Guerra

“Ataque foi um teatro; ninguém está preocupado com as vidas na Síria”, afirma Nasser

Em entrevista ao Brasil de Fato, professor da PUC-SP destacou bastidores políticos da ofensiva da última sexta (13)

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

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Para o professor Reginaldo Nasser, a divergência entre as potências é sobre quem vai dominar a Síria
Para o professor Reginaldo Nasser, a divergência entre as potências é sobre quem vai dominar a Síria - Reprodução | TV Unesp / Operamundi

Na última sexta-feira (13), forças estadunidenses, francesas e britânicas bombardearam com mais de cem mísseis a capital da Síria, Damasco. A ação teria como alvo um suposto centro de armas químicas.

O ataque foi anunciado pelo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, em sua conta no twitter. O ato foi condenado pela Rússia, que prometeu responder a ofensiva contra sua aliada. De acordo com o governo sírio, três civis foram feridos. 

Entrevistado pelo Brasil de Fato, o professor do Departamento de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Reginaldo Nasser, avalia que o último ataque, ocorrido há um ano sob as mesmas justificativas, não teve nenhum impacto militar real. Segundo o professor, a ação serviu para alimentar os bastidores políticos do conflito.

"Isso é um teatro, ninguém está preocupado com vida humana ou com atuar decididamente na reconstrução da Síria e mesmo sob perspectiva militar não tem sentido nenhum. Esse teatro faz crer que há grande divergência entre Rússia e EUA, quando, na verdade, não há. (...) Então há uma distinção entre o jogo das grandes potências e o que elas fazem na periferia do sistema. No caso da Síria, cada país arma um grupo, eventualmente eles atuam diretamente, mas os grandes não entram em confronto entre si", afirmou.

Nasser analisa que tanto a Rússia quanto os EUA estão interessados em disfarçar outros problemas, como a denúncia da influência do governo de Vladimir Putin na eleição de Trump. 

A Síria está em guerra civil há sete anos. O conflito já causou a morte de pelo menos 500 mil pessoas e o refúgio de 5,6 milhões de sírios, segundo um balanço realizado em março deste ano pelo Observatório Sírio de Direitos Humanos.

Confira a entrevista completa com Reginaldo Nasser:

Brasil de Fato: Qual foi o impacto dessa última ofensiva em Damasco?

Reginaldo Nasser: O importante é diferenciar o impacto do significado real da forma como foi divulgado. Os Estados Unidos e outras potências como a Inglaterra, a França e a Rússia já fizeram centenas, ou milhares, de ataques à Síria, desde o início da guerra civil. 
Houve também várias denúncias de ataques químicos desde que começou esta guerra. Há um uso disso em um determinado contexto. Por que os EUA fez esse ataque? Do ponto de vista militar ele não tem consequência prática nenhuma, como também não teve o ataque realizado há um ano por Donald Trump. Então, há todo um contexto político, tanto da política internacional, como no contexto doméstico dos EUA, que é o caso que mais pesa. 
Chega a ser paradoxal, porque o Vladimir Putin e o governo da Rússia foram acusados, com muitos indícios, de influenciar a eleição pró-Trump. Hoje mesmo foram publicadas novas denúncias. Então, é muito interessante porque, de forma escondida, Putin e Trump se dão muito bem. Isso é um teatro, ninguém está preocupado com vida humana ou com atuar decididamente na reconstrução da Síria. Mesmo sob perspectiva militar não tem sentido nenhum. 
Esse teatro faz crer que há grande divergência entre Rússia e EUA, quando na verdade não há. Há divergências sobre quem dominará a Síria, mas não uma divergência a ponto de haver um problema sério entre eles. 
Se olharmos a história da Segunda Guerra Mundial para cá, tivemos a Guerra da Coreia, a Guerra do Vietnã, a Crise dos Mísseis, vários episódios sérios pelos quais eles não entraram em confronto, então por que vão entrar agora?
Há uma distinção entre o jogo das grandes potências e o que elas fazem na periferia do sistema. No caso da Síria, cada [potência] arma um grupo. Eventualmente, eles atuam diretamente, mas os grandes não entram em confronto entre si. Essa é a regra geral desde a Segunda Guerra Mundial até agora.

Você aborda os bastidores desse ataque. Mas quais interesses estão por trás desse "teatro"?

Justamente de um lado, disfarçar e desviar de problemas. O Trump, nesse caso específico da Rússia, está com sérios problemas. Desde a eleição até a questão política e econômica que não vai bem nos EUA. Então, volta e meia, presidentes usam desse subterfúgio para desviar a atenção. Já o lado internacional chama-se Israel. O problema ali não é nem tanto a Síria, e sim o Irã, que tem como aliado o Bashar Al-Assad [presidente da Síria], que por sua vez tem como aliado o Hezbollah [organização paramilitar fundamentalista islâmica no Líbano]. Na cabeça dos estadunidenses, se eu fechar essa articulação, fortaleço indiretamente Israel. Esse também é um dos objetivos pelos quais se afronta o governo da Síria, do lado dos EUA. Já do lado da Rússia, há uma influência desde a época da União Soviética na Síria, e eles querem continuar lá, com base militar marítima, em um local importante do Oriente Médio. Nada de novo no front das grandes potências.

Podemos comparar a justificativa dos EUA para o ataque, o suposto uso de armas químicas pelo governo de Bashar Al-Assad, com a justificativa da existência de armas nucleares para a invasão do Iraque no começo do século?

Podemos comparar com essa e com uma série de outras. Até hoje se discute, na década de 1980, o ataque químico do Iraque. Se você tem uma guerra dessa proporção da Síria, e grandes potências de cada lado, não tem a possibilidade de uma organização mais neutra ir lá avaliar consequências e apurar responsabilidades, então cada um ficará acusando o outro. E a gente fica assistindo, porque não tem a mínima condição de objetividade para saber quem usou armas químicas. É impossível, porque não temos uma situação adequada para isso. O caso da Guerra no Iraque foi, em termos internacionais, muito pior. Morreu mais de um milhão de pessoas com a justificativa das armas nucleares e depois de confirmado que não havia nada, houve cumplicidade de boa parte da mídia.

Como fica o papel da Organização das Nações Unidas (ONU) nesse contexto, pensando também nos ataques recentes aos protestos do Dia da Terra, em Gaza.

A ONU não é um ator, é um espaço. Nesses aspectos, dado seu regimento e origem, o recado quando se passa que há um Conselho de Segurança com veto, a lógica é que para a ONU agir com força tem que haver um consenso entre os países grandes. Se não, ela não faz nada. Há dois únicos momentos na ONU em que houve ação de força: na Guerra da Coreia, porque a China não estava e a URSS se absteve, e na Guerra do Golfo de 1991, que todo mundo apoiou. Fora isso, não teve mais nada.

O caso de Israel é clássico. Há dezenas, centenas de resoluções condenando Israel, mas isso sempre é vetado pelos EUA. Então, a importância dos agentes da ONU fica somente na parte humanitária, mesmo que de forma tímida. Na questão da força não há impacto nenhum. Não pode-se esperar que algo vai acontecer quando a Rússia está de um lado e os EUA do outro.

Você escreveu um artigo questionando se estamos diante de uma nova Guerra Fria. Porque acredita nisso?

Tem uma coisa que precisa ser melhor avaliada sobre a Guerra Fria. O conflito ideológico não existe mais, o sistema não é mais bipolar, você tem a importância da China, da Europa. Mas, por outro lado, alguns elementos que existiam na Guerra Fria permanecem até hoje. Quais são esses elementos? Os que se referem a uma disputa de grandes potências. Então, a Rússia pode ser capitalista, mas tem interesses na Síria que não se reduzem à questão ideológica. Há uma lógica na política internacional que é o domínio geopolítico, do território. Esse elemento permanece. É um equívoco aqueles que leram que com o fim da Guerra Fria isso não existiria. Mas não é que a Guerra Fria voltou, e sim que alguns dos elementos que estão sempre presentes na política internacional antes e durante a Guerra Fria, continuam aí. Que é a busca por domínio de território e influência. A velha questão da geopolítica. E as grandes potências continuam agindo assim. Nesse sentido que eu recoloquei a questão da Guerra Fria.

Além disso, Rússia e China, hoje, usufruem de um sistema internacional montado depois da Segunda Guerra Mundial. Volta e meia parece conveniente tanto para estadunidenses, chineses e russos, mostrar que eles têm grandes divergências. Isso não é verdade. Eu acho que precisamos recuperar, e não perder de vista, é uma perspectiva do olhar das regiões que foram colonizadas. Há grandes potências de um lado e a periferia do sistema, América Latina, África, Oriente Médio e Ásia, foram todos colonizados. Essa diferença permanece.

Edição: Katarine Flor