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Irlanda aprova legalização do aborto em referendo histórico

Mais de dois terços dos irlandeses votam pelo "sim" e pressionam por mudanças na região

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Apesar de tentativa de polarização de partidos conservadores, população irlandesa votou pela legalização do aborto
Apesar de tentativa de polarização de partidos conservadores, população irlandesa votou pela legalização do aborto - William Murphy

Em um referendo histórico, a Irlanda aprovou a legalização do aborto com 66,4% de votos pelo "sim" na última sexta-feira (25). A resposta de mais de dois terços do eleitorado, por si só, mostra a importância do resultado e surpreendeu muitos observadores. Apesar do peso óbvio do eleitorado jovem, o apoio pela campanha do "sim" se refletiu em quase todas as classes, idades (apenas no grupo acima de 65 anos votou pelo "não", enquanto mais de 90% da população entre 18 e 24 anos votou "sim"), nas zonas rurais e urbanas, e em todas as regiões, com exceção de Donegal, que registrou um resultado ligeiramente contrário à tendência.

O referendo agora desencadeará uma mudança na atual legislação irlandesa, que dá direitos iguais para o feto e para a mãe. A lei de 1983,recebeu apoio, na época, dos dois maiores partidos políticos da Irlanda e foi ‘esclarecida’ em 1992 ao permitir o aborto em caso de perigo iminente à vida da mãe, incluindo por suicídio.

Muitos analistas e partidários do "não" esperavam um resultado mais apertado e, principalmente, uma campanha mais polarizadora. Esperava-se que a resposta dos eleitores trouxesse à tona cismas profundos na sociedade irlandesa, à semelhança do que aconteceu com o referendo do Brexit no Reino Unido. De fato, todo o esforço para forçar uma polarização foi feito pela campanha contra a legalização do aborto, com grande apoio dos católicos conservadores dos Estados Unidos – onde há uma comunidade grande e influente de expatriados irlandeses com raízes fortes em seu país de origem. Mas os eleitores irlandeses deram uma resposta decidida e progressista, desafiando com determinação os tradicionalistas, a Igreja Católica e a guinada à direita vista nos últimos tempos em grande parte da Europa e dos EUA.

A vitória da legalização do aborto parece marcar uma transformação social quase sísmica em uma Irlanda antes profundamente conservadora e católica, mas é, na verdade, resultado de mudanças rápidas e profundas que já acontecem há algum tempo na sociedade irlandesa. Apenas alguns anos atrás, a Irlanda foi o primeiro país a legalizar o casamento entre pessoas do mesmo sexo através de um referendo e elegeu o primeiro-ministro assumidamente gay, filho de pai imigrante indiano e de mãe irlandesa branca, Leo Varadkar, que liderou a campanha de seu partido, o Fine Gael, pelo "sim". “Uma revolução silenciosa está acontecendo na Irlanda (...) nas últimas décadas”, afirmou Varadkar. O rival conservador Fianna Fáil foi o único grande partido político a defender o "não", o que deve ter impacto negativo nas próximas eleições gerais do país.

O referendo pela legalização do aborto também se relaciona a diversas outras questões políticas e culturais da República da Irlanda, da Irlanda do Norte e do Reino Unido, assim como da União Europeia de forma mais ampla.

O resultado e o movimento progressista que o antecedeu concentraram atenção na crescente tendência conservadora e reacionária observada principalmente nos países do leste europeu que se tornaram membros da UE mais recentemente, mas também nas nações do norte e do oeste do continente. Com a vitória do “sim”, a Irlanda deixa claro que ainda há uma força social modernizadora que pode superar movimentos políticos retrógrados e se contrapõe ao hipernacionalismo que assombra outras partes da Europa.

Ironicamente, o referendo pela legalização do aborto em uma Irlanda de maioria católica agora coloca grande pressão para a maioria das forças protestantes da Irlanda do Norte aprovarem leis semelhantes, para evitar que as mulheres do país comecem a tentar atravessar a fronteira em busca de uma opção segura e legal no vizinho ao sul.

Por causa disso, as negociações do Brexit envolvendo a questão problemática da fronteira entre a Irlanda do Norte e a república vizinha ao sul, voltam, mais uma vez, para o centro das atenções. Se um improvável Brexit “brando” se definir, até mesmo com fronteiras abertas entre o Reino Unido e a União Europeia, a população da Irlanda do Norte pode não ter muito com que se preocupar. Mas, caso se decida por um Brexit rígido, fechando as fronteiras entre norte e sul na Irlanda, o referendo bem-sucedido pela legalização do aborto na República da Irlanda se colocará como mais um fator complicante para as populações ao norte da fronteira.

Edição: News Click