MÉXICO

Política de López Obrador para o campo será baseada em herança da Revolução Mexicana

Valorizar as propriedades comunais e cooperativas com financiamento público são as bases da nova política agrícola

Brasil de Fato | Cidade do México |

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Camponeses no México sofrem com alto nível de pobreza
Camponeses no México sofrem com alto nível de pobreza - Foto: La Jornada

O futuro presidente do México, Andrés Manuel López Obrador, planeja uma revolução no campo, garante Jesús Ramírez Cueva, um dos homens mais influentes do Movimento de Regeneração Nacional (Morena), partido do presidente eleito. “Os investimentos destinados aos pequenos e médios produtores rurais serão três vezes maiores do que o orçamento da Secretaria de Agricultura”, afirma o dirigente. As secretarias de governo do México são equivalentes aos ministérios no Brasil.

Jesús Ramírez Cueva é jornalista, escritor e um importante intelectual do Morena. Trata-se de um quadro político muito próximo ao futuro presidente do país. Editor do jornal Regeneración, ele foi membro do comitê de campanha de Obrador e agora será porta-voz oficial do governo. Em entrevista exclusiva ao Brasil de Fato, na Cidade do México, Cueva, que também participa do planejamento do governo de Obrador para o campo, relata quais são as expectativas e possíveis políticas da futura gestão.

Escritor e jornalista Jesús Ramirez Cueva | Foto: Rafael Stedile

Além do indicativo de receber três vezes mais do que o valor investido no agronegócio, os pequenos produtores rurais terão a oportunidade de escolher quais são as prioridades do setor, pois o governo pretende implementar sistemas de tomadas de decisões coletivas, parecidos ao orçamento participativo implementado por governos petistas em algumas regiões do Brasil. A Secretaria de Desenvolvimento Social, uma das responsáveis por conduzir essa política, será encabeçada pela agrônoma María Luisa Albores González, uma mulher de origem indígena, de Chiapas, e que por anos trabalhou com cooperativas do setor camponês, na União de Cooperativas Tosepan.

“No Brasil, vocês tiveram a experiência do orçamento participativo, mas no México será diferente. Não vamos reduzir essa participação a um tema marginal, específico. Vamos colocar em debate, junto à sociedade, um conjunto de políticas públicas. Juntos vamos definir quais são as prioridades”, explica Cueva.

Ele destaca ainda que o objetivo é ampliar a ideia de Estado e levar as organizações populares para as estruturas políticas. Dessa forma, as assembleias comunitárias e camponesas vão fazer parte do próprio Estado mexicano. “Estamos convocando um processo de redemocratização do país, que terá a participação da população nas decisões das políticas públicas, decidindo como se usará os recursos que serão aprovados para a região. Vamos criar condições para que as pessoas possam participar. Será um processo muito participativo”, garante Cueva.

O escritor afirma que o país já possui um sistema organizativo próprio no campo, herança da Revolução Mexicana, do início do século 20. “No México existe uma tradição de assembleias, vamos recuperar essa tradição e essa história que construiu o país. Isso já funciona em muitas regiões do México. Aqui existe uma cultura comunitária grande, no setor agrário e rural. Para os povos indígenas, as assembleias já fazem parte da sua cultura, para decidir sobre as questões da comunidade e para escolher suas autoridades”, destaca.

O governo de Obrador pretende se diferenciar de outros governos progressistas ao fazer com que sua política de distribuição de renda no campo seja baseada no financiamento público, com a abertura de crédito rural. Além disso, propôs criar um sistema de compra estatal direcionado para produtos agrícolas produzidos por pequenos produtores, financiar estruturas industriais para processar matéria-prima de pequenos produtores, assim como aumentar os impostos das empresas agrícolas de grande porte que hoje pagam uma alíquota de 6%, enquanto a maioria dos mexicanos paga 35% de impostos. 

“Essa relação vai mudar. Por exemplo, atualmente as empresas de alimentos transnacionais, que detêm o monopólio do setor, são as provedoras do governo e abastecem hospitais e escolas. A partir de agora serão as comunidades que vão fornecer esses alimentos, sem intermediários. Essa será uma política de compras do governo, para que os agricultores participem dessa cadeia, desse ciclo de consumo”, destaca Cueva.

Depois de anos sem investimento, o campo mexicano pode voltar a abastecer o país | Foto: Coop.Terra Fértil

Camponeses têm o controle do território

Uma das razões para incentivar a produção rural e o consumo dos produtos de origem camponesa é que trata-se de um dos setores sociais mais importantes do país, posto que são 26 milhões de mexicanos, ocupando mais de 50% do território nacional e que representam 24% da população país. É uma das maiores comunidades rurais da América Latina. No Brasil, a população rural representa 16% do país, segunda dados do IBGE.

Embora seja numeroso, esse é um dos setores mais pobres do México. A pobreza extrema afeta 17% da população rural mexicana, segundo dados oficiais. 

"São esses camponeses que controlam a maior parte do território e portanto suas riquezas naturais, as minas, a água, os bosques. O desafio agora é empoderar toda essa estrutura social que existe e dotá-la de capacidades econômicas, culturais e de decisão política. Esse será um feito histórico, nunca aconteceu antes”.

A particularidade do campo mexicano e seu potencial está na maneira de se organizar. Depois da Revolução Mexicana foi criada a figura jurídica do ejido, que é uma propriedade coletiva de uso comum. 

“Chamamos propriedade social. E tem outras que são as propriedades comunitárias, comunais, que são as comunidades dos povos indígenas. Essa estrutura de ejido, que é de propriedade coletiva, abarca mais da metade do território nacional. Entre as 200 milhões de hectares, pelo menos 107 milhões estão nas mãos dos pequenos camponeses. Essa é uma herança da Revolução Mexicana. Possuímos uma base jurídica muito diferente a outros países. Essa é uma vantagem comparativa, de uma estrutura que funciona a nosso favor”, explica Cueva. 

A Lei Agrária de 1915 aboliu o latifúndio, no entanto, a medida só foi consolidada no governo progressista de Lázaro Cárdenas (1934-1040), que produziu grandes transformações sociais. A forma organizativa dos ejidos tem nas assembleias comunitárias sua máxima instância, que acontece a cada seis meses. Existem outras duas estruturas internas de decisões coletivas, que são os Conselhos Ejidais e os Conselhos de Vigilância. Portanto, essa estrutura organizativa já existente pode significar um passo a frente, se comparado a outros países latinos. 

Camponeses de ejidos exigem financiamentos públicos ao campo  | Foto: La Vanguardia

Cooperativas também fazem parte da estratégia de desenvolvimento 

De acordo com a avaliação de Jesús Ramirez Cueva, o Estado mexicano, hoje, é subordinado ao mercado. Para conseguir realizar as mudanças sociais propostas pelo seu partido durante a campanha eleitoral, é preciso mudar essa lógica. “Não pode haver democracia com fome, precisamos promover o bem-estar e romper com a lógica do monopólio. Para isso, necessitamos ativar uma economia produtiva, com cooperativas, produção social”, afirma.

Para Cueva, esse setor tem um potencial pouco explorado e que precisa ser incentivado. “Atualmente já temos 14 milhões de pessoas no México que vivem do cooperativismo. Vamos aproveitar o melhor dessas experiências para construir políticas, para criar bancos sociais para financiar seus próprios projetos, para que não dependam nem do endividamento público, nem dos bancos”, ressalta. 

Campo e o governo

A principal proposta de López Obrador para as políticas sociais é melhorar a vida da população mais pobre dentro do atual sistema econômico, sem mexer nas estruturas principais.

A economia de mercado continuará a existir, o que vai mudar, segundo Jesús Cueva, são as condições em que o povo vai enfrentar essa realidade. O enfoque, mais que substituir o mercado, será de romper com a lógica do mercado, para dar condições competitivas e de sobrevivência às pessoas. “Nesse sentido o Estado terá que mudar, porque não pode continuar existindo essa subordinação absoluta ao mercado”, destaca.

No entanto, o novo governo manterá a política liberal na econômia, a autonomia do Banco do México, terá um novo acordo de livre comércio com os EUA e manterá alianças com setores empresariais e uma parte da direita mexicana. Exemplo disso, é a equipe econômica e o primeiro escalão do governo, conformados por empresários e liberais.

Não será um governo de esquerda aos moldes tradicionais, porém Obrador propõe realizar o que ele chama de a “quarta transformação”. Segundo o candidato eleito, o México passou por três grandes mudanças no passado: a independência (1821), a reforma (entre 1858 e 1861, quando uma guerra civil entre conservadores e liberais resultou na vitória do liberalismo que promoveu grandes reformas, entre elas, a separação do Estado e da igreja, assim como leis de liberdades civis), e a Revolução Mexicana (1910). Para Obrador, a “quarta transformação” seria o resultado de mudanças profundas, sobretudo na educação, na saúde, nas políticas de distribuição de renda e de organização do campo. 

Um dos principais lemas de campanha do novi presidente é que ele governará para todos, mas os pobres terão prioridade. “Escutaremos a todos, atenderemos a todos, respeitaremos a todos, mas daremos preferência aos mais humildes: em especial aos povos indígenas de México. Pelo bem de todos, primeiro os pobres”, disse Obrador, em seu discurso de vitória, no dia 1 de julho, frente a uma multidão de 150 mil pessoas, no centro da Cidade do México.

O triunfo eleitoral de Andrés Manuel López Obrador muda a história do México, já que nos últimos 90 anos o país foi governado por apenas dois partidos: o Partido Revolucionário Institucional (PRI) e o Partido de Ação Nacional (PAN). O último governo progressista que teve o país foi há quase 80 anos, com o ex-presidente Lázaro Cárdenas.

Esperança

Nas ruas, o clima é de esperança. A vendedora ambulante Marta Vegas Hernandez, de 67 anos, ganha a vida vendendo bala e biscoitos na rua. Ela afirma que seu voto foi em López Obrador porque acredita que ele vai defender seu direito de aposentar. No México, a aposentadoria não é federalizada - é feita por estados e municípios. Já a jovem Karen Armendares, de 18 anos, estudante de engenharia geofísica, diz que espera mais oportunidades trabalho quando sair da universidade. O comerciário Juan Pablo Mendonza, 56 anos, quer que Obrador combata corrupção, pois ele acredita que “a coisa vai muito mal” atualmente.

Essas palavras refeltem um pouco do clima nas ruas no dia vitória de Obrador, quando milhares de pessoas saíram espontaneamente a comemorar. Coisa que não acontecia há pelo menos vinte anos no país. “Aqui as pessoas não saem a comemorar nada relacionado a política. Nas últimas eleições o que aconteceram foram protestos na apuração das urnas, por conta das denúncias de fraude”, explicou uma manifestante, surpresa com a quantidade de pessoas comemorando.

“Ganhamos do poder corrupto, por isso se vê tanta alegria. No país se respira alegria e esperança, porque essa mudança que apenas inicia, tem dimensão de uma revolução. É uma revolução democrática, popular, que tem uma mensagem que é a recuperação da soberania nacional, mas também da soberania popular”, conclui Jesús Cuevas.

O projeto político é que os camponeses sejam a base social do governo e do jovem partido Morena, que tem apenas quatro anos de registro e não possui base social clara. Cuevas garante ainda que as primeiras medidas que vão estruturar às políticas públicas para o campo serão tomadas nos primeiro 100 dias do governo de Obrador, que tomará posse dia 1 de dezembro de 2018.

Fundador do Morena, Jesús Cueva, detalha política de Obrador para camponeses | Foto: Rafael Stedile

Edição: Pedro Ribeiro Nogueira