Construção

Fundação da Associação Brasil de Juristas pela Democracia: um momento histórico

A ABJD se esforçará para a construção de uma cultura que não separe a técnica jurídica do seu compromisso democrático

Brasil de Fato |
A fundação da ABJD é, portanto, um fato histórico para a sociedade brasileira, intensamente necessário.
A fundação da ABJD é, portanto, um fato histórico para a sociedade brasileira, intensamente necessário. - Reprodução

O Brasil é um país de bacharéis em Direito. Aqui os cursos de Direito vieram antes das Universidades com o propósito de formar os funcionários que comporiam os quadros da burocracia estatal nascente.

Ter uma formação jurídica em muitos momentos da história brasileira significou garantir uma preciosa condição para adentrar nos círculos do poder ou compor as elites culturais e intelectuais do país.

A técnica jurídica e sua compreensão científica urdidas por séculos em nossas faculdades e lapidadas nas mais variadas profissões e carreiras jurídicas sempre conviveram de modo parcimonioso e em não raras vezes laudatório com os autoritarismos de plantão.

A ditadura civil-militar iniciada em 1964, por exemplo, preocupou-se desde o primeiro instante em revestir o golpe desferido e toda a sorte de arbítrios e medidas de exceção com uma película ou verniz de legalidade. Uma legalidade autoritária que se insinuou no cotidiano dos processos judiciais, administrativos e legislativos do país, nas práticas, decisões e condutas institucionais, reforçando um longo efeito, uma espécie de amortecimento da capacidade jurídica e institucional de delimitar claramente o marco democrático, de discernir a exceção do Estado de Direito, uma compulsão a uma plácida naturalização do arbítrio, muitas vezes mal disfarçado com as mais toscas e inacreditáveis justificativas.

Por certo que nenhum país ou sociedade está livre de ter sua ordem jurídica pretensamente democrática e a institucionalidade que a manuseia instrumentalizadas para o autoritarismo, mas o Brasil tornou-se uma espécie de campeão nesse esporte.

Uma das razões para tão lamentável título é o fato de não termos conseguido construir frentes, espaços e instituições que consolidem uma prática e uma compreensão do Direito que estejam inequivocamente comprometidas com a democracia e com um Estado "destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias" (Preâmbulo da Constituição Republicana de 1988).

O Preâmbulo da nossa Constituição já traz as bases e os fundamentos que jamais deveríamos permitir que fossem transigidos, mesmo em nome das mais vistosas causas e cruzadas. Isto foi muito bem lembrado na noite do dia 10 de maio de 2018 a um auditório lotado, pelo advogado Tarso Genro, ex-governador do Rio Grande do Sul e ex-ministro da Educação e da Justiça, em seu discurso na assembleia de fundação do Núcleo Gaúcho da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia, a ABJD-RS.

Outros Estados brasileiros empenham-se em iniciativas siamesas e constroem uma empolgante mobilização de preparação para o Seminário Internacional da ABJD que ocorrerá no Rio de Janeiro, na PUC-Rio, entre os dias 24 e 26 de maio de 2018, quando então a entidade nacional será formalmente fundada.

Esta mobilização vem se desdobrando e se avolumando desde o início do processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff em 2016. Se hoje já é bem mais amplo o espectro de profissionais da área do Direito que reconhecem a fragilidade e ausência de fundamentos jurídicos e democráticos para a interrupção do mandato de uma presidenta eleita pelo voto popular em um sistema presidencialista, naquele momento foi incumbência de um razoável grupo de juristas (termo entendido aqui para designar a diversidade de profissões relacionadas ao campo do Direito), com pessoas oriundas de todos as regiões do Brasil, firmar posição contra mais essa ruptura institucional vivida no país. Fundou-se aí a Frente Brasil de Juristas pela Democracia, já responsável por uma série de eventos e publicações de grande repercussão nacional e internacional.

Juristas de todo o país, identificados nas suas atuações com as pautas de defesa da democracia e com o norte estabelecido no Preâmbulo da Constituição de 1988, iniciaram uma articulação inédita, uma rede que só faz crescer e se adensar e que naturalmente evoluiu para a construção de uma Associação Nacional, despida de pautas corporativas, que reúne pessoas das mais diversas ocupações relacionadas à área do Direito, inclusive os estudantes, em torno das pautas democráticas e de defesa da Constituição, especialmente em suas cláusulas pétreas, entre as quais se destacam os direitos fundamentais.

A formação da ABJD tem sido impulsionada pela copiosa sequência de desmanches e ataques à democracia e à Constituição de 1988 que se seguiu após a deposição da presidenta eleita, e da qual têm sido protagonistas ou cúmplices diversos segmentos da nossa institucionalidade, no governo, no parlamento, no sistema de Justiça.

Olhando para a história das organizações brasileiras que reúnem membros de segmentos específicos de profissionais da área do Direito, como advogados, magistrados, acadêmicos, promotores, procuradores, entre outros, encontraremos o predomínio de atuações erráticas na defesa da democracia e dos direitos fundamentais, visto que tal bandeira muitas vezes se dispersa em meio a tantas outras pautas de caráter mais corporativo, e por vezes chega a ser francamente afastada em momentos de graves crises e rupturas institucionais, como o que hoje vivemos.

A fundação da ABJD é, portanto, um fato histórico para a sociedade brasileira, intensamente necessário. Sua estrutura será alicerçada em Núcleos Estaduais, formalizados ou não, e em órgãos de deliberação e execução de dimensões nacionais que procurarão desenvolver toda a sorte de atividades em prol dos seus objetivos, tais como eventos, mobilizações, manifestações e notas públicas, ações judiciais, pareceres, multiplicação de informações por meio de publicações, cursos de formação, sites, redes sociais, blogs e outras mídias.

Será também um espaço para a formulação de propostas e soluções para um desenho institucional mais democrático e paritário, mais receptivo à concretização do nosso preâmbulo constitucional. Em todas as suas atividades a ABJD se esforçará para a construção de uma cultura que não mais separe a técnica jurídica do seu compromisso democrático e humanista. Em todos os seus órgãos, conselhos e atividades, a ABJD tem como princípio a proporcionalidade racial e de gênero.

Concluo, portanto, com um chamamento: juristas de todo o Brasil comprometidos com a causa democrática, com os direitos humanos e fundamentais, com uma sociedade igualitária, justa e pacífica, causas que não são exclusividade de nenhum partido ou orientação política, mas que são as bases civilizatórias tão duramente conquistadas após décadas de guerras e ditaduras, filiem-se à ABJD e venham participar do Seminário de Fundação na ABJD na PUC-Rio entre os dias 24 e 26 de maio! Vamos construir juntos algo inédito e indispensável para o bem do Brasil, de um Brasil para todos!

*Membro Fundador da ABJD e da ABJD/RS e professor na Escola de Direito da PUCRS.

Edição: Simone Freire