prática os juízes ignoram toda e qualquer afirmação da defesa conforme lhes convém.

O professor de Direito Constitucional da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Pedro Serrano, acrescenta que o respeito ao rito processual não significa acesso à ampla defesa. “Processualmente, Lula tem direito a recursos e deve utilizar disso”, explica. “Mas a minha impressão é o que o sistema de justiça brasileiro não oferece condições para que o ex-presidente seja tratado como cidadão nesses processos, e sim como um inimigo. Isso é proveniente de uma ação política, não jurídica”.

O advogado José Roberto Batochio, que assumiu os microfones após Geoffrey Robertson na coletiva de imprensa do dia 24, foi mais taxativo: “O autoritarismo não veste mais o verde-oliva dos militares. Parece que passou por uma mutação cromática, e hoje veste o preto [cor da toga dos juízes e desembargadores]".

A apelação dos advogados de Lula tinha 491 páginas e foi desconstruída em pouco mais de meia hora. Nos tribunais da Lava Jato, frases de efeito e sofismas se sobrepõem a provas documentais.

“Realmente, foram sentenças inacreditáveis. Eles não conseguiram achar nenhum defeito na sentença do Moro, que já era um escândalo”, ressalta Paulo Sérgio Pinheiro, ex-ministro de Direitos Humanos no governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB). “Não é só uma decisão inaceitável, mas certamente gravíssima na perspectiva de um Judiciário independente. Nos Estados Unidos, se chama isso de 'tribunal canguru', quando já se sabe que o réu está condenado”.

Situação análoga ocorreu em 2016, durante o processo de impeachment. O advogado José Eduardo Cardozo reuniu argumentos jurídicos e passou horas explicando ao Parlamento que não havia crime de responsabilidade. Foi o mesmo que jogar pérolas aos porcos. Ao final do processo, venceram aqueles que gritaram "sim" no Congresso Nacional — em nome de Deus, da família, do coronel Ustra ou das pessoas de bem. São os mesmos que barraram duas denúncias contra Temer no Congresso, em agosto e outubro de 2017, e agora vibram com a condenação de Lula em Porto Alegre: “tudo conforme a lei”.

E ai de quem disser que é golpe.

Edição: Vanessa Martina Silva