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Domenico Losurdo, intelectual marxista italiano, morreu nesta quinta-feira (28)

Em entrevista inédita concedida ao Brasil de Fato, Domenico versou sobre luta de classes

Brasil de Fato | Brasília (DF) |
Losurdo concedeu entrevista ao Brasil de Fato em 2015
Losurdo concedeu entrevista ao Brasil de Fato em 2015 - R. Tatemoto/BdF

Domenico Losurdo, destacado intelectual italiano, faleceu na manhã desta quinta-feira (28) aos 77 anos. A família do pensador divulgou mensagem afirmando que a morte ocorreu em decorrência de “uma doença incurável recentemente descoberta”.

Pensador marxista herdeiro da tradição inaugurada por Antonio Gramsci, Losurdo não poupava polêmicas com a própria esquerda. Sua última obra - “O Marxismo Ocidental: como nasceu, como morreu, como pode renascer” -  é um dos grandes exemplos de sua agudeza crítica. 

Em 2015, Domenico concedeu uma entrevista ao Brasil de Fato por ocasião do lançamento de “A Luta de Classes: uma história política e filosófica”. A conversa não foi publicada. Como homenagem à sua vida e à sua produção teórica, resgatamos parte do material inédito. 

Brasil de Fato: Você recentemente publicou uma obra em inglês sobre o revisionismo histórico (Edição brasileira: Guerra e Revolução, de 2017) qual a relação desse tema com “A Luta de Classes”?

Domenico Losurdo: Há uma continuidade entre meu livro contra o revisionismo histórico e esse novo livro sobre a luta de classes. O revisionismo tentou demonizar todas as experiências revolucionárias, incluindo as revoluções anti-coloniais. Se nós considerarmos o século 20 em geral, é o século no qual as grandes revoluções anti-coloniais ocorreram. Imediatamente antes da Revolução de Outubro o mundo era controlado pela propriedade privada, pelos poderes capitalistas e imperialistas. Todo o planeta está subjugado. A África e a Índia eram colônias, a China, uma semi-colônia. A América Latina está sob a Doutrina Monroe. Nós podemos dizer que as revoluções anti-coloniais mudaram radicalmente o cenário mundial. Isso é negado pelo revisionismo histórico. Nesse novo livro eu defendo que a luta anti-colonial é uma das formas da luta de classes. Nesse sentido, há continuidade entre esses dois tópicos.

Essa postura revisionista afeta até mesmo a análise das revoluções liberais, não?

O revisionismo tenta demonizar até mesmo a Revolução Francesa. Isso é perceptível, por exemplo, no pensamento de Hannah Arendt, que fez um contraposição entre a Revolução Americana e a Francesa. A primeira seria boa e a segunda não. Qual é a minha posição? A Revolução Americana nunca lutou contra a escravidão, pelo contrário, a escravidão recebeu um grande impulso. Por outro lado, a Revolução Francesa desencadeou a Revolução em São Domingos [Haiti] contra a escravidão. Tudo que há na Revolução Francesa que possa evocar a Revolução Russa e as lutas anti-coloniais é demonizado pela burguesia. Há uma certa consistência nessa postura da burguesia. A Revolução Francesa é má vista porque significou, em São Domingos, a revolução dos escravos contra o colonialismo. Toussaint L'Ouverture era o líder da revolta dos escravos, chamado de o jacobino negro. Foi a primeira vez que uma revolução aboliu a escravidão. 

Qual a relação entre as lutas anti-coloniais e a consolidação da democracia?

Nós não podemos entender a democracia em seu sentido verdadeiro se não considerarmos a relação entre povo e raça. Onde uma raça pode escravizar outra, não pode haver democracia. 

Em seu novo livro, você fala em diversas expressões da luta de classes, mais especificamente três. Como se dá isso?

Nós devemos analisar de forma cuidadosa o significado da luta de classes para Marx e Engels. Para eles, no alemão, essa expressão estava declinada no plural: não uma há uma luta de classe, mas três formas de luta de classes. 

Marx, por exemplo, escreveu uma obra famosa sobre a luta de classes na França. No plural “lutas de classes”. Todos sabem da luta entre o proletariado e a burguesia, entre os setores populares e os exploradores, mas isso é apenas uma forma. Marx afirma “quem não é capaz de entender a exploração de uma nação por outra é incapaz de entender a exploração dentro de um determinado país”. Por exemplo, quando Marx escreve sobre a Irlanda, que naquele tempo era uma colônia da Inglaterra, os britânicos exploravam sistematicamente todo o povo irlandês. Nesse caso, Marx disse “a questão social se expressa como questão nacional”. Para lutar contra a expropriação, o alvo dessa luta eram os colonizadores ingleses.

Nós temos outros exemplos. É impossível entender o século 20 sem considerar qual era o objetivo de Hitler. Ele tentou radicalizar a tradição colonial através da tentativa de reintroduzir a escravidão no leste europeu. Ele afirmou diversas vezes: “nós precisamos de escravos”. Esses escravos estavam na União Soviética e no leste europeu. Os japoneses tentaram a mesma coisa com o imperialismo na Ásia, principalmente contra a China. Nessa ocasião, em 1938, Mao escreveu: “nessas circunstâncias há identidade entre luta de classes e luta anti-imperialista”. Mao estava certo!

A luta de resistência e emancipação nacional do Partido Comunista Chinês era, ao mesmo, um grande exemplo de luta de classes. A luta dos chineses e dos soviéticos foram dois grandes exemplos da luta de classes não só no século 20, mas também de toda a história da humanidade, junto com a luta dos jacobinos negros.

E a terceira?

Para esse caso, eu cito Engels: “a primeira forma de opressão é a opressão que tem sido historicamente exercida sobre as mulheres”. As mulheres foram submetidas à escravidão doméstica na família tradicional. Nós temos divisão injusta do trabalho no plano internacional, no plano nacional e dentro da família patriarcal. Nós temos três formas de exploração e três formas de luta contra a opressão, a exploração e em prol da emancipação.  A grandeza do marxismo e do movimento comunista reside na sua capacidade de unir essas três formas.

E como essas três formas se articulam?

Essas três formas estão articuladas no sentido de que toda situação concreta contém essas formas de luta de classe, mas elas podem inclusive estar em contradição uma com a outra. Por exemplo, no século 19, o sufrágio se limitava aos homens brancos. Naquele contexto, se considerarmos uma mulher da classe dominante, ela fazia parte da exploração do proletariado, mas, por outro lado, era oprimida dentro da família patriarcal. Não é tão fácil unificar essas formas em um processo unitário de emancipação. Os melhores períodos do movimento comunista foram justamente aqueles nos quais ele foi capaz de unir essas três formas.

Na minha formulação, essas três formas estão evoluindo continuamente através da história. Em cada período histórico essas formas assumem uma configuração diferente.  Se falarmos apenas em “identidade” há a noção de essência e, de certa forma, eternidade. Se nós consideramos Auschwitz, os judeus sendo massacrados. Fica claro que a luta principal, nesse caso, era entre uma raça que estava sendo escravizada e a raça proprietária. Nós não poderíamos dizer que o conflito de gênero era o mais importante.  O conflito entre proletariado e burguesia não era o mais importante. Em cada situação concreta uma luta é  mais importante, assim, a análise de cada momento é muito importante. 

Há sempre uma crítica aos marxistas de que estes desconsideram os direitos humanos em processos concretos. Como responde a esse questionamento?

Nós, marxistas e comunistas, devemos levar os direitos humanos a sério, mas isso não significa que eu concorde com a burguesia. Observando a história do século 20, nós podemos fazer uma pergunta: antes da Revolução de Outubro a democracia estava concluída? Minha resposta é: não. A Revolução Russa deu uma grande contribuição para a realização da democracia e a concretização dos direitos humanos. Sendo concreto, para falar de democracia, nós temos que ter como pressuposto, ao menos, o sufrágio universal, independente de raça, riqueza e gênero. É a definição mínima de democracia. Antes da Revolução de Outubro, nós tínhamos essas três grandes discriminações nas sociedades burguesas. Até mesmo na Grã-Bretanha nem todo mundo podia votar, aqueles que nada tinham não podiam votar. Outro exemplo, na Itália, o Senado não era eleito, nele só estavam presentes a nobreza e a grande burguesia. As mulheres não podiam votar na América. Foi a Revolução Russa que introduziu ideia de direitos políticos, ativos e passivos, para as mulheres. 

Em termos globais, as colônias não tinham a possibilidade de formar Estados soberanos. Até mesmo  em um país como os EUA, os negros não tinham a possibilidade de votar. Essas três discriminações, que são formas profundas de violação dos direitos humanos, só foram abolidas em razão do movimento comunista. Isso é um fato.

Outra consideração é que até mesmo o mais esclarecido do teóricos liberais percebeu que o Estado de Direito não depende apenas da vontade. Hamilton, um dos pais fundadores, disse “sem segurança geopolítica é impossível estabelecer um Estado de direito”.  Segundo ele, se há o risco de invasão, esse país não deve se permitir a introdução das liberdades do Estado de direito. Assim, o Ocidente entra em auto-contradição: diz ser  defensor da democracia e dos direitos humanos enquanto faz ameaças de bombardeio, invasão e destruição a outros países. É o Ocidente que torna a democracia impossível. 

Esse é um assunto importante, então eu vou citar outro autor liberal, Adam Smith. Em uma obra chamada "Lições de Jurisprudência, da segunda metade do século 18", ele faz uma pergunta: como podemos abolir a escravidão? Ele afirma que um governo livre é incapaz de abolir a escravidão. Isto porque, segundo ele, “as instituições livres de governo são monopolizadas pelos proprietários de escravos.” Nesse caso, citando Smith, “um verdadeiro amigo da humanidade deve apoiar um governo despótico para abolir a escravidão”. É  possível se contrapor à burguesia citando autores burgueses.

Edição: Nina Fideles