Armas e economia

O que está por trás e qual o futuro da cúpula entre EUA e Coreia do Norte?

Em entrevista, o especialista Marcelo Zero faz uma análise geopolítica da reunião entre Trump e Kim

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

Ouça o áudio:

Foi a primeira vez que os líderes dos dois países se encontraram
Foi a primeira vez que os líderes dos dois países se encontraram - Shealah Craighead/Casa Branca

Os presidentes da Coreia do Norte e dos Estados Unidos, Kim Jong-un e Donald Trump, realizaram um encontro histórico nesta semana, em Singapura, no Sudeste asiático. Foi a primeira vez que as lideranças destas nações se encontraram, após um longo período marcado por hostilidades, idas e vindas diplomáticas, tensão e distância.

Como resultado, emitiram uma declaração conjunta prometendo estabelecer relações diplomáticas; trabalhar pela paz na Península Coreana; ratificar a Declaração de Panmunjeom, assinada entre as duas Coreias, que prevê a desnuclearização gradual da região. Além disso, o país asiático prometeu recuperar e devolver aos EUA os restos mortais dos soldados norte-americanos mortos no país durante a Guerra da Coreia (1950-1953).

A falta de prazos e compromissos específicos lança dúvidas sobre a validade e o futuro da declaração. Para entender melhor essa situação, os interesses de cada país antes e depois do encontro e o que isso significa em termos geopolíticos, o Brasil de Fato conversou com Marcelo Zero, sociólogo com especialização em Relações Internacionais.

Para ele, que também é assessor da bancada do Partido dos Trabalhadores no Senado para Relações Exteriores e Defesa, o resultado produzido pelo encontro, "é uma mera declaração que, para se concretizar, demandará muitos passos concretos".

Zero destaca ainda que quem teve um papel preponderante para este encontro foi o presidente sul-coreano, Moon Jae-in, que já havia dado passos de diálogo com o governo da Coreia do Norte, inclusive, a declaração final do encontro entre os líderes das Coreias guarda muitas semelhanças com a apresentada recentemente, com os EUA.

"Trump, de certa forma, seguiu na esteira do novo presidente da Coreia do Sul. [...] E Trump não queria ficar isolado depois dessa atitude do presidente da Coreia do Sul", declara o analista, complementando que isso ocorre após "esse vexame que os EUA deram na reunião do G7, quando ele concordou com as propostas pró-liberação comercial no G7, mas acabou se retirando antes do final".

Confira a entrevista:

Brasil de Fato: Qual a sua avaliação sobre esse encontro. Ele é cortina de fumaça? É uma atuação? Ou tem alguma coisa de substancial?

Marcelo Zero: Em relação ao status quo de antes, é um avanço. Porque é bom lembrar que em 19 de setembro no ano passado, Trump disse, em discurso feito na Assembleia Geral da ONU, que possivelmente a única solução seria destruir totalmente a Coreia do Norte, em caso de que a Coreia persistisse em sua postura agressiva em relação aos Estados Unidos, ao Japão, etc. Ele também desautorizou o Secretário de Estado dele, Rex Tillerson, que tentou abrir um canal de negociação com Kim Jong-un pelo Twitter, pedindo que ele parasse de perder tempo com o "Little rocket man" [Homenzinho dos Foguetes]. Havia uma situação muito tensa entre Trump e a Coreia do Norte, com ameaças claras tanto de um lado, como do outro, de modo que esse encontro representa um avanço diplomático significativo.

Agora, é necessário considerar que o que saiu desse encontro foi apenas uma declaração vaga, não foi feito nenhum acordo formal, não foi estabelecido nenhum prazo para que as intenções fossem cumpridas, ou seja, isso se trata apenas de uma mera declaração de boas intenções, de um lado e do outro. Mas, pelo menos, se abriu oficialmente um canal de negociação, Trump se encontrou com Kim Jong-un, se sentaram em igualdade de condições e emitiram uma declaração conjunta.

Do que depende, do ponto vista diplomático, o avanço dessa declaração?

Vai depender de uma série de circunstâncias, porque houve uma promessa, houve uma intenção de que haveria uma desnuclearização total por parte do regime da Coreia do Norte, mas é evidente que os coreanos do norte não vão fazer isso sem contrapartidas muito claras, muito concretas por parte dos Estados Unidos. O governo da Coreia do Norte já vem tentando há muito tempo estabelecer um tratado de não-agressão com os Estados Unidos, desde o final da década de 1990 e nunca tinham conseguido, mesmo com o apoio da China e da Rússia.

E não faltam motivos para a Coreia do Norte desconfiar dos EUA...

A Coreia do Norte tem motivos fortes para desconfiar dos Estados Unidos e ter uma postura agressiva. A guerra da Coreia matou mais de 2,5 milhões de coreanos, quando a Coreia tinha, na realidade, apenas cerca de 20 milhões de habitantes, ou seja, mais de 10% da população coreana, especialmente da Coreia do Norte, morreu naquela guerra. Além disso, das 22 maiores cidades da Coreia do Norte, 18 foram reduzidas a cinzas por bombardeios constantes.

O general [Douglas] MacArthur, que era o comandante das tropas norte-americanas na Coreia, deu um depoimento no Congresso Nacional dos EUA, em maio de 1951, no qual afirmou que nunca havia visto tanta destruição, que ele tinha chegado até a vomitar, porque as vítimas não eram apenas soldados, eram civis, a maior parte das vítimas, 1,6 milhão, foi de civis, mulheres, crianças, etc. Se a guerra se prolongasse, disse MacArthur, haveria o maior massacre da história da humanidade. Foi uma coisa muito feia, um conflito muito pesado, que provocou uma destruição massiva, principalmente da Coreia do Norte, e isso explica um pouco essas circunstancias, essa história explica um pouco a política belicista e confrontadora da Coreia do Norte em relação aos Estados Unidos.

Tropas americanas adentram a Coreia do Norte durante a Guerra da Coreia. (Foto: Wikimedia/Commons)

 

Além disso, essa guerra nunca terminou formalmente, foi feito um armistício, um cessar-fogo, mas nunca houve um tratado de paz assinado entre as partes para por fim à guerra. Formalmente a Coreia do Sul ainda está em guerra com a Coreia do Norte. Os Estados Unidos, juntamente com a Coreia do Sul, fazem todos os anos grandes exercícios militares na península, e a Coreia do Norte vê isso, com razão, como uma provocação. Normalmente, esses grandes exercícios militares coincidem com a colheita do arroz e isso prejudica muito economicamente a Coreia do Norte, porque parte da colheita é feita com o auxílio das tropas, então eles têm que deslocar tropas que participariam da colheita de arroz para ficarem de prontidão por causa desses exercícios militares.

E você considera que isso foi uma das razões que motivou Pyongyang a adotar uma política nuclear?

Sem dúvida que uma das razões pelas quais a Coreia do Norte se nuclearizou foi justamente por causa dessa provocação constante e pela preocupação que os Estados Unidos poderiam, em algum momento, tentar invadir a Coreia do Norte e eles não poderiam resistir a uma invasão desse tipo simplesmente com forças convencionais, então, eles adotaram uma politica, eles chamavam de Linha de Byungjin, que consistia em gerar capacidade nuclear e, ao mesmo tempo, tentar melhorar o nível de vida da população, porque assim as forças convencionais da Coreia do Norte poderiam trabalhar pelo desenvolvimento do país, captar mais a colheita do arroz, etc.

Essa política, em perspectiva histórica, deu certo. Eles conseguiram desenvolver seus artefatos nucleares e mísseis capazes de levar ogivas nucleares não apenas até a Coreia do Sul, até o Japão, mas também possivelmente – com os últimos avanços que eles fizeram –, até os Estados Unidos, até o território norte-americano.

A que você atribui essa reviravolta dos últimos meses em relação a esse clima tenso e que permitiu a realização do encontro?

A reviravolta que aconteceu recentemente foi motivada – e isso não tem sido muito falado – pela atitude do novo presidente da Coréia do Sul, Moon Jae-in, que, independentemente dos Estados Unidos, resolveu conversar com Kim Jong-un e fazer a declaração de Panmunjeom, que é muito parecida com essa declaração feita agora com os Estados Unidos, quer dizer, se comprometem a ter uma nova política, desnuclearizar a península coreana, etc.

Então, Trump, de certa forma, seguiu na esteira do novo presidente da Coreia do Sul que, ignorando os falcões norte-americanos e japoneses, resolveu estabelecer uma atitude mais positiva em relação à desmilitarização da Coreia e a uma paz permanente na Península Coreana. O que é um desejo da população coreana, eles sonham com a reunificação do país, afinal, essa divisão entre as Coreias é totalmente artificial, separa famílias que conviveram centenas de anos juntas e que hoje vivem separadas. E Trump não queria ficar isolado depois dessa atitude do presidente da Coreia do Sul.

Além disso, ele precisa apresentar alguma realização no campo diplomático, porque na realidade a atuação dele nessa área tem sido muito deficiente e criticada internamente nos EUA. O exemplo mais recente foi esse fracasso, esse vexame que os EUA deram na reunião do G7, quando ele concordou com as propostas pró-liberação comercial no G7, mas acabou se retirando antes do final e depois, através do Twitter, começou a criticar todos, de forma muito descortês ao anfitrião da reunião. De modo que ele estava precisando apresentar algum resultado nesse campo e resolveu aproveitar essa oportunidade e fazer essa reunião que acabou produzindo essa declaração. Mas é como eu disse: é uma mera declaração que, para se concretizar, demandará muitos passos concretos.

Quais seriam esses passos?

Bom, é evidente que a Coreia do Norte, depois de todo esse grande esforço que ela fez pra se nuclearizar e fazer mísseis, não vai se desfazer de seu arsenal tanto de mísseis quanto de material nuclear e outras armas, armas químicas inclusive, sem se assegurar que os EUA realmente vão cumprir sua palavra de não-agressão, respeitar o regime, estabelecer uma relação respeitosa e cooperativa com a Coreia do Norte.

Eles precisam também de demonstrações de Japão, China e Coreia do Sul também ao estabelecerem uma paz e uma segurança definitiva, cooperação, levantarem as sanções econômicas, estabelecer comércio normal com a Coreia do Norte, enfim, faltam muitos passos concretos para que a Coreia de Norte concorde em se desfazer do seu grande "às" geopolítico, que são suas armas nucleares e seus mísseis.

As armas nucleares foram, inclusive, prioridade econômica do país e o tema que enfureceu Kim Jong-un quando altos oficiais dos EUA usaram o exemplo do processo da Líbia de desnuclearização, o que anos depois redundou em um golpe de Estado apoiado pelos EUA.
Exatamente. Eles sabem que a questão é muito delicada, que pode haver uma reviravolta em tudo isso que aconteceu. Os EUA podem voltar atrás, acusar a Coreia do Norte de qualquer coisa, voltarem a aplicar sanções, ampliar sanções, enfim, eles sabem que há um equilíbrio delicado.

Talvez eles tentem estabelecer uma política radical de desnuclearização sem apresentar nenhuma contrapartida efetiva, quer dizer, se as potências encostarem a Coreia do Norte na parede, exigirem que eles se desfaçam de todas as armas, aceitem todas as inspeções feitas quando eles quiserem fazer, aonde eles quiserem fazer, para depois, enfim, se comprometerem com algum gesto positivo em relação a Coreia do Norte. Eu duvido muito que os coreanos do norte aceitem esse tipo de imposição, até mesmo porque eles tem uma carta na manga que são as armas.

Coreia do Norte precisará de garantias para abrir mão de seu aparato nuclear. (Foto: Stephanie Chasez/Casa Branca)

 

O futuro desse acordo depende muito dos líderes, notórios por terem temperamentos volúveis...

Exatamente, então o Trump pode ter feito isso apenas para ganhar alguma popularidade, porque ele tá com uma popularidade baixa. Nos EUA, os presidentes com o tempo de mandato que ele tem geralmente têm uma porcentagem de 57% de aprovação e ele está com cerca de 40%. Então, pode ser que isso tenha sido apenas uma jogada de marketing político para as próximas eleições legislativas nos EUA, pode ser que não, pode ser que ele leve a sério e tome iniciativas concretas para fazer essa declaração vingar. Apesar de ter muitas variáveis em relação ao estado anterior de franca hostilidade representa, sim, um avanço, pelo menos se criou uma expectativa e pouca gente apostava nela.

O que a Coreia do Norte tem a ganhar com esse acordo?

O que eles têm a ganhar, obviamente, seria a derrubada das sanções econômicas. Isso aliviaria muito a situação econômica na Coreia do Norte e saem de seu isolamento diplomático, porque o grande aliado deles é a China e agora voltando, digamos assim, a uma relação de normalidade com a Coreia do Sul e os EUA, eles saem do isolamento político diplomático, isso para a segurança interna é muito importante.
São muitas idas e vindas na relação Coreia do Norte e EUA, e com o que aconteceu em Panmunjeom há mais substância para se pensar em um futuro dessa relação e o encontro inédito do encontro das lideranças, mas isso também está no esteio do Trump ter se retirado do acordo nuclear com o Irã.

Como você vê a possibilidade dessa declaração ir em frente?

Em se tratando do Trump, tudo é uma incógnita, porque ele tem um comportamento errático em relação a tudo, o exemplo do que aconteceu no G7 é característico disso. Então, tudo vai depender muito da resposta interna que ele conseguir. Se essa declaração for bem avaliada, se ele achar que está colhendo frutos políticos internos, é provável que ele tente levar adiante. Agora, se ele achar que não tá produzindo nenhum efeito positivo, ele pode muito bem, de uma hora pra outra, esquecer da declaração e começar novamente a atacar a Coreia do Norte, dizer que ela não tem intenção de cumprir com a declaração e voltar tudo a estaca zero de novo.

Em um primeiro momento, ele deve tentar manter, apresentando como uma grande conquista sua, de modo que acredito que não aconteça nada de negativo nos próximos meses, mas depois disso é difícil fazer uma previsão precisa se ele vai ou não honrar esses compromissos.

Edição: Vivian Neves Fernandes