O contexto do golpe parlamentar que levou Michel Temer (MDB) à Presidência da República se relaciona diretamente com o aumento da violência no campo e nas cidades. Sob o pretexto da crise, o Estado sob comando dos golpistas tem agido de acordo com interesses privados, impulsionando uma agenda que viola sistematicamente os direitos humanos.
A violência, portanto, se manifesta como consequência do aumento do desemprego, do número de pessoas em situação de rua, da precarização de serviços públicos que já não recebiam o devido investimento, como saúde e educação, da informalidade e da exploração já sentidas após a reforma trabalhista, entre outras consequências do atual momento político do país.
Essa é a avaliação de Aércio Barbosa de Oliveira, coordenador da Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (FASE), entidade do Rio de Janeiro.
"Há uma combinação entre impeachment, um aperto cada vez maior sobre as contas públicas para favorecer os grandes agentes econômicos, os grandes bancos, as grande corporações, e ao mesmo tempo há toda uma violência, uma criminalização dos movimentos e pressão sobre os territórios das periferias e favelas onde estão as pessoas mais pobres", aponta.
O corte em programas sociais de distribuição de renda também pesa sobre esse cenário. "O estado, o poder público, se ele é incapaz de assegurar direitos fundamentais e de políticas públicas redistributivas que garantem a qualidade mínima de decência para as pessoas viverem, se não assegura isso, a tendência é a desigualdade aumentar e a violência também", completa.
População negra
Negros, LGBTs e mulheres, por serem populações historicamente vulnerabilizadas, sentiram com mais firmeza o recrudescimento da violência do Estado que se traduz no cotidiano desses grupos.
Regina Santos, ativista dos direitos humanos e membro do Movimento Negro Unificado, entende que a falta de democracia seria um salvo conduto para a prática de tortura e para ação de grupos de extermínio nas periferias. "A normalização dessa violência pós-golpe é algo que aterroriza a gente cotidianamente", diz.
O homem negro jovem é a principal vítima da violência urbana, segundo revelam os dados do Atlas da Violência 2018, que utiliza informações do Ministério da Saúde e foi divulgado nesta terça-feira (5) pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Nos últimos dez anos, entre 2006 e 2016, a taxa homicídios entre a população negra aumentou 23,1% enquanto a taxa entre não-negros caiu 6,8%. De acordo com o levantamento, 71,5% das pessoas que foram assassinadas no país em 2016 eram negras.
LGBT
Quando olhamos para a população LGBT, o quadro pós-golpe é também de aumento das mortes. Segundo levantamento do Grupo Gay da Bahia, os assassinatos cresceram 30% entre 2016 e 2017, passando de 343 para 445.
Os números são bem diferentes dos computados nos anos 2000, quando não passava das 130 mortes. O levantamento é realizado com base em notícias publicadas na imprensa, e, portanto, a subnotificação pode ser grande, já que nem todos os casos chegam aos jornais.
Simmy Larrat, mulher trans, presidenta da Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais e Trans (ABLGT) relembra que houve aumento de 6% nos óbitos de pessoas trans nesse mesmo período. "Para além dos assassinatos, tem as violências comuns que temos notícias e que muitas vezes são promovidas e estimuladas pelos discursos de ódio que as pessoas pregam em seu púlpitos, nas TVs", lamenta.
Larrat aponta ainda a aplicação de força policial desmedida como forma de resolver os problemas da sociedade como um dos fatores da violência endêmica no país.
Mulheres
Maria Júlia Montero, militante da Marcha Mundial de Mulheres, relembra os drásticos cortes orçamentários que as políticas públicas voltadas à população negra, direitos humanos e mulheres sofreram desde 2016. O repasse para essas áreas caiu em 35% por parte do governo federal de acordo com levantamento do site Poder 360 a partir do Sistema Integrado de Administração Financeira (Siafi).
As verbas que eram destinadas especificamente às políticas públicas de combate à violência tiveram um corte de 62%, passando de R$ 42,9 milhões em 2016 para apenas R$ 16,6 milhões em 2017, segundo dados do Portal do Orçamento do Senado Federal. Também houve redução de 54% do orçamento para políticas de incentivo à autonomia das mulheres, de R$ 11,5 milhões para R$ 5,3 milhões.
"Tem um aumento dos casos de violência e ao mesmo tempo um sucateamento das políticas de combate a essa violência", pondera. Para Maria Júlia, assim se inicia um ciclo de violência, pois a mulher sofre violência e, por não ter amparo e proteção, acaba assassinada.
No âmbito desse enxugamento do Estado, pastas importantes como a Secretaria Nacional de Políticas Públicas para as Mulheres foram extintas, e projetos de destaque como o Ligue 180 --canal de denúncias para as vítimas de violência doméstica-- e o programa “Mulher, Viver sem Violência”, por exemplo, foram afetados.
Pesquisa feita pelo DataSenado em parceria com o Observatório da Mulher contra a Violência aponta aumento expressivo no percentual de mulheres que declararam ter sofrido algum tipo de violência doméstica. De acordo com o levantamento, de 2015 para 2017, o índice passou de 18% para 29%. A pesquisa, feita a cada dois anos desde 2005, sempre apontou resultados entre 15% e 19%.
"O aumento do controle dos corpos das mulheres pelos homens, aumento da misoginia e do machismo, isso tem relação com essa ofensiva conservadora ideológica na sociedade que tem tudo a ver com golpe de 2016", ressalta Maria Júlia.
As assassinatos de mulheres também apresentaram aumento desde 2016. Dados compilados pelo site G1 mostram que houve uma progressão de mortes nos três últimos anos: foram 495 mortes identificadas como feminicídio em 2015; 812 em 2016; e 946 em 2017.
Violência no campo
No campo, os reflexos do golpe também se manifestaram na forma de aumento da violência. A última edição do relatório "Conflitos no Campo Brasil", da Comissão Pastoral da Terra, traz índices preocupantes: aumentaram todos os tipos de conflito (atingindo o maior patamar em 32 anos de documentação) e todas as formas de violência no campo em relação a 2015.
O registro de mortos em decorrência chegou a 71 em 2017. Foi a maior progressão de crimes políticos no campo desde 2003. "É a cada cinco dias um assassinato no campo", diz Antonio Canuto, membro fundador e colaborador da CPT.
Canuto conta que o número de conflitos subiu desde o primeiro mandato do ex-presidente Lula. "A média anual do primeiro mandato Lula era de 737 conflitos, caiu para 560 no segundo mandato, subiu para 794 no mandato da Dilma e de 2015 para 2017 a média anual foi de 946 conflitos por terra, casos em que há violência com famílias despejadas, expulsas, famílias sob a mira de pistoleiros", exemplifica.
Márcio Santos, da coordenação nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), conta que a violência é influenciada pela conjuntura do golpe, que viola a constituição e assim toda a base do direito legal. "O golpe fez com que grande parte dos latifundiários que dominam as terras se vissem na liberdade de cometer crimes e de intensificar a violência no campo como forma de dominação dos seus interesses, como forma de dominação de classe", protesta.
A impunidade, segundo ele, vai permitindo a existência desse cenário. "A questão da violência só será resolvida com reforma agrária, que é a bandeira da paz para o campo brasileiro", conclui Santos.
Outra variável que influencia a violência no campo, segundo o coordenador do MST, é de ordem estrutural, reflexo das desigualdades que geram violências: hoje, 2% dos proprietários controlam cerca 60% das terras do Brasil.
Edição: Diego Sartorato