Volume morto

Gestão preventiva da Sabesp contra novas crises é insuficiente

Para especialistas ouvidos pelo Brasil de Fato, é preciso ações permanentes para evitar novos desabastecimentos

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

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Inauguração de estação de transferência de água entre reservatórios, obra precipitada pela crise hídrica de 2014
Inauguração de estação de transferência de água entre reservatórios, obra precipitada pela crise hídrica de 2014 - Foto: Divulgação / Governo do Estado de São Paulo

A região metropolitana de São Paulo acaba de passar por um período de 106 dias sem chuvas significativas, e essa estiagem intensa nos meses de maio, junho e julho causou preocupação à população, que ainda se lembra da forte crise de desabastecimento que ocorreu em 2014 e 2016. Por enquanto, ainda não falta água em SP e uma nova crise hídrica não está à vista, mas as medidas adotadas nos últimos anos foram suficientes para afastar o risco de um novo "apagão" da água nos próximos anos? 

Durante a última crise de abastecimento de água, a região metropolitana do estado passou por rodízios de fornecimento, viu serem instituídas metas de consumo de água e multas nas contas da Sabesp, e, por fim, teve de contar com o "volume morto" para que não houvesse desabastecimento generalizado --embora nas regiões periféricas da capital paulista, sobretudo nas zonas norte e sul, o corte de água durante a noite tenha sido rotineiro à época.

Responsável pelo abastecimento de quase metade da grande São Paulo, o sistema Cantareira operava em 39,6% de sua capacidade total nesta quarta-feira (1), sob estado de alerta. O valor é menor do que a média registrada no mesmo mês em 2013, ano que precedeu a crise hídrica, quando o volume do reservatório circundava os 50%.

Mesmo com a chuva na manhã desta terça-feira (31), o índice pluviométrico histórico de julho, de 48,7 milímetros, não foi alcançado. O mês terminou com apenas 11,8 mm de chuvas. Já o índice histórico para o mês de agosto, de 34,5 mm, é ainda menor do que a média do mês que passou, ou seja, a expectativa para este mês é sempre que seja mais seco.

Apesar dos números, a Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp), afirma que possui um sistema mais robusto hoje, com mais interligações entre reservatórios e maior capacidade de tratamento de água do que tinha antes da crise hídrica de 2014. De acordo com a companhia, foram realizadas 36 grandes obras, além de 1.000 intervenções de pequeno e médio portes nos últimos anos, que garantiriam mais água para a população.

Para Edson Aparecido da Silva, sociólogo e assessor de saneamento da Federação Nacional dos Urbanitários (FNU), porém, seria necessário que a Sabesp estivesse em alerta permanente para evitar novas crises. Ele critica, por exemplo, que, mesmo diante de um período de estiagem atípica, não haja ainda uma campanha pela redução do consumo. Silva relembrou que, durante a última crise hídrica em São Paulo, a reação da companhia à crise foi tardia.

“O governador à época [Geraldo Alckmin, do PSDB] insistia em dizer que nós não vivíamos uma crise e que tudo estava sobre controle. Na verdade não era isso que a população vivia, sobretudo as populações mais pobres que vivem nas periferias das cidades, que não têm possibilidade de armazenamento de água como tem aqueles que habitam áreas mais estruturadas de São Paulo”, critica o sociólogo.

O assessor de saneamento avalia que a falta de chuva não pode ser a única responsabilizada pelas crises e ressalta que a gestão contínua da água é um fator importante.

Segundo ele, a Sabesp investiu em obras emergenciais, mas desde a penúltima renovação da outorga para utilização das águas do Cantareira, em 2004, técnicos já haviam indicado a necessidade de ações estruturais para que a dependência da região metropolitana de São Paulo àquele sistema fosse diminuída, ou seja, a situação já era conhecida e ainda assim houve uma demora para a tomada de ações. 

Capital misto

Para começar a entender a gestão da Sabesp, é necessário ter clareza de que se trata de uma empresa pública controlada pelo governo, mas que não é uma estatal "pura". Desde 2002, a Secretaria da Fazenda do Estado detém 50,3% das ações da Sabesp, enquanto negocia 47,9% nas bolsas de valores de São Paulo e Nova Iorque. Em 2016, um ano após o auge da crise hídrica, a Sabesp teve um lucro de R$2,9 bilhões. Já em 2017, a cifra foi de R$ 2,5 bi --valores que devem ser remetidos aos acionistas privados da empresa. 

O estatuto social da companhia determina que os acionistas recebam, no mínimo, 25% do lucro líquido anual. Segundo dados da própria empresa, o payout -- proporção de pagamento de dividendos aos acionistas -- tem sido de 29% nos últimos anos. 

Na opinião do representante da FNU, a demora para ações e campanhas de consumo consciente acontecem porque a Sabesp trabalha com uma lógica de empresa privada, que trabalha em função do lucro dos acionistas privados.

“Quanto menos água a população consome, a Sabesp acaba tendo menos receita, menos lucro e acaba pagando menos dividendos aos seus acionistas”, problematiza Edson. Para a FNU, o governo deveria recomprar paulatinamente as ações que estão no mercado para que a empresa voltasse a ser totalmente pública, tendo como única finalidade a prestação de serviços à sociedade.

Medidas permanentes

De 2013 a 2017, houve uma redução de 12% no consumo de água na região metropolitana de São Paulo. Os números indicam que, em resposta à crise, houve uma mudança de hábito com relação ao consumo de água. 

Ainda assim, a FNU defende que a Sabesp deveria investir em medidas contínuas para a redução do consumo. Um dos pontos principais seria justamente retomar campanhas massivas, mesmo que isso implique em um impacto negativo nas receitas da empresa.

Rene Vicente dos Santos, presidente do Sindicato dos Trabalhadores em Água, Esgoto e Meio Ambiente do Estado de São Paulo (Sintaema), relembra que as campanhas de redução do consumo não devem ser apenas direcionadas à população, mas também às grandes empresas. 

Para o sindicalista, a Sabesp deveria “obrigar as grandes empresas a fazer sistemas de reservatório captando água da chuva, utilizando em sistemas de resfriamento e na limpeza”. 

Outra medida que os especialistas consideram urgente é a intensificação do programa de redução de perdas. Hoje, a Sabesp perde 30% da água que produz, ou seja, a cada 1.000 litros de água potável que sai das estações de tratamento, 300 litros são perdidos. 

O representante do Sintaema pondera que há uma porcentagem dessa perda referente a desvios ilegais na distribuição da água, mas que uma quantidade considerável poderia ser poupada caso a empresa investisse mais em infraestrutura.

“A Sabesp tem que ter um programa constante de trocas de rede [de encanamentos e tubulações]. Temos redes na região metropolitana que tem mais de 30 anos. Elas tem que ser trocadas, não podem apenas serem consertadas quando há um vazamento”, diz Rene Vicente, complementando que os reparos ocorrem com muita frequência e que a demanda é cumprida por empresas terceirizadas, com alta rotatividade. 

Apesar da companhia afirmar que não contrata mão de obra terceirizada, o Sintaema estima que 8 mil trabalhadores terceirizados atuam na expansão, ligação e consertos de rede da Sabesp. 

A entidade também avalia que não há adesão dessas medidas permanentes porque vão na contramão da lógica vigente na empresa. 

“É a lógica do lucro. O objetivo máximo da empresa é gerar dividendos para manter a margem de lucro dos acionistas”, condena o presidente do sindicato. "Se a Sabesp aprofundar essas medidas, diminui sua margem de arrecadação dela, então há uma contradição".  

Um maior investimento em programas de reuso de água e a criação de grandes cisternas urbanas em espaços públicos e empreendimentos privados, principalmente na indústria, também é sugestão da FNU. 

A Federação defende ainda um programa de incentivos fiscais para aquisição de equipamentos de baixo consumo hidráulico como descargas acopladas e torneiras com temporizador. Outra proposta é que os prédios habitacionais tenham o hidrômetro individualizado, para incentivar que as pessoas tenham mais controle sobre o que gastam. 

Grandes consumidores

Rene Vicente elenca a relação da companhia com as grandes empresas como um problema, já que há incentivo para que as empresas consumam água, mas não há nenhuma política de otimização e redução do uso. A afirmação abre precedente para a discussão em relação a privilégios que a companhia cede para grandes consumidores de água.

Segundo dados divulgados pela Agência Pública, o consumo de água por empresas em São Paulo seguiu tendência oposta ao consumo das residências e cresceu 92 vezes entre 2005 e 2014. O crescimento se justifica pela expansão dos contratos de demanda firme, acordos estabelecidos entre empresas e a Sabesp em que quanto maior o uso, menor é o valor que as empresas pagam pelo metro cúbico.

Em 2014, ano da crise hídrica, foram firmados 42 novos contratos, o que levou a Sabesp chegar a marca de 526 contratos firmados em dez anos. A Agência Pública obteve os dados por meio de um pedido feito pela Lei de Acesso à Informação, que mostraram que empresas como Mercedes-Benz, Ford, Volkswagen, Pão de Açúcar, Carrefour e Itaú Unibanco pagaram baixas tarifas de água.

No ano de 2017, de acordo com informações disponibilizados no site da Sabesp, 256,7 milhões de m³ de água foram utilizados pelo atacado, ou seja, em larga escala de produção. O consumo domiciliar na região metropolitana do estado foi de 1.175,8 bilhões de m³ de água.

A reportagem pediu dados atualizados em relação à quantidade de contratos de demanda firme, mas não obteve resposta da Sabesp. 

Preservação 

Edson Silva afirma ainda que a falta de integração das políticas públicas entre o estado e município aprofunda os entraves da gestão da água. A ausência de ações para gerir o desenvolvimento urbano em torno dos mananciais, área primária da produção de água, é outro problema estadual. 

O especialista frisa que a falta de um programa de preservação das áreas dos mananciais piora ainda mais a situação, já que há um quadro progressivo de desmatamento, além dos reflexos da ocupação habitacional da região.

“As pessoas produzem esgoto, que vão pros mananciais e depois se tem que remediar isso. Ninguém vai morar em área de risco, de proteção ambiental, porque gosta. É porque a especulação imobiliária e a falta de política habitacional levou a isso e há um impacto direto na água”, pontua.

Edson endossa que tanto a Sabesp quanto o governo estadual falham ao não tomar ações diretas contra o desmatamento. “O que garante o sistema de chuva são as florestas, as áreas verdes. Se não se tem isso, se há desmatamento, há desestruturação de todo o processo de produção de chuvas. Então, a política ambiental, no sentido de preservação das matas e da habitação estão integradas, e não há, hoje, uma integração dessas políticas”.

Gestão preventiva

As medidas preventivas de alerta e de redução do consumo também são consideradas positivas por Vicente Andreu, ex-presidente da Agência Nacional de Águas (ANA), que cita ainda outros processos que poderiam ajudar no enfrentamento de futuras crises, como a dessalinização das águas de Santos, que, ao abastecer a população daquela região, reduziria a demanda de outros reservatórios como o complexo Guarapiranga, por exemplo. 

O ex-presidente da Ana ressalta o tratamento de esgoto como uma questão crucial para a segurança hídrica.“Mesmo durante a crise de 2014 e 2015 havia água, o que não havia era água em condições de ser tratada. Se essas águas forem tratadas, evidentemente que haverá uma postura preventiva em relação a crises futuras que nós, efetivamente, não sabemos quando serão”.

“Não pode ser só um processo que se apresenta durante a crise ou logo depois da crise, tem que ser um processo contínuo. Para isso, depende muito da posição dos órgãos públicos, dos dirigentes dos municípios e estados, para que se mantenha as mensagens corretas para as pessoas, de que devem manter hábitos adequados a uma nova geração, a uma nova situação climática no planeta”, critica. 

A reportagem entrou em contato com a Sabesp para pedir informações sobre quais políticas estão sendo adotadas atualmente para evitar uma eventual nova crise de desabastecimento, mas não obteve resposta até o fechamento desta reportagem.

Edição: Diego Sartorato