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SAÚDE

Opinião | As doenças negligenciadas nas indústrias farmacêuticas

DTNs são doenças que, além de presentes em condições de pobreza, também contribuem para manutenção da desigualdade

Brasil de Fato | Recife (PE) |
Atualmente, a Organização Mundial da Saúde (OMS) classifica 17 doenças como tropicais negligenciadas
Atualmente, a Organização Mundial da Saúde (OMS) classifica 17 doenças como tropicais negligenciadas - Fotos: Agência Brasil

As Doenças Tropicais Negligenciadas (DTNs) afetam mais de dois bilhões de pessoas em todo o mundo, sendo importantes causas de morbidade e mortalidade. Atualmente, a Organização Mundial da Saúde (OMS) classifica 17 doenças como tropicais negligenciadas, incluindo a doença de Chagas, esquistossomose, leishmaniose, dengue, diarreia, malária, tuberculose, entre outras. Também conhecidas como doenças da pobreza, são importantes problemas de saúde pública. Um dos maiores problemas atrelado a estas doenças é o quadro de morbidade dos pacientes, impossibilitando-os de desenvolverem suas funções normais. Este quadro constitui um obstáculo importante ao desenvolvimento dos países, através da impossibilidade dos pacientes de trabalharem e desenvolverem atividades normalmente. Devido a isto, em 2010, o Ministério da Saúde do Brasil classificou-as como doenças que, além de presentes em condições de pobreza, também contribuiriam para a manutenção do quadro de desigualdade econômica e social.
As DTNs possuem características comuns em relação ao contexto em que ocorrem: condições precárias ou inexistentes de higiene, falta de saneamento básico, presença de vetores que contribuem diretamente para transmissão, tais quais o mosquito Aedes aegypti, entre outros. Os métodos de tratamento e diagnóstico dessas doenças são antigos, inadequados ou inexistentes, necessitando que os investimentos em pesquisa e desenvolvimento se tornem mais simples e eficazes. O termo Doenças Tropicais Negligenciadas está ligado à falta de atenção dada pela indústria farmacêutica aos seus tratamentos. 
O processo de descoberta e desenvolvimento de fármacos é complexo, longo e de alto custo, tendo suas raízes profundamente ligadas às inovações científicas e tecnológicas. Os avanços expressivos da química e biologia e a melhor compreensão das vias bioquímicas, dos alvos moleculares e dos mecanismos que levam ao aparecimento e desenvolvimento das doenças, tornaram possível a descoberta de inovações terapêuticas notáveis, proporcionando melhorias significativas na qualidade de vida das diversas populações no mundo. Porém, o setor de Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação (P, D & I) das indústrias farmacêuticas são orientados quase sempre pelo lucro, estando o setor industrial privado focado nas doenças globais para as quais medicamentos podem ser produzidos e comercializados com geração de lucros, como por exemplo doenças cardíacas, câncer, doenças imunológicas, etc. Levando em consideração o poder aquisitivo da população dos países em desenvolvimento, não é de se esperar que as investigações de novos fármacos tenham como foco as doenças correntes em tais países. 
Estudos realizados no Sistema de Informação sobre a Indústria Química da Universidade Federal do Rio de Janeiro (SIQUIM/EQ/UFRJ) apontaram que, até o ano de 2003, várias patentes de grandes laboratórios farmacêuticos apresentavam novos medicamentos com alguma ação para DTN’s, porém as mesmas não eram exploradas neste nicho de mercado. Como o Estado é o maior interessado em tratar este agravo e detém o poder de compra dos medicamentos, o cenário é sugestivo para iniciativas de fomento à pesquisa nas empresas farmacêuticas nacionais, a partir dos registros existentes.
Contraditoriamente, a nível de pesquisa básica em saúde, as doenças tropicais não são necessariamente negligenciadas, tendo em vista os diversos financiamentos e centros de pesquisa, em sua maioria públicos, interessados no assunto. Entretanto, verifica-se que a produção científica na área pouco se reverte em melhoria no arsenal terapêutico utilizado no combate dessas doenças. Com baixo poder aquisitivo e sem influência política, os pacientes e sistemas de saúde mais pobres não conseguem gerar o retorno financeiro exigido pela maior parte das empresas voltadas ao lucro. 
Nos primeiros anos deste século, apenas quatro em cada cem novos medicamentos produzidos foram dedicados a estas doenças. Em números concretos, apenas 37 (cerca de 4%) dos 850 novos tratamentos registrados entre 2000 e 2011 eram indicados para as DTN’s listadas pela OMS. Porém, foi observado um crescimento quando em comparação ao mesmo estudo publicado em 2002, onde foi evidenciado que apenas 1,1% de todos os medicamentos (16 de um total de 1393) aprovados durante o período de 25 anos (1975-99) foram para as doenças negligenciadas, apesar destas doenças representarem 12% da carga global de saúde no período. Em 2015, o prêmio Nobel de Medicina e Fisiologia foi atribuído aos pesquisadores que descobriram e produziram a Artemisinina, potente medicamento antimalárico.

Doenças negligenciadas no âmbito jurídico 
A amplitude do conceito de saúde no âmbito jurídico tem o intuito de abarcar a complexidade das relações sociais, possibilitando que o Estado fique comprometido, constitucionalmente, a promover ações integradas e políticas públicas que corroborem para a consolidação de uma sociedade mais igualitária para a sua população, estendendo o véu da cidadania sobre todos, sem quaisquer distinções. Por outro lado, a amplitude do conceito não deve ter o condão de fluidificar o foco de atuação dos Estados e de camuflar a falta de interesses políticos e financeiros em empreender melhorias para o bem-estar social.
A falta de acesso ao tratamento adequado para as pessoas oriundas de países tropicais e de capitalismo periférico, como no caso do Brasil, relativo às doenças negligenciadas, se constitui, na prática, como um bloqueio ao exercício e à garantia ao status de cidadania plena. Em outros termos, é dizer que esta parcela da população mundial – com marcadores de classe e raça específicos – é acometida pelo status da lumpencidadania, pois não possuem amplo acesso a direitos sociais básicos como o da saúde.
Se a um lado é desinteressante financeiramente para a indústria de fármacos o investimento no tratamento e no desenvolvimento de medicamentos que combatam doenças relativas a países periféricos, é inadmissível que tais Estados se omitam destes investimentos por sua própria conta, uma vez que não apenas o status de cidadania de suas populações está comprometido em decorrência da omissão frente a tais enfermidades, como o próprio ideal de Democracia é colocado em risco diante da constatação da subcidadania destas pessoas.
Neste sentido, reitera-se que deve ser papel prioritário dos Estados à revelia da lógica financeira da indústria farmacêutica global, o bem-estar em relação às suas populações. De modo que a negligência no desenvolvimento de medicamentos para o combate de enfermidades que assolam, majoritariamente, os países de capitalismo periférico deve ser colocada em cheque. Priorizando, portanto, o desenvolvimento de pesquisas e produções científicas nesta área, sob pena de contribuir, sistêmica e reiteradamente, para a perpetuação das desigualdades, bem como, para a erosão de direitos fundamentais e da democracia, acometendo grande parcela da população mundial ao status de subcidadania. 

* Vinicius Barros Ribeiro da Silva, pós-doutorando, Département de Chimie Moléculaire - Grenoble, França; Doutor em Ciencias Farmacêuticas – UFPE.

* Juliana Serretti de Castro Colaço Ribeiro, coordenadora do Curso de Bacharelado em Direito  da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais de Igarassu – FACIG; Mestra em Ciências Jurídicas pela UFPB.

Edição: Catarina de Angola