Rio de Janeiro

JUNHO 2013

Análise | Um encontro entre vários junhos: sínteses na esquerda, cinco anos depois

"A dificuldade em entender as nuances e ambivalências do período desorienta tanto a crítica como a práxis"

Rio de Janeiro (RJ) |
Há cinco anos intelectuais, ativistas, partidos, coletivos e movimentos contemplam aquele ciclo de protestos qual fosse uma esfinge
Há cinco anos intelectuais, ativistas, partidos, coletivos e movimentos contemplam aquele ciclo de protestos qual fosse uma esfinge - Reprodução

Há cinco anos, acontecia junho de 2013. Desde então, intelectuais, ativistas, partidos, coletivos e movimentos contemplam aquele ciclo de protestos qual fosse uma esfinge. A dificuldade em entender as nuances e ambivalências do período desorienta tanto a crítica como a práxis. O nevoeiro que paira sobre o passado recente torna mais difícil o enfrentamento do tempo atual, em que um regime se fecha, a economia se enreda em uma versão paroxística de neoliberalismo e a esquerda assiste tantalizada à crescente revolta social, sem vê-la tornar-se organização para a transformação política e econômica.

As brigas de família da amplíssima esquerda brasileira e as querelas acadêmicas da intelectualidade engajada têm encontrado dificuldade em lidar com os eventos de 2013 de um modo que não se esgote como defesa de algum entendimento petrificado. “Prenúncio do golpe”, “fim da hegemonia das burocracias partidárias”, “levante por direitos sociais e contra a corrupção”, “alvorecer de uma esquerda radicalmente democrática”, “despertar da direita social” e uma torrente incontável de sínteses parecem interromper os debates, antes de impulsioná-los para um ponto em que alcancemos novas e mais eficazes práticas insurgentes.

Junho não pode ser a prova que demonstra a correção de perspectivas prévias. Uma antiga técnica astronômica talvez ajude em uma leitura que destrave as apreensões sectárias daquele ciclo de confronto político. Trata-se da ideia de paralaxe: um objeto estelar é visto de um modo diferente, a depender de onde a observadora se encontra. Da comparação entre as diferentes perspectivas, é possível medir a distância que estamos do objeto e, assim, conhecê-lo melhor. Um diálogo, antes de um enfrentamento, sobre as distintas leituras de junho, permite uma compreensão mais clara do processo e, sobretudo, um inventário dos acordos entre ativistas que, como na música de Milanés, são irmãos que se olham como estranhos sob o passar dos anos. Três exemplos, a seguir, ilustram este argumento.

A tese associada ao campo autonomista, a criticar a burocratização da esquerda que governou o país entre 2003 e 2016, merece ser levada a sério. Igualmente, a memória de que a fiscalidade neoliberal ancorada em recrudescimento repressivo integrou o modo petista de governar e o despojou de suas bases sociais quando foram mais necessárias é indispensável para quem visa à derrota do golpe cometido em 2016.

O argumento da esquerda socialista organizada em partidos, segundo o qual é inoperante uma luta sem disciplina e focada em individualidades, precisa integrar o rol de análises sobre as razões de inúmeros reveses desde 2013. É sempre necessário lembrar, por exemplo, que o MPL (Movimento Passe Livre) não esteve nas ruas em 20 de junho de 2013 em São Paulo, data do protesto de maior dimensão, sob o argumento de que a luta referente ao preço da passagem de ônibus obtivera uma vitória parcial. Partidos, ensina a história, impulsionam as múltiplas vozes de diferentes coletividades oprimidas, em direção a uma luta unitária, que dispensa recessos ao encadear a vitória parcial de hoje no apoio solidário aos sonhos das outras, que também serão vitórias amanhã.

A esquerda petista e suas apoiadoras também têm um ponto que merece ser discutido com atenção. A crítica ao Estado, à dissipação da emancipação em cálculos sobre políticas públicas e à transmutação de ativistas em autômatas da máquina estatal é pertinente, por um lado. Não deve, contudo, enredar-se em demasiada abstração, a ponto de entender que governos eleitos ou golpistas são equiparáveis; que políticas distributivas e tetos orçamentários não se diferenciam; ou que a institucionalidade, mais ou menos aberta à participação social, é sempre inimiga. Disputar a democracia formal e atentar-se para a defesa do binômio liberal democracia/direitos humanos é, frequentemente, condição de sobrevivência das populações oprimidas.

O filósofo grego Costas Douzinas conta que, de volta ao seu país em meio aos protestos de 2011, após longo período radicado na Inglaterra, ouvia de vários grupos (Syriza, KKE, Antarsya e etc) uma mesma irresignação contra as políticas de austeridade impostas ao país pela Troika (BCE, FMI e CE). Ao perguntar como, estando todas tão certas quanto às razões para lutarem, não o faziam em unidade, ouvia respostas a objetarem: “mas você não sabe como aquele grupo estava errado em 1986 ou 1988”. Da tragédia grega é preciso extrair lições e sugerir-se que múltiplas interpretações sobre junho 2013 podem compor-se harmonicamente na orquestra de uma única luta democrática, anticapitalista e antiburocrática, antes de prosseguirem nesta cacofônica disputa entre sentidos e significados corretos em suas perspectivas, mas precários em suas incompletudes.

*Francisco Tavares é professor do curso de Ciências Sociais da Universidade Federal de Goiás (UFG)

Edição: Jaqueline Deister