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Crônica | A janela para a cidade

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"Leva-me à janela – 'para nos oferecer ao Recife', você diz – e, do sétimo andar de um prédio de apartamentos, abre meus braços à Boa Vista"
"Leva-me à janela – 'para nos oferecer ao Recife', você diz – e, do sétimo andar de um prédio de apartamentos, abre meus braços à Boa Vista" - Roberto Efrem Filho
Na tensão, talvez magnética, entre o seu tato e a minha espera

[Para ler no aguardo da noite; ou ao som de Etta James cantando “At Last”].

 

As ruas da cidade penetram o apartamento no seu suor. Eu, ocupada com a tradução dos contos e as datas de vencimento dos boletos de março, escuto a fricção da chave à fechadura como um prenúncio. Você não sabe, é certo, mas tem um tempo só seu de passar da primeira à segunda volta, um intervalo, quase uma hesitação, antes de abrir a porta definitivamente e me socorrer de papeis e códigos de barra com um sorriso nunca completamente meu.Em seus olhos há, sempre, uma ausência que me escapa. Uma demora nos porta-retratos que você trouxe da casa de sua mãe em outubro. Nos livros de Bataille. Na tensão, talvez magnética, entre o seu tato e a minha espera. Até que você vem. Despe-me à mesa de trabalho, leva-me à janela – “para nos oferecer ao Recife”, você diz – e, do sétimo andar de um prédio de apartamentos, abre meus braços à Boa Vista.Aqui, sinto seu vestido se ir enquanto você leva à boca o escapulário com a imagem de Nossa Senhora de Fátima que eu trago, de menina, num trancelim que pertenceu ao enxoval de minha avó. A santa permanece entre a língua e o céu; nós permanecemos benditas, em saliva e pele, diante das primeiras luzes da cidade. Sim, porque seu peito pesa sobre minhas costas como uma oração pronunciada, em segredo, pelos olhos que você mantém fechados e afagam o meu pescoço. Contra a noite, você me abraça.Sua mão esquerda em meu braço direito, sua mão direita em meu ventre, dedos e delicadezas a caminho da profundidade da voz de Etta James que preenche, doce e densa, a sala, o muito pequeno silêncio entre cada um dos meus arfares, o Recife estirado à nossa frente como um gato de casa que se espreguiça depois do salto. Então dou costas à Boa Vista. Ou passo a vê-la na pressão dos seus dentes sobre os seus lábios, no encontro escuro dos nossos pelos. Você se permite à cidade sobre os meus ombros.Eu, dentro, o escapulário de volta ao peito depois da morada em sua boca, deixo-me às ruas que você trouxe em seu suor. Úmidas, elas guardam suas reentrâncias. Você, enfim, sorrindo mais uma vez, diz “boa noite” – a mim ou à cidade – para que eu retorne à mesa de trabalho e aguarde mais um pouco, você não demora, volta já, apenas esqueceu de trazer os pães de mel da Padaria Santa Cruz para o café.  


Roberto Efrem Filho – ou Beto, como gosta – é do Recife e, vez ou outra, desajeita-se na palavra.

Edição: Monyse Ravenna