Recalque em Curitiba

Promotor que persegue casamentos LGBTs tentou anular 112 uniões em 5 anos

Desde que o CNJ garantiu o direito ao casamento homoafetivo, em 2013, Limongi pede sistematicamente a impugnação

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

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Adrieli e Anelise no dia da cerimônia de seu casamento
Adrieli e Anelise no dia da cerimônia de seu casamento - Foto: Rodrigo Santos Fotografia

No início desta semana, enquanto estudava para seu mestrado, a engenheira civil Adrieli Roberta Nunes Schons foi surpreendida por uma carta de intimação de anulação de seu casamento com a médica Anelise Alves Nunes Schons, que ocorreu em dezembro do ano passado.

O recurso foi pedido pelo promotor Henrique Limongi, da 13ª Promotoria da Comarca de Florianópolis. Desde 2013, de acordo com dados do Ministério Público de Santa Catarina, ele já tentou impugnar a habilitação de casamento de 112 casais.

"Foi bem frustrante, eu fiquei sem chão, sem saber o que fazer. A gente pensou que esse processo já havia terminado. Ele já havia tentado negar nossa habilitação para casar e a gente brigou e conseguiu a habilitação de uma juíza em primeira instância uma semana e meia antes da cerimônia que estava marcada. Então, depois de tudo isso, foi meio chocante saber que ele ainda está insistindo em negar esse direito para a gente", afirmou.

O casamento civil entre casais homoafetivos foi garantido pela Resolução 175, publicada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em 14 de maio 2013.

Pela norma, juízes e tabeliães ficam proibidos de se recusarem a registrar a união. Em 2011, o Supremo Tribunal Federal já havia reconhecido a união estável entre casais do mesmo sexo como entidade familiar, e, em 10 de maio de 2017, o STF decidiu equiparar os direitos a herança de uma união estável homossexual com a de um casamento civil.

Inconstitucional

O Ministério Público tem a função de fiscalizar a habilitação de casamentos, e para Limongi, esses casamentos são inconstitucionais. Ele alega que a Constituição Federal de 1988 permite apenas esse tipo de união entre um homem e uma mulher. Já a advogada do caso de Adrieli e Anelise, Camila Wessler Hinckel, questiona a constitucionalidade do próprio argumento de Limongi.

"Juridicamente falando, o que ele pede é totalmente inconstitucional. O argumento que ele usa é que essa norma não pode se sobrepor à lei, mas não existe uma lei que proíbe o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Então se não tem lei que as impeça de se casar, porque não acontecer? Esse é o entendimento do próprio STF", explicou. Hinckel entrará com uma contrarrazão na segunda instância contra o recurso de Limongi.

Até agora, os casais homossexuais conseguiram superar as impugnações feitas por Limongi. A conduta do promotor já foi questionada por meio de uma reclamação disciplinar ao Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), a pedido da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), mas o caso foi arquivado, uma vez que ficou entendido que Limongi agiu dentro dos limites da sua independência funcional, princípio que rege a promotoria no Brasil.

De acordo com Margareth da Silva Hernandes, presidenta da Comissão Especial do Direito Homoafetivo e Gênero da OAB de Santa Catarina, o órgão pretende se posicionar novamente contra as ações do promotor. Hernandes explica que a OAB irá emitir, nesta sexta-feira (22), uma nota de repúdio contra Limongi, e pretende tentar impugnar o recurso do promotor.

"Ele não vai ter sucesso, o tribunal não vai acatar seu recurso. Mas ele acaba prejudicando as pessoas, que vão ter que contratar advogado, é algo desagradável. No fundo, ele é um preconceituoso, um homofóbico, não aceita e está fazendo tudo isso. É uma vergonha", opinou.

Insistência

De acordo com dados do Ministério Público, já foram 21 recursos de anulação de casamento homoafetivo interpostos pelo promotor em Florianópolis entre 2015 e 2018.

Por telefone, a assessoria de imprensa do órgão destacou que Limongi pretende recorrer a todos os casamentos entre pessoas do mesmo sexo que foram liberados por juízes após sua própria impugnação, e que os casais que ainda não receberam a intimação do recurso provavelmente tiveram suas habilitações analisadas por outros promotores da comarca.

A administradora Flávia Cristina Brandão Kfuri Borba, e sua esposa, a psicoterapeuta Paula Viega Floripes, são parte dessa estatística.

Amigas há anos, elas iniciaram um relacionamento amoroso em 2013, e se casaram em julho do ano passado. Apesar de terem tido a habilitação do cartório impugnada por Limongi na época, elas também nunca suspeitaram que o promotor daria seguimento ao processo após a liberação do juiz.

Fávia e Paula durante a cerimônia de seu casamento

"Em abril, a Oficial de Justiça entrou em contato primeiro com a minha mãe, dizendo que tinha uma intimação para mim. É uma sensação que não vou saber descrever. Fiquei muito nervosa, liguei para a Paula chorando. Eu nunca tinha visto isso acontecer, você quer casar, é um direito seu, e vem alguém querer cancelar seu casamento. Um momento tão sonhado e chega na hora tem esse balde de água fria, você se sente completamente impotente", afirmou.

Flávia conta que desde que descobriu o caso de Adrieli vem tentando reunir a maior quantidade de pessoas prejudicadas pelo promotor, na tentativa de conseguir maior apoio social. Nesse movimento de divulgação de suas histórias, Adrieli conheceu o professor Fábio Alexandre Frutuoso, que também teve seu casamento, com o vendedor Sidnei Moraes, impugnado pelo promotor em 2014.  

Fábio afirma que ele próprio entrou com recurso no Tribunal de Justiça contra Limongi na época, e venceu contra o promotor na primeira instância. Mesmo assim, ele destaca os prejuízos que teve por conta da impugnação de Limongi.

"Eu já tinha feito todos os convites, já tinha mandado para todas as pessoas, já tinha feito reservas, e aí veio a negativa do promotor. Todos os meus planos foram por água abaixo. Eu tive um prejuízo de R$ 3 mil, o que foi pouco perto de outras pessoas que tiveram prejuízos de R$ 30, R$ 40 mil. Mas meu maior prejuízo mesmo foi emocional, porque a gente fica destruído, sabendo que existe uma lei, o país todo comemorando ela, você se sente amparado e igual às outras pessoas, e aí acontece isso. Hoje tenho um orgulho enorme da minha certidão de casamento, mas vejo muita gente passar um sufoco enorme como a Adrieli está passando", lamentou.

Em nota, o promotor Henrique Limongi destacou que fala apenas por meio dos autos do processo, e não concede entrevistas ou defende seus pareceres. Ele afirma que é devoto do Estado de Direito e apenas presta contas à Constituição e às leis.

Na próxima semana, o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) pretende formalizar uma ação contra o promotor por improbidade administrativa, por meio do entendimento de que ele "está continuamente desperdiçando recursos para perseguir cidadãos homossexuais", de acordo com o Presidente do partido em Florianópolis, Leonel Camasão.

Edição: Diego Sartorato