Jurídico

ABJD: a perspectiva utópica no contexto das convulsões político-jurídicas no Brasil

Trata-se de um processo em construção, uma aspiração positiva de coletivizar a luta

Brasil de Fato |
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Em nossos dias tudo parece estar grávido do seu contrário... As vitórias da técnica parecem ter por preço a perda do caráter... (Marx e Engels)

O Brasil enfrenta um cenário de sombrios prognósticos sobre o futuro político desenhado pelas crises que convulsionam a credibilidade nos órgãos constitucionalmente arquitetados para garantir a plena vitalidade do Estado Democrático de Direito.

Fragmentado socialmente por força de um “golpe de classe com força parlamentar” legitimado pelo ativismo judicial (juristocracia), nosso país sofre abalos na credibilidade perante a comunidade internacional pelos impactos negativos de atos que segregam as liberdades públicas, negam direitos, rapinam o patrimônio público e sequestram utopias, na tentativa insana de sepultar as conquistas e, com isso, soterrar a esperança que animou a parcela oprimida da sociedade com o projeto popular de transformação social, de conquista de espaços de poder pelo povo excluído, de empoderamento dos sujeitos, vivenciado ao longo dos governos populares de Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff.

A conjuntura atual revela a desconstrução do Pacto Federativo, substituído por uma “nova carta política” sem debate popular, sem Poder Constituinte, arquitetada por sujeitos deslegitimados que, apoiados pela mídia hegemônica, usam a sedução do discurso falso da legislação do combate / moralidade / assepsia para solapar as garantias constitucionais, criminalizando ideias, sujeitos, movimentos sociais, implantando um Estado do não-direito, aplicado por um sistema de justiça criminal seletivista, repressivo, aberto à manipulação da informação.

Essa aposta sinistra no retrocesso de conquistas sociais, rubricada pelas elites e suas cavilosas relações com o capital nacional e estrangeiro especulativos, seduz os aparelhos de Estado que deveriam manter sintonia fina com o oposto do jogo político de derrocada dos fundamentos da República do Brasil.

O que se quer com essas reflexões é denunciar o servilismo desses setores definidos como sistema de justiça e segurança, na medida em que usam indevidamente dos poderes deferidos pela Constituição para que cumpram a função de arqueiros dos princípios e direitos ali instituídos, para instrumentalizar processos de desativação desses bens e valores.

Assustam e causam repulsa as alianças de membros do Poder Judiciário e do Ministério Público com institutos medievos, pior ainda, recuperados de modelos primitivos, de recuadas formas de exercer o poder, se comprazendo com o amoldamento desses expedientes a avançadas tecnologias sociais, para promover a espetacularização de Processos, o linchamento ético, moral, político de sujeitos “sob suspeita” do sistema, miidiatizando fatos, pronunciamentos, precipitando formação de opinião sobre acontecimentos e pessoas. Esse infausto plano de entrega do país aos interesses do capital estrangeiro é legitimado por um sistema de justiça criminal que não reconhece fronteiras, não respeita regras e não honra o Pacto Federativo.

Chacoteia ostensivamente princípios constitucionais e o devido processo legal, executando um universo de posturas arrogantes, improbas, quase sempre, agindo com estratégias sorrateiras, quando se esconde sob o manto da legalidade em explicito lawfare, outros momentos, midiatizando e ideologizando, sempre, falas, fatos e decisões.

Essa paisagem de arroubos de instancias jurídicas comprometem a ordem democrática, validam a implantação de um modelo de Estado autoritário, apartado do Texto Político de 1988. Nesse sentido, a inquietação de setores da área jurídica se movimenta e acena para uma intervenção cirúrgica imediata da sociedade, por seus sujeitos individuais e coletivos, na perspectiva de aglutinar forças para a construção de uma proposta contra-hegemônica com ânimo para criar espaços de articulação e mobilização capazes de se instituírem mecanismos de resistência e de defesa da ordem democrática, ameaçada de desmoronamento pelas forças conservadoras que se instalaram no país com a destituição, sem crime de responsabilidade, da presidenta legitimamente eleita.

Nessa perspectiva, e em resposta a essa aflição coletiva diante das violações a princípios e direitos individuais e coletivos das classes trabalhadoras e do povo brasileiro, desponta a Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD), constituída por advogadas/os, juízas/es, procuradores/as, estudantes, professoras/es, servidoras/es do sistema de justiça.

Pensada a partir dos mesmos anseios da Frente Brasil de Juristas pela Democracia (FBJD), a Associação se apresenta como um espaço de debates, de propostas coletivamente ativadas, pactuadas com movimentos, organizações civis, com forças populares, para, além de debates, possibilitar encontros temáticos, se constituir um “cerco democrático” colocando em prática ações de luta social, política e jurídica, em defesa do Estado Democrático de Direito.

A intencionalidade expressa na ABJD aponta em direção a um coletivo plural, constituído por núcleos representativos dos estados brasileiros, com disposição para atuar em defesa dos valores e princípios republicanos, dos direitos humanos, da consolidação do exercício da advocacia na plenitude sua função social, de alimentar projetos políticos de inclusão social. Inspirada em princípios éticos de sentimento de justiça, igualdade, solidariedade, se despe de selos distintivos que denunciem intolerância racial, sexual, religiosa, social.

A ABJD não é um partido político, não se apresenta como um modelo atrativo de outra ordem de advogados, não se enxerga na concepção de fórmula de corrida para o controle de uma partícula de poder. Trata-se de uma utopia de esperança, um processo em construção, uma aspiração positiva de coletivizar a luta para enfrentar o desafio de disputar e resgatar práticas emancipatórias e o Estado Democrático de Direito.

*Marilia Lomanto Veloso foi promotora de Justiça do Estado da Bahia. É professora de Direito Penal e coordenadora do Curso de Direito da Universidade Estadual de Feira de Santana. 
 

Edição: Simone Freire