Opinião

A deselegância do cardeal Scherer, por Roldão Arruda

Artigo divulgado pelas redes sociais avalia críticas do cardeal ao ato religioso em memória de Marisa Letícia

Brasil de Fato | Reprodução: Facebook |
Dom Odilo Scherer é o cardeal da terceira maior arquidiocese católica do mundo
Dom Odilo Scherer é o cardeal da terceira maior arquidiocese católica do mundo - Rovena Rosa / Agência Brasil

Conheci dom Angélico Bernardino Sândalo quando eu era repórter no Estadão e escrevia sobre religião. Ele me chamava de ‘irmão’. Não era uma exclusividade. Todo mundo é ‘irmão’ de d. Angélico. Até pessoas das quais não gosta. Nunca perguntei o motivo desse tratamento. Imagino que seja para lembrar que somos todos filhos de um mesmo pai. Também imagino que foi essa ideia de fraternidade que o levou, desde a ordenação sacerdotal, a se voltar mais para as pessoas carentes, os que perderam tudo, os migrantes, os sem-teto, os sem-terra, os excluídos.

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Na década de 1970, esse interesse do padre Angélico pelos pobres chamou a atenção do então arcebispo de São Paulo, o franciscano Paulo Evaristo Arns. E quando o papa Paulo VI disse a ele que devia dividir seu trabalho e nomear um bispo auxiliar para cada milhão de fiéis da arquidiocese, o primeiro nome que veio à cabeça de d. Paulo foi o daquele padre. Logo depois de sagrá-lo bispo, despachou-o para a periferia, o extremo da Zona Leste, bandas de Itaquera, na época uma das regiões mais carentes da cidade. Lá, o bispo se entrosou tão bem com o povo que até trocou de time: deixou o Palestra Itália pelo Corinthians.

D. Angélico foi um dos principais conselheiros de dom Paulo nos anos da ditadura. Acompanhou-o, lado a lado, no episódio do assassinato do jornalista Vladmir Herzog, numa dependência do Exército. Editou o jornal católico O São Paulo. Enfrentou a censura à imprensa. Por onde passou estimulou movimentos populares por habitação, creches, transportes.

Hoje, com 85 anos, aposentado, vive numa casa modestíssima na Zona Norte. Às vezes é chamado para alguma celebração especial. No ano passado ministrou o sacramento da extrema-unção à esposa do ex-presidente Lula, Marisa Letícia, de quem era amigo há quase quarenta anos.

Agora o chamaram para o ato ecumênico que lembraria a passagem de um ano da morte de Marisa. Era para um ser ato no interior do sindicato. Mas, com a decretação da prisão de Lula e a multidão que se aglomerava do lado de fora, acabou transferido para a rua. E foi assim que o País viu o bispo ao lado do ex-presidente.

Como era de se esperar, nesses tempos de polarização política e de ódios, a imagem dos dois em rede nacional provocou reações furiosas, quase fratricidas, entre católicos. D. Angélico foi xingado das piores coisas. Como nos velhos tempos da guerra fria, o chamaram de bispo da batina vermelha. Um colunista político disse que rezou uma missa negra, confundindo, como vários outros jornalistas, ato ecumênico com missa.

D. Angélico desceu do caminhão assim que encerrou o ato e Lula começou a discursar. Ninguém prestou atenção nele quando seguiu por uma rua estreita e íngreme, à procura da condução que o levaria para casa. Trajava calça cinza, de cós muito alto, e camisa branca com mangas longas. Os passos eram lentos e amparados pelas mãos da irmã Carmem Julieta, que o acompanha sempre.

No dia seguinte, a assessoria do arcebispo de São Paulo, cardeal Odilo Scherer, divulgou uma nota sobre o assunto. É um texto curto e objetivo. Começa preocupado em isentar o cardeal: diz que ele não tem nada a ver com o ato ocorrido em São Bernardo e explica que "aconteceu fora da jurisdição e responsabilidade do arcebispo e da arquidiocese de São Paulo". Depois desse ato de lavar as mãos, o texto faz a afirmação que logo em seguida se transforma em manchetes de sites, jornais, rádios e TVs: "O arcebispo lamenta a instrumentalização política do ato religioso".

Li e reli a nota. Parece feita às pressas, com o objetivo de dar satisfações aos católicos mais direitistas, e suscita uma pergunta óbvia: se o arcebispo metropolitano não tem nada a ver com aquilo, a quem cabe a responsabilidade? É assim que o cardeal joga a bomba no colo do bispo de Santo André, d. Pedro Cipolini.

Para entender melhor é preciso explicar que a Igreja Católica tem uma divisão própria de territórios. De acordo com essa divisão eclesiástica, São Bernardo faz parte da diocese de Santo André. Indiretamente, portanto, o cardeal está perguntando o seguinte ao irmão e bispo vizinho: como é que você permite que um ato desses ocorra em sua jurisdição?

O alvo mais óbvio da nota, no entanto, é d. Angélico. O cardeal divulgou a nota sem dar um telefonema para o bispo emérito que mora na mesma cidade e a poucos quilômetros de distância. Nem sequer para avisá-lo. Tratou-o, de acordo com os tempos de guerra, como inimigo.

Faltou elegância, no mínimo, ao cardeal. Como arcebispo metropolitano, poderia ter conversado com o bispo de Santo André ou se dirigido à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Por outro lado, em vez engrossar e estimular o conflito, poderia ter exercido o papel de pastor, acalmando os ânimos e pedindo orações para o Brasil.

Como entender essa reação do cardeal? Existem algumas pistas. D. Scherer é um expoente do conservadorismo católico. Em 2013, no conclave que elegeu o sucessor do papa Bento XVI, o nome dele figurou na lista dos preferidos da ala conservadora. Mas não prosperou. Se é mesmo o Espírito Santo que orienta o conclave, ele deve ter soprado no ouvido dos cardeais, que, após dois papados conservadores, seria melhor optar por uma cabeça mais arejada e reformadora. E eles elegeram o jesuíta Bergoglio, hoje papa Francisco.

Em 2014, o papa afastou o cardeal Scherer e outros três cardeais da cúpula do Banco do Vaticano, instituição financeira envolvida numa série de escândalos, inclusive com suspeitas de lavagem do dinheiro do crime organizado. Foi uma demonstração de que ele veio mesmo para mudar.

No Brasil, o cardeal é um dos poucos integrantes da CNBB que defendem abertamente as propostas do governo Temer para a reforma da Previdência. Antes disso, ele já havia apoiado a proposta que congelou gastos públicos.

Em São Paulo, Scherer procurou demonstrar proximidade com João Doria - tucano que lastreou sua campanha eleitoral para a prefeitura em ataques ao PT e a Lula. Chegou a falar de maneira positiva, em duas ocasiões e publicamente, a respeito da ‘farinata’ que Doria pretendia distribuir nas escolas públicas.

O cardeal até posou ao lado do prefeito tucano quando ele divulgava o composto alimentar. No final da história, porém, ficou falando sozinho. O valor nutritivo do tal composto era tão duvidoso e polêmico que foi posto de lado. Pelo próprio Doria, que já se afastou da prefeitura para se candidatar ao governo do Estado, após ter prometido que jamais deixaria o cargo antes de terminar o mandato.

- Este artigo foi publicado originalmente no perfil de Roldão Arruda do Facebook.

Edição: Diego Sartorato