CHIFRE DA ÁFRICA

Tratado de paz acaba com quase 20 anos de conflito entre Eritreia e Etiópia

População eritreia celebrou a normalização das relações diplomáticas e restabelecimento da comunicação com país vizinho

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Líderes dos países vizinhos se encontraram para assinar tratado de paz histórico e restabelecer relações diplomáticas
Líderes dos países vizinhos se encontraram para assinar tratado de paz histórico e restabelecer relações diplomáticas - Reprodução / Ministério de Informação da Eritreia

Cenas de júbilo foram vistas nas ruas de Asmara, capital da Eritreia, com centenas de pessoas marchando e dançando em celebração pelo restabelecimento da paz e da amizade com a vizinha Etiópia, depois da assinatura de um tratado de paz entre os dois países em 9 de julho.

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Com a normalização das relações diplomáticas entre os dois países depois de quase duas décadas, famílias separadas pela guerra puderam se reconectar com o restabelecimento das linhas telefônicas. Também estão programados voos entre as duas nações para esta semana, acabando com anos de proibição de viagens entre as fronteiras.

“Histórico”, afirmou Hallelujah Lulie, analista político especializado no Chifre da África, região do continente que abarca as duas nações. “Não se trata de paz entre dois vizinhos quaisquer. A Etiópia e a Eritreia compartilham uma memória e uma herança complexa. Reconhecer esse passado intrincado e o destino comum [às duas nações] terá um saldo político e socioeconômico positivo e redefinirá o mapa geopolítico do Chifre”, acrescentou.

Os dois países da África Oriental assinaram na segunda-feira passada (9) uma “Declaração Conjunta de Paz e de Amizade”, colocando fim formalmente a 20 anos de impasse militar. Em maio, o governo etíope já havia surpreendido ao anunciar a implementação do Acordo de Argel de 2000. A isso se seguiu uma cúpula, realizada no dia 9 de julho, entre o presidente eritreu Isaias Afwerki e o primeiro-ministro etíope Abiy Ahmed, onde a declaração de paz foi assinada.

Eritreia e Etiópia travaram uma guerra sangrenta por território entre 1998 e 2000, com registro de 80 mil mortos e 650 mil migrantes forçados. Uma das áreas em disputa era Badme, cidade na região de Gash-Barka.

Apesar da história recente de conflito, os dois países também compartilhavam experiências anteriores como aliados. A Frente de Libertação do Povo Eritreu (FLPE), antecessora da atual Frente Popular pela Democracia e Justiça (FPDJ), no poder na Eritreia, e a Frente Democrática Revolucionária do Povo Etíope (FDRPE), parte da coalização que governa o país vizinho, lutaram juntas contra o governo etíope durante a guerra de independência da Eritreia e a guerra civil da Etiópia nos anos 1980 e 90. A FDRPE derrubou o governo Derg de Mengistu Haile Mariam em 1991 com a ajuda da FLPE e, em 1993, a Eritreia conquistou independência, terminando 30 anos de luta por libertação.

Interesses imperialistas na região passam pela questão do petróleo. (Foto: Google Maps/Reprodução)

Histórico

A disputa territorial entre os dois países, como em muitos outras regiões, tem origem na “Partilha da África” do século 19, quando houve uma corrida dos poderes coloniais europeus pela anexação de territórios no continente. O Tratado Ítalo-Etíope de 1902 não demarcou bem a fronteira entre Etiópia e Eritreia, plantando as sementes do conflito. Em 1936, a Itália, sob o regime fascista de Benito Mussolini, fundiu os territórios coloniais da Eritreia, Etiópia e Somalilândia.

Os britânicos tomaram a região depois de derrotar os italianos na Segunda Guerra Mundial e, mesmo depois abrir mão do controle da região, fizeram questão, ao lado dos Estados Unidos, de garantir que a Eritreia ficasse sob poder da Etiópia. O governo etíope estava sob o poder monárquico de Haile Selassie quando, em dezembro de 1950, uma resolução da Organização das Nações Unidas (ONU) estabeleceu a Federação da Etiópia e Eritreia.

Petróleo

O interesse dos EUA e da Grã-Bretanha e a pressão pela criação da Federação da Etiópia e Eritreia, apesar do histórico de um país independente, está em uma carta de 1945 escrita pelo presidente de uma empresa estadunidense, a Sinclair Oil Corporation, para o então secretário de Estado dos EUA, James F. Byrnes.

A carta cita o acordo com o governo imperial etíope para a exploração de petróleo na Etiópia, acrescentando que, como o país não tinha saída para o mar e havia necessidade de construir “dutos adequados da Etiópia até um porto marítimo apropriado, assim como um terminal de exportação”, o único acesso disponível para o mar seria pela Eritreia. A carta propunha:

“Todo o nosso programa de desenvolvimento será gravemente atrasado e afetado caso a Eritreia fique sob domínio de qualquer outro regime que não seja a Etiópia. Assim, solicito com urgência que seus bons gabinetes apoiem a exigência da Etiópia no que se refere à Eritreia.”

A independência da Eritreia, em 1993, pôs fim a um dos aspectos do conflito na região, mas a questão da fronteira continuou tensa até entrar em ebulição em 1998.

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Capital da Etiópia, Addis Ababa. (Foto: Laika ac via Wikimedia Commons)

Acordo de Argel

A guerra entre os dois países acabou em 18 de junho de 2000, depois da assinatura do “Acordo de Cessação de Hostilidades” apoiado pelas Nações Unidas e pela Organização da Unidade Africana. O Acordo de Argel, como é conhecido, convocava os países vizinhos a evitarem o uso da força e libertarem todos os prisioneiros de guerra. Também previa a garantia de um “tratamento humano aos cidadãos e pessoas de origem de cada um dos dois países dentro de seus respectivos territórios”.

O acordo criava duas comissões. A primeira ficou a cargo da delimitação e demarcação da fronteira internacional entre os países, enquanto a segunda se dedicaria a avaliar reclamações relacionadas a perdas, danos e prejuízos.

Em 2003, a Comissão de Fronteiras concluiu o processo de delimitação e decidiu entregar a maioria dos territórios em disputa, incluindo Badme, à Eritreia. Na época, o processo de demarcação não foi concluído por objeções da Etiópia, que se recusou a implementar a decisão da comissão e retirar suas forças da região do conflito.

Pontes

Com a assinatura do tratado de paz na semana passada, o governo de Abiy Ahmed aceitou respeitar a decisão da Comissão de Fronteiras, colocando, assim, fim a um dos conflitos fronteiriços mais longos da região.

“Vamos demolir o muro e, com amor, construir uma ponte entre os dois países”, afirmou Abiya, que recebeu boas-vindas calorosas em Asmara.

Edição: The Dawn News | Tradução: Aline Scátola